Amílcar Spencer Lopes
Uma maneira muito própria de tocar, ao mesmo tempo sentida e alegre
Apesar de ter desenvolvido diversas actividades, ao longo dos seus 83 anos de vida, é no violão que Humbertona deixa a sua marca. Humbertona é, incontestavelmente, uma referência no violão cabo-verdiano.
A primeira lembrança que tenho do Humberto Bettencourt Santos, como músico, remonta aos idos de sessenta, do século passado, em Mindelo, quando ele integrava o conjunto RITMOS CABO-VERDIANOS, como viola solo. Uma novidade, já que, nessa altura não era habitual a utilização de instrumentos eléctricos, e ele tocava, precisamente, a viola eléctrica, do conjunto.
Por essa ocasião, o RITMOS CABO-VERDIANOS gravou um EP 45 rotações, em que Humbertona interpreta, de maneira sublime e com o título de Unino, a morna Papá Joquim Paris.
Pouco depois, ele vai estudar para a Bélgica e, uns anos mais tarde dá à estampa o LP Lágrimas e Dor. Um acústico soberbo, que vem confirmar a sensibilidade e o dom natural do solista. Um percurso – quiçá um projecto – que atinge o seu zénite com Sodade, rapsódia de mornas e coladeiras, já nos anos 70.
De facto, numa fase importante da história do povo destas ilhas e juntamente com outros nacionalistas, Humbertona participa, através da música e outras expressões culturais, no processo de consciencialização nacional e promoção dos nossos valores identitários. Na linha do Chiquinho e na tradição de Eugénio Tavares e outos intelectuais cabo-verdianos, Humbertona explora o veio cultural das ilhas e, armado de pau-e-corda, penetra, com mestria, no filão musical, pelos canais da morna e da coladeira. Um percurso feito com dedicação e humildade.
Sobressai, especialmente, em Humbertona a maneira descontraída de dedilhar mornas, ao violão. Uma maneira muito própria de tocar, ao mesmo tempo sentida e alegre, reveladora, a meu ver, de peculiar sensibilidade artística.
Humbertona deixa, sim, marca no violão cabo-verdiano e muita saudade no coração dos amigos e nos apreciadores da música tradicional cabo-verdiana.
Vasco Martins
Humbertona emprestou à tradição do violão cabo-verdiano uma notável particularidade: a subtileza e a elegância
Humbertona significa violão, o grande violão cabo-verdiano. Porque há um estilo de tocar violão cabo-verdiano. Em Humbertona esse estilo se cristaliza num diamante: um grande equilíbrio nas melodias, a rítmica, bordões, solos e improvisos e até percussão no espelho do violão.
Naturalmente que antes e depois de Humbertona, guitarristas de mérito existiram e existem. Mas a sua originalidade e intuição na escolha judiciosa de um vasto reportório, fazem de Humbertona um dos maiores guitarristas cabo-verdianos que se dedicam à morna e à coladeira.
Humbertona emprestou à tradição do violão cabo-verdiano uma notável particularidade: a subtileza e a elegância, no sentido da simplicidade aristocrática, isto é, da excelência. Em todos os álbuns que gravou, estão a emoção e a grandeza de uma alma de artista, sobretudo na morna, mas também na coladeira. A grande referência, e com absoluta justeza, foi o álbum Sodade, acompanhado pelo excelente guitarrista Toi d’Bibia. Rapsódia de mornas e coladeiras. Um marco decisivo na música instrumental de Cabo Verde, que posteriormente nunca deixou de encantar gerações de melómanos e onde muitos guitarristas foram inspirar.
O estilo de Humbertona é único, de um lirismo romântico, onde está subjacente o espírito musical destas ilhas. Daí que a sua arte nos toca profundamente e se torna universal.
Em 2015, na Cidade da Praia, Humbertona convidou-me para almoçar com ele em sua casa. Almoço vegetariano, mas com bom vinho, que ele evitou. Depois do almoço ele tocou algumas peças clássicas. Também toquei temas, pois havia só um violão. Desse feliz encontro, adveio uma entrevista (que foi publicada no Expresso das Ilhas) que há muitos anos tinha pensado em fazer com ele, sobretudo à volta do luminoso disco Sodade que ainda é e continuará a ser multigeracional e eterno. Preferi fazer perguntas lacónicas e deixar fluir a sua memória, a sua alma de um músico que sempre admirei, desde muito cedo e o nosso primeiro encontro foi em 1976, quando ele me visitou quando soube que eu tinha feito uns estudos ainda básicos sobre a Morna. Lembro que lhe ofereci manuscritos. A empatia desse encontro perdurou sempre.
Humbertona partiu desta existência e deste planeta. Seja onde estiver, a sua musicalidade permanece cristalina e perpétua. Sodade sim, esse conceito que o cabo-verdiano contribui para a sua expansão quase absoluta. Vita brevis, ars longa, querido Humberto.
Manuel de Candinho
Uma referência incontestável do violão Cabo-Verdiano
Confesso aqui que o meu gosto pela música começou na década de 70 quando através da Emissora Nacional escutara solos do Humbertona. Era fascinante ouvir mornas interpretadas com alma e uma sonoridade doce extraída das cordas de nylon. Posso afirmar que eu enquanto violonista, a minha escola começou nessa ocasião, tendo ele como o meu primeiro inspirador e motivo para me enveredar pelo solo. Há mais músicos que dizem que Humertona era/é uma escola, pois serviu de referência para muitos que hoje são grandes solistas (sou dessa turma).
Serviria de exemplo aos pais de antigamente que impediam os filhos de tocar para não atrapalhar outros estudos. Isso acontecia porque esses não tinham consciência de que a música aumenta a nossa capacidade intelectual e estimula a vontade de aprender.
O exemplo do Humbertona foi que conciliou a aprendizagem do violão com outras formações e conseguiu ser uma referência incontestável do violão Cabo-Verdiano e paralelamente formação superior em diferentes áreas.
Durante a sua vida soube aproveitar de tudo que aprendeu.
Exerceu com qualidade a profissão proveniente das formações académicas e nos tempos livres repunha energia tocando violão para o seu lazer e partilhar com os seus fãs aquilo que bem sabia fazer.
Resumindo, Humbertona era uma figura multifacetada, perfeccionista em tudo o que fazia e um verdadeiro exemplo a seguir.
Por isso mereceu a homenagem feita pelo projecto “GUITARRADA DO ATLÂNTICO”, sob a minha orientação artística, em 2018, na Assembleia Nacional. Com ele presente na plateia sentiu-se valorizado e reconhecido. Teve a participação de renomados violonistas nacionais e estrangeiros.
Keli é nha’s palavras pa nos “PAPÁ DI BOLA” ki dexanu.
Violon ta continua.
Solange Cesarovna
O Inesquecível Homem-Violão
Com uma obra musical de excelência e melodia cativante, Humbertona é indiscutivelmente o nosso inesquecível homem-violão e um dos principais solistas de Cabo Verde de todos os tempos.
A forma peculiar como introduziu o bordão nos solos do violão da música tradicional cabo-verdiana conferiu um sabor único aos solos das mornas e coladeiras, executados com maestria pelos dedos mágicos de Humbertona. Sua rica e envolvente discografia, produzida entre os anos de 1966 e 1973, juntamente com a compilação dos LPs “Despedida” e “Sodade”, dada a estampa em 1992, constituem verdadeiras obras-primas na história da música instrumental cabo-verdiana. As suas interpretações com maestria, enriquecem magnificamente o universo da música tradicional de Cabo Verde.
Perdemos um ícone da nossa música instrumental, alguém que compartilhou com o mundo sua identidade através de melodias emocionantes que se eternizaram, deixando legados para várias gerações que continuam a seguir seus solos extraordinários, os quais permanecem armazenados nos acervos da riqueza e diversidade cultural do nosso país.
A obra musical de Humbertona merece ser reeditada, para que o país e as novas gerações possam continuar a cultivar e beber da sua exímia contribuição. É imprescindível criar as condições necessárias para a justa preservação do seu legado musical e para a contínua divulgação dos seus solos únicos e envolventes, que são motivo de grande orgulho e inspiração para o país e para os músicos cabo-verdianos.
Humbertona continuará vivo no nosso universo musical e na nossa memória!
Gláucia Nogueira
Uma playlist emocional chamada ‘solos de Humbertona’
Tenho a certeza de que, ao longo de anos e anos, muitos cabo-verdianos, ou pessoas que viveram em Cabo Verde, irão recordar-se do genérico de uma emissão da Rádio de Cabo Verde que começava com os acordes iniciais da rapsódia de mornas que Humbertona gravou no seu LP Sodade, no qual é acompanhado por Toy d’Bibia: “Lora”, “Perseguida”, “Mal de Amor”, “Meu Bem se eu não te Amo”… Na verdade, são várias as gravações de Humbertona que serviram como abertura de programas radiofónicos.
Cada pessoa que viveu parte da sua vida ou toda ela em Cabo Verde tem certamente recordações muito próprias das músicas que fizeram parte das suas vivências nesta ou naquela circunstância, ou têm aquelas preferidas, que marcaram momentos especiais.
Os trechos da rapsódia ou outros extraídos de álbuns de Humbertona, que diariamente ou semanalmente compareceram na programação da rádio, farão parte, acredito, de todas essas playlists que trazemos no coração e na memória, pois é uma parte incontornável dessa “banda sonora” chamada Cabo Verde.
Já se disse que Cabo Verde é uma música. Prefiro dizer que são várias, como numa rapsódia em solo de violão por Humbertona.
Paulo Lobo Linhares
Doce intensidade musical
Não sei falar de Humbertona por ter sido um dos músicos que a par de um restrito leque de outros – transportaram-me para o plano do sentir…e na verdade o sentir não consegue ser explicado por corrermos o risco de não conseguir dizer tudo.
Sei que me traduziu momentos fortíssimos como o de me ter passado (talvez) pela primeira vez o “sentir Cabo-verdiano através da música”; o som das cordas do seu violão foi para mim certamente o som do arquipélago.
Sei também que me mostrou um dos momentos mais lindos da minha vida musical, quando presenciei o encontro de dois amigos que por causa da música tornaram-se amigos: gravaram e não se viam há décadas. Não me esqueço desse encontro e do abraço de Humbertona e Marcelo Melo (Quinteto Violado). Obrigado música…
Sei que musicalmente me mostrou a beleza de tocar na mais intensa nota, que em mim transportava logo para o plano do sentir … num dedilhar de violão, sereno, calmo, não se apercebendo naturalmente quão intenso me arrebatava e claramente a quem o ouvia: quer fosse num palco ou numa tocatina entre amigos. A tal doce intensidade…
Mostrou-me a liberdade de fugir ao “normal” do tema, criando deliciosos e mínimos momentos que acompanhava com um ligeiro sorriso… também por isso deixou “sodade”.
Permitam-me relevar aqui que enquanto músico foi de uma humildade notável, do tamanho do mar de Dorival que tanto terá ouvido. Não teve focos que o iluminassem, mas teve luz – vinda de uma alma feita de notas…o si…o lá…e outras que como acima disse: docemente sentimos de forma intensa…
Obrigado, Humbertona. Continuarei a descobrir na tua música o que deixaste, pois para mim não se “fecha” tudo no pesar, mas sim no que nos deixaste no pensar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1133 de 16 de Agosto de 2023.