Os Festivais Internacionais são “uma grande força para o desenvolvimento do cinema cabo-verdiano”

PorSara Almeida,6 nov 2022 9:21

Cineasta radicado nos EUA, antropólogo, docente universitário em Los Angeles, que continua “sempre a aprender”. Com um percurso que corre vários continentes e muitos filmes, Guenny Pires falou com o Expresso das ilhas sobre a sua vida e a visão do cinema, numa conversa em que o ponto de partida e chegada são Cabo Verde. O cineasta destaca, no seu olhar sobre o cinema, a função de educar e promover a identidade e cultura, dando projecção às histórias das gentes, que, dentro da sua individualidade, são também a História da Humanidade.

E fala sobre as fragilidades, necessidades e oportunidades para desenvolver o cinema em Cabo Verde, nomeadamente sobre os Festivais internacionais de cinema, que, aliás, tem vindo a promover. De recordar que já nos próximos dias 7 a 12, a ilha do Fogo é palco do II DjarFogo International Film Festival (DIFF), do qual Guenny Pires é director-executivo.

Guenny Pires nasceu na ilha do Fogo, em Mira-Mira e apesar de desde tenra idade ter vivido na cidade de São Filipe, amiúde fazia os 13 km que separam a localidade urbana da rural. 

“Criei-me com raiz no interior da ilha. No tempo de chuva, eu ia visitar a minha mãe e a minha família, para ajudar na agricultura”, lembra. 

Raízes fincadas, aos 12 anos navegou para a Praia para prosseguir os seus estudos no liceu. A partir daí, foi uma ida e vinda do Fogo. Foi para São Vicente estudar enfermagem, regressou, trabalhou, seguiu para a Praia, para o Instituto Pedagógico, para ser professor. 

Olhando para trás, não sabe situar ao certo quando começou o seu interesse por cinema. “Talvez fosse uma paixão de infância, mas não tinha nenhum conhecimento”. Talvez, arrisca, tenha começado com os westerns que via na “sala de cinema ao ar livre”, do sr. Zuca, em São Filipe, e que ainda hoje têm influência na sua “maneira de olhar cinema e de estar como realizador”, analisa.

Antes do cinema, de qualquer modo, veio a fotografia, uma paixão que despontou quando um familiar, que estava no estrangeiro, trouxe uma máquina fotográfica Canon. 

Houve também um marco: o ano de 95 quando, recorda-se, o vulcão do Fogo entrou em erupção. Guenny Pires, que então estava na Praia, regressou à ilha natal e, o acontecimento incentivou a que se interessasse mais pela história da ilha, a investigar, registar… “comecei a tirar fotografias assim, mais tipo aprendizagem”. 

Depois de 96, Guenny foi também trabalhar numa fábrica nos EUA, mas sempre voltava ao Fogo. “Eu ia e vinha, ia e vinha”. E na ilha Natal tinha já um estúdio de fotografia e muita pesquisa sobre as tradições do Fogo, nomeadamente sobre a Bandeira. 

A certa altura comprou a sua primeira câmara de filmar, uma JVC 30, que gravava em cassetes de 30 ou 45 minutos. Foi com aquela câmara que começou a fazer vídeo. Sozinho, “sem ninguém me mostrar nada, eu fui descobrir, fui estudar”. Filmava de tudo no Fogo, incluindo festas de casamento, e editava as fitas “com máquina muito rústica”. Depois, a convite, foi estudar para Portugal e não mais parou os estudos na área de antropologia visual e cinema. 

LA 

Durante um tempo, a vida foi feita entre Portugal e os EUA, onde continuava a trabalhar nas férias, ganhando dinheiro para, entre outros gastos, comprar equipamento. 

Em 2004 terminou o seu mestrado em Portugal, na área de cinema documental, apresentando um documentário sobre o percurso de Cabo Verde. Por essa altura, já tinha decidido que ainda não voltaria ao seu país. Antes iria para EUA, onde poderia continuar a estudar, a “preparar-se melhor”. 

Quando chegou aos EUA, tentou inscrever o seu filme documental sobre Cabo Verde no conhecido Pan African Film & Arts Festival (PAFF), que se realiza anualmente em Los Angeles. As inscrições já tinham encerrado, mas o facto de ser um filme cabo- -verdiano, país que nunca tinha sido apresentado no certame, criou curiosidade. Assim Ayuko Babu, director do PAFF, aceitou a candidatura, o filme acabou por ser seleccionado e Guenny rumou do frio Massachusetts, para a solarenga Los Angeles. Encantouse com a cidade e com o festival onde foi “muito bem recebido”. Estávamos em 2005. Por aí ficou. Co-fundou no mesmo ano a produtora Txan Film “para criar uma estrutura para produzir de maneira independente”. 

E continuou a estudar, a estudar. “Mesmo com toda esta caminhada, eu ainda sou um estudante”, diz. E a trabalhar em todas as vertentes do cinema. “Eu, que era realizador e já ganhava prémios, trabalhei como assistente de produção em muitos filmes e projectos. Depois as coisas avançaram naturalmente”. 

“Hoje sinto orgulho do caminho que segui até porque não há muitos cineastas em Cabo Verde. É uma forma também de dar a minha colaboração, de uma maneira humilde”, diz. 

Desde 2005, muitos foram, pois, os projectos em que Guenny Pires se envolveu e os filmes por ele realizados. No seu portfólio estão, nomeadamente, os premiados “Contrato” (2010) e “O Último Desejo do Vulcão” (2020).

O Cinema de Guenny Pires 

Breve bio feita, Guenny Pires define a sua obra cinematográfica como um cinema “africano, de raiz política”. Aliás, no seu entender é fundamental que o cinema seja usado “para educar a sociedade” e levar as pessoas “a pensar pelas suas próprias cabeças”. 

Como? Mostrando estórias e pessoas que não podem projectar- se por esta via. “O meu trabalho como cineasta é dar-lhes voz, gravar as suas histórias, divulgar essas suas histórias pelo mundo fora”, explica.

“Os meus filmes têm a ver com intervenção sobre cultura, sobre história, sobre política, mas sobretudo sobre história da humanidade, histórias que tocam as pessoas”. 

Por exemplo, o seu premiado filme Contrato (2010), que trata dos contratos feitos no tempo colonial pelos cabo-verdianos para trabalhar nas roças de São Tomé e Príncipe, e as dificuldades em que estas pessoas viviam (e ainda vivem), foi uma dedicatória à sua mãe e seu tio. 

Na sua obra, “essa coisa que se criou na Cidade Velha, primeiro porto de escravatura” é, pois, o ponto de partida. Os filmes trazem assim um certo olhar, que visa “ajudar a compreender África, para compreender o valor de Cabo Verde no contexto mundial, para conhecer um pouco da diáspora cabo-verdiana e africana”. 

Aliás, procurar a sua história e compreender as suas origens pessoais é constante na sua obra, como mostra o filme “Em busca da minha identidade”, que parte da sua jornada pessoal para aprender sobre a família e origens, e compreender mais sobre si próprio.

Guenny Pires, que também trabalha nas grandes produções de Hollywwod, “um mundo incrivelmente interessante”, pretende hoje, continuar a produzir filmes que ajudem todos “a perceber o Outro e aceitar o Outro como igual”, refere. 

O cinema e Cabo Verde 

Guenny Pires fez a sua carreira no cinema nos EUA, onde vive, mas sempre ligado a Cabo Verde e África, até pela temática do seu cinema. 

Olhando, em geral, o cinema cabo-verdiano, o cineasta considera que é “um cinema que ainda se está a desenvolver” e faltam ainda muitos passos para que Cabo Verde consiga “a sua linguagem e a sua maneira”. 

O país deve, por exemplo, (do ponto de vista do conteúdo) olhar para si. Há “muitas coisas para explorar, todas as ilhas têm potencial de cultura, de História, sobretudo histórias de pessoas – não existimos só de cultura e História, mas como ser humano. É o que valoriza o nosso cinema, que pode levar o nosso cinema de facto a desenvolver”, observa. 

E há ainda muito a fazer e aprender a nível técnico, da formação e storytelling. “É necessário olhar as questões técnicas e trabalhar para melhorar. Sobretudo, arranjar mais e melhores equipamentos, ter melhores investimentos tanto de privados como do Estado, criar condições para que de facto o cinema de Cabo Verde possa competir, por exemplo com o continente africano”, aponta. 

Como lembra, ainda falando do continente, são vários os países africanos que têm apostado no seu cinema: Nigéria (com Nollywood, por exemplo), África do Sul, Senegal… enfim, vários. Só na Tunísia, ilustra, há cerca de 14 escolas de cinema. E o Estado paga aos cineastas para fazer filmes.

“Cabo Verde tem outras dificuldades, outros tipos de problemas, mas se queremos de facto ter um cinema sério, competente, temos que investir na formação de cineastas”. 

Além da a formação universitária em Cinema (não “em ciências da Comunicação” ou afins, mas cinema) é, para o cineasta, importante promover a produção de filmes com pessoas que já têm mais experiência, “outra dimensão”, e conhecimentos técnicos. 

Outro handicap, é o storytelling. “É importante saber contar uma história”, sublinha. Muitas vezes o ritmo é demasiado lento, a edição monótona. 

“É tudo muito devagar, uma pessoa dorme”. É preciso cativar o espectador em 10 a 30 segundos, mas isso não acontece. E “às vezes, só quase no fim do filme, é que vimos a perceber o que está a acontecer”, observa.

Entretanto, reconhece, nos últimos anos, têm sido criadas algumas estruturas e condições para valorizar o cinema e o seu desenvolvimento no país. A título de exemplo, aponta a criação da Associação de Cinema e do Núcleo Nacional do Cinema (NuNaC), no ano passado. Enfim, “está a melhorar”. 

Quanto à questão do exíguo mercado cabo-verdiano, o cineasta descarta a ideia de que é uma limitação. 

“Mercado há. Não há mercado local, mas há mercado fora”, destaca. Porém, reforça, para chegar a esses mercados é necessário a referida qualidade técnica, que ainda Cabo Verde em geral não tem, “formação e criar também a mentalidade de que ser cineasta é uma profissão”, e não uma “brincadeira”, como ainda é vista no país.

Ainda sobre “mercado”, um filme feito em Cabo Verde pode chegar a toda a parte do mundo por via dos festivais, lembra. 

Festivais 

E do mundo muita coisa pode vir para os festivais cá se realizam. “Mas é necessário que os cineastas nacionais se interessem por filmes de festivais que se fazem no país”, observa. 

A experiência de Guenny Pires nas Mostras e Festivais internacionais em Cabo verde é já longa. 

Durante sete anos, por exemplo, esteve na coordenação do Festival Internacional do Cinema da Praia – Plateau, do qual foi também presidente do Júri. Sobre este festival, por onde passaram vários cineastas internacionais, apesar das suas dificuldades, faz um balanço muito positivo: “Foi muito importante no desenvolvimento de cinema nacional”. 

“Demos à Praia voz dentro do contexto do cinema, por exemplo, da CPLP, e é necessário continuar com os festivais”, exorta. 

Estes, reforça, são eventos que ajudam a criar contactos e conhecimentos, promover o país e criar uma imagem de marca. 

Entretanto, desde 2019 desenhou- se um novo festival, que deveria acontecer em 2020, mas foi adiando devido à pandemia. Assim, no ano passado, decorreu o I Djarfogo International Film Festival (ver caixa), que este ano volta para a sua 2.ª edição, e do qual Guenny Pires é director- -executivo. 

“Tenho orgulho em todos os projectos que fiz, até porque a minha intenção é sempre ajudar Cabo Verde” a ser reconhecido internacionalmente, diz.

A 2.ª edição do DjarFogo International Film Festival vai decorrer na ilha do Fogo de 8 a 12 de Novembro. A abertura oficial acontece na Praia, no dia 7. 

Guenny Pires, director-executivo deste Festival que é promovido pela Txan Film Productions & Visual Arts, revela que, este ano, houve cerca de mil filmes inscritos, entre os quais foram seleccionados 125 para exibição. Em competição, para 6 categorias, estão 25 filmes de vários pontos do mundo. 

À margem das exibições, serão realizados Masterclass, fóruns e também workshops. 

O evento tem como lema storytlling as a education tool e “um lado muito forte deste festival, além da mostra, de trazer cineastas, e de todo o convívio, é a possibilidade de gravar histórias de Cabo Verde, do seu povo e diáspora” que podem ser usadas nas escolas, museus e outros locais, destaca. 

O DIFF visa pois colocar Cabo Verde, e o Fogo (Reserva de Biosfera Mundial da UNESCO aprovada em 2020), no mapa-mundi do cinema, promovendo o desenvolvimento do cinema nacional, colaborações e atrair outros cineastas para aqui filmarem. Aliás, um dos objectivos do Festival é criar o Cabo Verde FilmMarket, uma espécie de fórum de discussão entre cineastas, por forma promover a co-produção com outros cineastas e outros países. 

Guenny Pires destaca ainda, no programa do Festival, o debate que vai haver no dia 7, no Palácio da Cultura Ildo Lobo (Praia), “sobre questões da produção cinematográfica, o audiovisual ligado à cultura, património cultural e Turismo”. Para si é fundamental a coordenação entre esses sectores, para desenvolver o país, o cinema do país e criar uma imagem de marca de Cabo Verde. 

Entretanto, o momento é também de homenagem a Ousmane Sembène (considerado o pai do cinema africano) e a Safy Faye (primeira mulher da África ocidental a realizar uma longa metragem). Serão ainda homenageados outros cineastas africanos de referência, bem como figuras que se destacaram na sociedade foguense como Abílio Monteiro Macedo, Diminguinha Truca e Bina Manzinha. O DIFF é um festival de organização independente, promovido pela Txan Film, e que conta com diversos parceiros nacionais internacionais.

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Texto publicado originalmente na edição nº1092 do Expresso das Ilhas de 02 de Novembro

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Autoria:Sara Almeida,6 nov 2022 9:21

Editado porFretson Rocha  em  28 jul 2023 23:29

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