Novo livro de Adriana Carvalho utiliza a ficção como fonte histórica

PorAntónio Monteiro,21 out 2022 9:44

A obra “Crónicas de História da Educação –Recortes no Tempo” sob a chancela da Editora/Livraria Pedro Cardoso que será apresentada esta sexta-feira, na Praia, resulta das crónicas da autora publicadas no jornal Expresso das Ilhas entre princípios de 2017 e meados de 2021. O livro aborda temas sobre a cultura, a sociedade e a educação no passado que se reportam a temáticas ainda actuais. Em conversa com o Expresso das Ilhas, Adriana Carvalho, especialista em História da Edução e autora de uma dezena de livros, explica a nova metodologia seguida nas Crónicas, onde a escrita ficcional, em alguns casos, não é apenas um recurso ilustrativo da história, mas a fonte principal da narrativa. “Não me subordinei aos cânones que tenho observado ao longo da minha vida académica, em teses e artigos científicos, caracterizados pela ortodoxia da escrita”, ressalta.

Podia falar da génese das crónicas e do livro? 

Há mais ou menos cinco anos, pensei propor a um jornal a publicação de efemérides de acontecimentos notáveis da educação e cultura em Cabo Verde. Tinha acesso à matéria-prima no meu acervo pessoal sobre História da Educação e, naturalmente, no Arquivo Histórico Nacional. Os primeiros ensaios que tentei pareceram-me, limitados e pobres. Pareceu-me que deveria ir além da efeméride, recortando no tempo passado, episódios e itinerários da educação e cultura. Fiz essa proposta ao Expresso das Ilhas que, como sabe, a aceitou. Tentei uma experiência nova — escrever com regularidade para um jornal. Tudo começou no dia 11 de Janeiro de 2017 com o recorte de um texto de Eugénio Tavares sobre as línguas cabo-verdiana e portuguesa. Escolhi-o porque achei que poderia ser esclarecedor num momento em que, inesperadamente, irrompeu nas redes sociais uma polémica sobre a problemática “língua portuguesa, língua primeira ou segunda”. Comecei com uma coluna pequena, fui disputando mais espaço e consegui uma página inteira. Com alguma irregularidade (não consegui manter a periodicidade mensal) publiquei 41 textos que se foram aproximando do formato de crónicas. A última foi publicada no Expresso das Ilhas no dia 19 de Maio de 2021. Esta é a história dos (Re)cortes no Tempo. Mais tarde ao reler algumas crónicas, começou a germinar a ideia de as publicar em livro e a ideia ganhou força. Fiz como num jogo de cartas, baralhei-as, agrupei- -as em unidades temáticas, que deram origem aos sete capítulos do livro “Crónicas de História da Educação – Recortes no Tempo”. 

Afirma que o livro e as crónicas são um produto de risco. Podia explicar-se? 

Durante o meu percurso profissional, sempre na Educação, produzi dois tipos de textos. Como técnica fiz inúmeros pareceres, relatórios, planos e programas, sempre com a validação de autoridades educativas e de organizações internacionais. Como professora, naturalmente, planeei e escrevi muitas lições, artigos científicos e teses com os resultados de investigações avaliadas inter pares e em provas públicas de defesa de dissertações de mestrado e doutoramento. O escrutínio deu-me sempre confiança, particularmente, quando em sala de aula percebia o interesse dos meus alunos. Este percurso profissional deu-me de facto segurança, fui progredindo, sendo avaliada e as minhas práticas validadas e sancionadas. São as virtualidades da carreira e da utilização da escrita científica. Nas crónicas, o processo foi diferente, sem rede, aventurei-me a expor o que fui escrevendo. Recorri a fontes tradicionais, mas introduzi dois elementos novos: os registos autobiográficos e a ficção como fonte. As crónicas versaram temas muito diversos, a maioria, claramente de índole historiográfica, outros aproximaram- se da agenda de cada momento (por ex. os textos “Sobre manuais escolares”, “O segredo é acreditar que podemos”; “Eleições do reitor na Uni-CV – requer-se uma cultura de exigência”), outros com títulos um pouco impactantes (“Valem mais para Cabo Verde cem emigrantes da América que dez doutores”, “A palavra proibida”, “De tanga, porquê? – a imagética colonial”). Infelizmente nunca consegui saber se os temas interessaram mesmo os leitores, se foram pertinentes e úteis. Daí eu utilizar a expressão “produto de risco”. Repito, faltou-me o escrutínio. 

Qual a diferença entre a escrita académica e as crónicas deste livro? 

Nas breves narrativas que escrevi não me subordinei aos cânones que tenho observado ao longo da minha vida académica, em teses e artigos científicos, caracterizados pela ortodoxia da escrita em conformidade com as convenções consagradas nos meios universitários. Refiro-me, por exemplo, às normas que impõem um estilo de escrita e formatação para trabalhos académicos. Esta subversão verifica-se em particular na utilização da literatura, da ficção como fonte histórica, com o mesmo peso que os documentos de arquivo. 

Quais as virtudes e limites desta metodologia? 

Nas crónicas que reuni no capítulo “Histórias da Educação na Literatura”, a escrita ficcional não é apenas um recurso ilustrativo da história, é a fonte principal da narrativa, acrescentando factos, acontecimentos e ambientes. Dános o contexto. Atrevo-me a dizer que é a configuração poética do real. Perguntoume quais os limites desta metodologia? Nenhuma fonte é inócua. Devemos ter os mesmos cuidados com a literatura como fonte, que temos com os documentos de arquivo ou iconográficos. Nesta experiência nova para mim, procurei estabelecer relações de complementaridade entre os documentos e a ficção. Umas comprovando as outras e vice-versa. Por exemplo, a crónica Histórias da Educação - Muminha vai para a escola contém a história do Seminário Liceu de S. Nicolau, comprovada em documentos de arquivo e num conto de Baltasar Lopes. A verdade histórica é suportada por documentos publicados em Boletim Oficial – o decreto que o instituiu em 1866, as instruções com os direitos e deveres dos alunos, a missão dos professores numa alocução do Vice-Reitor, etc. O ambiente do Seminário, os alunos, os professores na sala de aula, as palmatoadas e, como se diz atualmente, o bullying sofrido por Muminha, que dá o nome à história. Muminha é o diminutivo de Múmia, menino doente, macilento, motivo de troça dos colegas. Como disse há pouco, o conto desvenda a vida de uma instituição com virtudes e defeitos como todas as instituições. 

Confirma que a história da educação em Cabo Verde está no romance Chiquinho? 

Confirmo que a história da educação está no romance Chiquinho e no conto Muminha vai para a escola. Mas também está em Capitão de Mar e Terra e Djunga de Teixeira de Sousa, que desvendam o mundo dos cursos de explicações particulares e da Escola Técnica do Mindelo. Está em Flagelados do Vento Leste de Manuel Lopes, através da história da professora Maria Alice numa escola em Santo Antão. Está na poesia de José Lopes, que conta a história do Seminário em sonetos, desde a sua criação ao fim quando se torna uma prisão política. 

No capítulo Espaços com História seleccionou apenas seis espaços. Qual foi o critério? 

Nenhum. Convencionei que cada sequência temática deveria ter no máximo seis crónicas. Escolhi as casas de educação na Praia e no Mindelo que melhor conheço e que reúnem um espólio cultural e arquitetónico que importa, na minha opinião, preservar e valorizar. Permita-me agora um pequeno desvio. Como em matéria de preservação do património nem tudo são desastres, é-me grato verificar a boa recuperação de, pelo menos, as fachadas de três espaços notáveis em torno da Pracinha da Escola Grande, na Praia: o antigo Centro de Estudos e Reitoria da Universidade de Cabo Verde; a Escola Grande e a antiga Biblioteca Pública, recentemente conhecida por Casa da Música. 

Qual o futuro do Ensino em Cabo Verde? 

Um futuro promissor, não só pela obra feita, como pela intenção anunciada pelo Ministro da Educação de alinhar o sistema de ensino com os padrões de qualidade dos países mais avançados. Preparar com ambição o futuro da educação pressupõe ultrapassar o imediatismo, estudar a evolução do sistema com ciência e pragmatismo, talvez com um pacto de regime nas questões fundamentais. Julgo que se impõe a clarificação dos métodos de ensino das línguas nacionais e a regeneração do ensino superior. O futuro tem de ir além de diagnósticos e planos estratégicos, que se repetem e por vezes cansam. Deve legitimar-se no pensamento crítico de educadores que defenderam precocemente a modernidade educativa, como o leitor poderá encontrar nas Crónicas, e em alianças com as famílias, as comunidades, as instituições de ciência e inovação, os espaços artísticos, etc.…. É um mundo de oportunidades.

Quem é Adriana Carvalho?

Maria Adriana Sousa Carvalho nasceu na Figueira da Foz, Portugal e reside na Cidade da Praia. É licenciada em História pela Universidade de Coimbra e doutorada em Ciências da Educação (especialidade em História da Educação) pela Universidade de Lisboa. É autora de artigos científicos, estudos e livros sobre a educação e a cultura em Cabo Verde. Publicou as seguintes obras: Ensino Básico Integrado (1998); O Objecto e a Escrita (com Ana M. Sousa, 2004); A Memória Educativa Recuperada no Cabo Verde Boletim (2006); A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde 1911-1926 (2007); O Liceu em Cabo Verde: Um Imperativo de Cidadania 1917-1975 (2011); Memórias do Liceu da Praia (2013, com Lourenço Gomes e outros autores); O Ensino Superior em Cabo Verde: O Contributo da Fundação Calouste Gulbenkian (2018); O Ensino Superior em Cabo Verde: Génese e Desenvolvimento (2019); O Passado Hoje – História do Liceu em Cabo Verde de 1860 a 1975 (2019); Crónicas de História da Educação – Recortes no Tempo 2022).

Texto publicado originalmente na edição nº1090 do Expresso das Ilhas de 19 de Outubro

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Autoria:António Monteiro,21 out 2022 9:44

Editado porAndre Amaral  em  16 mai 2023 23:27

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