[Re]cortes no Tempo : De Guadalupe a Cabo Verde via Paris

PorAdriana Carvalho,15 fev 2021 7:09

Tal como na ilha de Guadalupe nas Caraíbas, nas ilhas de Cabo Verde poetas e ensaístas não se quedaram indiferentes às práticas assimiladoras da escola colonial.

I

Em 1955, o Dr. Henrique Teixeira de Sousa assistiu em Paris1 a um recital de poesia negra de expressão francesa. Nesse recital ouviu declamar um poema que muito o impressionou pela “maneira sentida e sincera” como o poeta de Guadalupe, Guy Tirolien2, expressou “a dessintonização entre a escola e a criança negra”.3

Sete anos mais tarde, em 24 fevereiro de 1962, Teixeira de Sousa - médico em Mindelo e Presidente da Câmara Municipal - leu o poema (que tinha traduzido) numa palestra proferida na Escola Industrial e Comercial da cidade.

Prece de um menino negro

Sinto-me tão cansado, Senhor:

Eu nasci assim cansado.

Muito tenho andado desde o cantar do galo, e

é bem íngreme o caminho que vai dar à escola.

Senhor, não quero mais ir à escola deles.

Fazei, Senhor, que não vá mais à escola deles.

Quero seguir o meu pai pelas ravinas frescas

quando a noite flutua ainda no mistério do mato

onde deslizam os espíritos que a aurora vem afugentar.

…………………………

Prefiro vadiar por entre o canavial,

por entre os sacos repletos de açúcar,

de um açúcar tão moreno como a minha pele.

Prefiro, à hora em que a lua amorosa,

fala baixinho ao ouvido dos coqueiros,

escutar o que diz à noite

a voz velada de um velho que conta fumando

as histórias de Zamba e do compadre coelho

e muitas coisas também

que não se encontram lá nos livros.

O negro, Vós o sabeis, não faz outra coisa senão trabalhar.

Porque é preciso ainda obrigá-lo a aprender nos livros

que falam de coisas que não conhecemos?

Além disso, é tão triste a escola deles

tão triste

como os senhores da cidade,

os senhores como deve ser,

que não sabem dançar à noite à luz do luar

que não sabem andar sobre a carne nua dos seus pés descalços

que não sabem contar histórias à boca da noite.

Senhor, não quero ir mais à escola deles.4

Terminada a declamação – imagino – ecoaram vibrantes palmas no salão de festas da Escola Técnica e a emoção tomou conta da assistência, professores e alunos que bem conheciam “o íngreme caminho que vai dar à escola” e eram, igualmente, obrigados “a aprender nos livros que falam de coisas que não conhecemos”.

II

Tal como na ilha de Guadalupe nas Caraíbas, nas ilhas de Cabo Verde poetas e ensaístas não se quedaram indiferentes às práticas assimiladoras da escola colonial.

O professor e poeta José Lopes (1951) evoca os seus alunos que “venciam léguas dia por dia, muito cedo, mal alimentados, muito felizes quando podiam comer um pratinho de «cachupa» ou umas batatas doces e sorvido à pressa uma canequinha de café, – os que o podiam ter –, tão fraco e mal açucarado, que era água tal. Mas não faltavam à escola” 5.

Jorge Barbosa, no magnífico poema ‘Crianças’ (1958), denuncia: “Temos também as crianças pobres / crianças sem roupa / sem lar e sem pão / crianças tuberculosas / sifilíticas / aleijadas / paralíticas / cegas / leprosas / sem remédios / sem escolas /sem brinquedos” 6.

Marques de Oliveira (1959), vice-reitor da secção do Liceu Gil Eanes na Praia, ponderou: “Eu não sei que impressão se produzirá na criança cabo-verdiana, e como reagirá, ao ouvir falar, por exemplo, de caminhos de ferro que nunca viu, ao ter de decorar todas aquelas linhas, ramais e mais ramais, de que (até parece castigo!) nem um só se elimina?” 7.

Numa comunicação nos Colóquios Cabo-verdianos em Lisboa (1959), Nuno Miranda considera que se “torna mister quebrar com essa espécie de ensino que se ministra em Cabo Verde”. Interroga: “Em que medida me poderia interessar quando aluno do liceu, «dizer por palavras minhas» o trecho descritivo da Serra do Marão [Portugal], se o que me vinha, pela janela da manhã desperta, era o Monte da Cara subindo da curva de beleza harmoniosa do Porto Grande?” 8.

Manuel Duarte, autor do manifesto ‘Ao povo das Ilhas’ (1962)enuncia as onze razões “que nos determinam, inquebrantavelmente, a reivindicar a nossa emancipação da tutela colonial e a independência das Ilhas”. Na nona razão proclama: “Nós, Povo das Ilhas, não queremos que os nossos filhos e netos continuem a frequentar escolas onde apenas e obrigatoriamente estudem coisas europeias, onde só ouvem falar de geografia de Portugal, da sua fauna e da sua flora, da sua história e dos seus heróis (até os que se tornam heróis por nos terem esmagado e escravizado)”9.

Voltando ao Dr. Teixeira de Sousa, ele também escritor, sublinho a ousadia de recitar um poema-denúncia da “tão triste escola deles” numa escola pública, certamente plena de entidades oficiais, professores e alunos, num tempo de endurecimento do regime português, de apertada vigilância e repressão contra qualquer demonstração (mesmo que subtil) de oposição ao colonialismo.

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Concluo esta breve síntese de [re]cortes da intervenção cidadã de repúdio ao ensino alienante, nesta e em outras latitudes, com a certeza que este exercício só terá sentido e utilidade se, numa perspetiva passado-futuro, nos munir de espírito crítico e argumentos que conduzam ao aperfeiçoamento da educação nos nossos dias, cuja missão é formar cidadãos cultos, reflexivos, participativos e livres. 

_____________________________________________

1 Teixeira de Sousa frequentou em França (1955-56) um curso de Nutricionismo, patrocinado pela Organização Mundial de Saúde (Boletim de Propaganda e Informação, janeiro 1956). 

2 Guy Tirolien [1917-1988] nasceu na ilha de Guadalupe. Participou com Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Léon-Gontran Damas no movimento literário Negritude. Contribuiu para a fundação da revista Présence Africaine em 1947. Uma das suas obras mais conhecidas é ‘Prière d’ un petit enfant nègre’ integrada no livro Balles d’or (1961). 

3 In “África e os seus problemas humanos” - Palestra proferida na Escola Industrial e Comercial do Mindelo em 24 de fevereiro de 1962. In Boletim de Propaganda e Informação, junho do 1962, pp. 15/16. 

4 Publicado na Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, de Léopold Sédar Senghor. PUF, 1948.

5 Boletim de Propaganda e Informação, fevereiro de 1951, p. 13. 

6 Claridade n.º 8, maio 1958, p. 24.

7 Boletim de Propaganda e Informação, novembro de 1959, p. 6. 

8 Idem, março de 1959, p. 8.

9 Caboverdianidade, africanidade e outros textos (1999), Ed. Spleen, p. 36.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1002 de 10 de Fevereiro de 2021. 

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Autoria:Adriana Carvalho,15 fev 2021 7:09

Editado porAndre Amaral  em  15 fev 2021 7:09

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