O ÚLTIMO MUGIDO de Germano Almeida

PorAna Cordeiro,21 abr 2020 7:21

Ao lermos a primeira página deste romance, de frente para o portão do cemitério, assistimos à saída da multidão que tinha acompanhado o funeral do célebre escritor Miguel Lopes Macieira. Percebemos de imediato a ligação com o anterior, O Fiel Defunto, que termina com essa multidão a dirigir-se ao cemitério para o funeral do escritor assassinado pelo seu melhor amigo, no dia em que lançava mais um livro, precisamente O Último Mugido.

Desse livro não se volta a falar, mas de escritores, de literatura e de muitas outras questões, sim. Embora este livro não precise da leitura de nenhum outro para ser compreendido, com Germano Almeida o conto está sempre a voltar atrás e aconselho o leitor a revisitar outras obras do autor como por exemplo O Meu Poeta. Em ambas nos deparamos com um acontecimento banal, que se transforma num disparatado movimento cívico que, por sua vez, serve de motivo à crítica, essa sim, política e social. Se bem se lembram, n’O Meu Poeta, e a propósito do movimento de um grupo de cidadãos que exige a reabertura de um bar da cidade, critica-se o regime de partido único que vivia então os seus últimos momentos, cada vez mais centralizado, cada vez mais incapaz de resolver os problemas do país e cada vez mais refém dos oportunistas que o foram tomando de assalto. Em O Último Mugido temos a luta da viúva do escritor para conseguir realizar a última e tonta vontade do defunto que queria ser incinerado em praça pública e a partir daqui o autor critica a inoperância, o oportunismo e as políticas governamentais, que entre os clusters do PAICV e os hubs do MpD não tiraram a ilha de S. Vicente do marasmo em que se encontra nem fizeram desaparecer o sentimento de abandono dos seus habitantes nem a vontade de reerguer a ilha que os parece animar. E é pela voz da viúva do escritor que, no discurso proferido no final do livro, o autor dá voz a esses sentimentos:

Hoje podemos dizer que S. Vicente foi como uma fonte que foi explorada até à exaustão e, depois de seca até mais não, foi esquecida, desprezada, sem que nunca mais se tivesse sabido que fazer com a ilha. (…) Precisamos levantar S. Vicente. E já que falharam aqueles que a queriam como ilha industrial, avancemos nós na sua afirmação como ilha de eventos, a começar pelo Carnaval, festivais da Cavala e da Baia das Gatas e a terminar todos os fins d’ano numa apoteótica cremação de uma figura, seja nacional ou estrangeira que prefira a honra de morar para sempre nos céus da cidade do Mindelo. (p.337-8).

Mas há um outro forte elemento a ligar as duas obras: um esforço deliberado para dessacralizar a figura do escritor.

Os leitores revelam uma ingénua curiosidade sobre a maneira como nos tornamos escritores. Há um como que um endeusamento das pessoas que escrevem, como se fossem seres sobredotados, vindos de um sobrenatural e especial mundo onde são fabricados, eventualmente com a melhor matéria‑prima existente no momento. (p.124-5).

Ora pelas personagens/escritores das suas obras (O Meu Poeta, o Artista de Agravos de um artista, e alguns outros intelectuais que não são personagens principais) Germano Almeida parece defender que, afinal, o material com que foram fabricados não é de grande qualidade. Em contrapartida, as mulheres desses escritores são mulheres de enorme fibra e muita inteligência.

Na realidade, acabo de fazer umas citações do autor, mas a verdade é que não sei quem estou a citar. É que encontramos aqui, tal como em obras anteriores, uma divertida e confusa mistura de pessoas e personagens. E a situação complica-se ainda mais quando o autor afirma que os personagens são feitos de muitas pessoas e muita imaginação e que, na literatura, o mais importante não [deve ser] o autor mas sim o personagem (O Meu Poeta, p. 250). É como se ele nos convidasse para um jogo, onde o autor se esconde atrás de personagens, do narrador e até de si próprio.

E onde é que o encontramos? Em primeiro lugar, no falecido escritor Miguel Lopes Macieira, que vive fechado no seu gabinete, inteiramente dedicado à escrita, o autor mais aclamado, premiado e prolixo das letras cabo-verdianas, com uma capacidade de parir livros absolutamente ímpar na história literária das ilhas. Mas ele é também o anafado escritor Romualdo Cruz, que se autoproclama contador de estóreas, mas que apenas deu à luz um único livro que tinha começado a ser publicado na revista Ponto & Vírgula (relembro que era o pseudónimo usado por Germano Almeida nessa revista). Encontramo-lo ainda como um dos decrépitos diretores da referida revista. Não sabemos se o desdentado que se babava, se o incontinente em cadeira de rodas, se o obeso acamado. (E se quiserem saber qual deles é, terão de reler a última crónica que Germano escreveu na revista P&V em 1987, data em que os três diretores decidiram ir-se embora para Pasárgada).

Muitas diferentes abordagens se podem fazer deste livro, tantas são as camadas de que é feito. Eu, por defeito de formação ou de gosto, considero especialmente interessantes as considerações que o autor faz (seja lá ele qual for) sobre o que é ser escritor, sobre o que é escrever.

Nesta obra aparece uma espécie de testamento literário, que ele chama testamento social alargado onde pretende dar‑se a conhecer enquanto homem, cidadão e escritor, mas logo de início vai avisando:

Bem entendido que só falarei do que achar que merece ou vale a pena ser conhecido, seja para edificação das pessoas seja com fins simplesmente literários. E se falar de pessoas que comigo conviveram ou foram importantes na minha vida, só direi o que achar de interesse ou conveniente (p.35).

De modo que, se não for mesmo necessário mentir, certamente que omitirei muitas situações. Porém, que fique desde já claro: sempre defendi a mentira como um direito que nos assiste a todos, (p.36).

É, pelo menos, um direito da escrita ficcional onde o imaginário, a simbolização e a efabulação são essenciais. Escrever é efabular diz o autor. E acrescenta: esse é o grande prazer da escrita, estar aqui sentado à minha secretária a ver pessoas que conheço na vida real como sérias, cordatas, educadas, perdidas em escabrosas situações virtuais. (p.126).

Quando começamos a ler uma obra de ficção estamos preparados para essa efabulação que os autores habitualmente reforçam criando tempos, lugares e personagens imaginários ou pelo menos inidentificáveis. Com Germano Almeida, não. Pelo meio das mais fantasiosas e inverosímeis situações estamos sempre a tropeçar numa realidade que ele claramente nos coloca à frente e que julgamos poder identificar – e não resistimos a fazê-lo – mas sobre a qual, como ele próprio nos avisa, nunca poderemos ter certezas. Nunca podemos saber o que é verdade ou mentira, o que pertence à realidade ou à desregulada imaginação do autor. Trata-se de uma escrita que propicia, a dúvida, o talvez. Tudo é objeto de uma crítica visceralmente irónica e incisiva, sejam acontecimentos históricos, mudanças políticas, sejam figuras públicas ou até os seus amigos. Desde O Meu Poeta que Germano Almeida afirma recusar uma literatura descritiva e defende que o papel do escritor, não deve limitar-se a descrever a nossa realidade, deve sim interpretá-la (p.246). Em consequência, e por mais divertidos e loucos que sejam os seus romances, todos, sem exceção são, e serão, essenciais para se conhecer e perceber as complexidades da história, da sociedade e da identidade cabo-verdianas.

No testamento do escritor Miguel Macieira afirma: “As estórias que tenho publicado têm tido até agora muito boa aceitação do público, sobretudo pelo facto de os leitores terem entrado no jogo de descobrir as pessoas reais por detrás de cada enredo. E eu fico muito feliz quando me dizem terem identificado esta ou aquela pessoa. Isso porque, salvo um ou outro caso e em personagens menores, que praticamente entram na estória como figurantes, nunca retratei ninguem em particular (p.126)

E acredito que Germano Almeida continuará de acordo com Miguel Macieira quando este afirma, na p. 127, que uma literatura é autêntica quando a base concreta do seu público, isto é, aqueles que lhe servem de personagens, não só a reconhecem como sua como nela se reconhecem como estando representados.

E nisto, julgo que todos estamos de acordo. Não conseguimos ler Germano Almeida sem nos reconhecermos ou julgarmos reconhecer ou sem, pelo menos, cairmos na tentação de tentarmos adivinhar quem é quem. Considero isto como um bónus extra à leitura feliz que os seus livros nos proporcionam. E lamento que daqui a uns anos, quando os seus leitores já não forem de todo seus contemporâneos, este divertimento extra desapareça.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 959 de 15 de Abril de 2020. 

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Autoria:Ana Cordeiro,21 abr 2020 7:21

Editado porSara Almeida  em  28 jan 2021 23:21

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