“Rufino Maurício, o enfermeiro dos mil ofícios” é nova obra de César Monteiro

PorAntónio Monteiro,25 ago 2023 7:03

Rufino Maurício e César Monteiro
Rufino Maurício e César Monteiro

César Monteiro é um sociólogo eclético, tendo passado sucessivamente da área da sua especialidade, a sociologia das migrações, para a música, a diplomacia e, mais recentemente para a saúde, cujo livro “Rufino Maurício, o enfermeiro dos mil ofícios” será lançado esta sexta-feira, 25, na Cidade da Ribeira Grande, Santo Antão, com apresentação a cargo do médico António Pedro Delgado.

O livro combina o método da história de vida com a dimensão científica, na perspetiva da sociologia da saúde. Para sua elaboração César Monteiro entrevistou cerca de 30 profissionais da área da saúde e afins e o próprio biografado e familiares sobre o seu intenso percurso de vida, através de uma narrativa construída. “Rufino Maurício constrói uma história dotada de sentido próprio, onde se entrecruzam vidas de diferentes gerações marcadas por contextos sociais diferenciados”, escreve o autor. “Os santantonenses de lés-a-lés, e particularmente do concelho de Ribeira Grande, são tributários de uma enorme dívida de gratidão para com o seu carismático Enfermeiro por tudo o que este destacado profissional da saúde fez em prol da ilha que o viu nascer e das suas gentes”, enaltece uma das entrevistadas no livro.


Como e quando e surgiu a ideia de escrever um livro sobre o enfermeiro Rufino Maurício?

Em boa verdade, nunca esteve nos meus propósitos escrever qualquer livro ligado ao domínio da saúde, em geral, nem à enfermagem, em particular, já que a temática nem o objecto de estudo se inscrevem na minha linha prioritária de pesquisa sociológica. Ainda no início deste ano, há escassos meses, telefonou-me uma das filhas de Rufino Maurício, em nome da família, a convidar-me para escrever uma biografia do pai, por ocasião da celebração do seu nonagésimo aniversário natalício, que será assinalada no próximo dia 29 de Agosto. Seja ela qual for, uma biografia, em rigor, não é mais do que uma interpretação subjectiva da trajetória da vida do sujeito biografado, numa relação entre as suas acções individuais e factos históricos contextualizados e ancorados no espaço e no tempo, ocorridos, no caso em apreço do emblemático enfermeiro, desde a sua infância, entre as ilhas de Santo Antão, onde nasce e cresce, e São Vicente, onde se forma em enfermagem, até o término da sua actividade profissional. Assim, em vez de me circunscrever à escrita de uma mera biografia, em jeito de relato cronológico, afunilada apenas para o local dos acontecimentos e para as opiniões dos sujeitos envolvidos, percepções e interpretações do passado, optei por um projecto mais desafiante e ambicioso, socorrendo-me da história de vida, um método de investigação de cunho qualitativo, já mais rigoroso, adoptado pela Sociologia e pela Antropologia. Priorizando, igualmente, o meu “olhar exterior e objectivo” de pesquisador, e tendo em linha de conta o perfil do enfermeiro que, mormente nas décadas de 60 e 70, fez um meritório e valioso trabalho em Santo Antão, particularmente na Ribeira Grande, onde exerceu quase toda a sua actividade profissional, no domínio da saúde, de resto amplamente reconhecido pela população do concelho, na linha do método da história de vida. Procedi, num primeiro momento, à recolha intensiva de dados de carácter biográfico e de factores subjectivos, que então condicionavam o exercício da enfermagem naquelas condições adversas em que a praticou. A partir, pois, de uma série de entrevistas em profundidade com o próprio biografado, as filhas, os irmãos e cunhado, amigos próximos, alguns médicos e enfermeiros que trabalharam com ele, primeiro, nos Hospitais Centrais de S. Vicente e da Praia e, finalmente, no Posto Sanitário e Hospital da Ribeira Grande, propus-me, pela via da pesquisa, estabelecer uma ponte articulada entre a trajectória do narrador-sujeito e a sua história colectiva e social, através de narrativas contextualizadas e dotadas de sentido. Sem, todavia, me cingir à mera descrição biográfica do enfermeiro. A sua história de vida permitiu-me, por um lado, ter contactos com diferentes memórias, e, por outro, reconstituir o seu percurso biográfico, enquanto sujeito principal da pesquisa, e episódios, ou etapas particulares desse mesmo episódio, a partir das suas experiências de vida, dos factos mais relevantes da sua existência e dos seus valores culturais.

Apesar do título, o livro acaba por ser a saga da família Maurício, a começar pelo pai do biografado, Pedro Maurício, e termina com os netos do enfermeiro, um dos quais, aliás, fez a capa e a contracapa do livro. Faltava apenas a árvore genealógica da Família Maurício, à semelhança do genial romance “Cem Anos de Solidão”, do colombiano Gabriel García Márquez e de “A Família Trago”, do nosso conterrâneo Germano Almeida. Foi o seu propósito inicial narrar a história de toda a sua família e seus descendentes?

Não me propunha, tal como afirmei inicialmente, narrar a história de toda a família de Rufino Maurício e seus descendentes, mas, tão somente, servir-me de alguns dados de natureza biográfica devidamente contextualizados, que me facilitassem o entendimento e a compreensão do trajecto de vida do enfermeiro, a partir de factos reais e acontecimentos marcantes ocorridos ao longo da sua vasta trajectória profissional. A narração mínima e possível da história do tronco familiar do enfermeiro e seus descendentes decorre precisamente das exigências do próprio processo de investigação, que se tornou cada vez mais abrangente e complexo, à medida que evoluía, e, ainda, da necessidade de um maior conhecimento das condições de vida e do ambiente social, cultural e identitário que o rodeava. Apesar de, à partida, eu não ter a veleidade de construir qualquer árvore genealógica da família Maurício, ancorada num tronco comum, o certo é que, ditado pela necessidade do conhecimento mais aturado do emblemático profissional da área de saúde da ilha de Santo Antão, o projecto foi-se alargando, passando de uma mera biografia para um ensaio sociológico, na primeira fase, e, finalmente, para um livro de duas centenas de páginas, à medida que decorria o trabalho de campo e aumentava o número de entrevistados. Assim, os 27 sujeitos entrevistados, incluindo o próprio enfermeiro, constituíram uma pequena amostra sociologicamente representativa de familiares próximos, companheiros, médicos e colegas enfermeiros, que disponibilizaram informação suficiente e essencial sobre o percurso de vida dessa figura central, designadamente, a sua origem e respectivos processos de socialização, o seu tronco familiar e os seus descendentes, num primeiro momento da pesquisa. Naturalmente, todo o percurso profissional de Rufino Maurício, desde carpinteiro e agricultor, passando pela enfermagem, a partir de 1965, e pela fotografia, já muito mais tarde, num processo de mobilidade social. Quando menos se esperava, resultaria um livro de 204 páginas estruturado em cinco capítulos, dois dos quais inteiramente consagrados ao tronco familiar, ao trajecto de vida de Rufino Calazans Maurício e à sua inserção na família, enquanto os três últimos abordam as suas relações com médicos e seus pares enfermeiros, a sua imagem ou representação social e o reconhecimento públicos, privilegiando uma visão integrada. Nesta obra de cunho essencialmente biográfico, os depoimentos orais dos entrevistados são reforçados e validados através da consulta de documentos pessoais e aparecem no fim, na respectiva secção de anexos.

O seu livro faz o cruzamento entre o género memorialista e a investigação sociológica no campo da sociologia da saúde. É uma metodologia bastante incomum entre nós. Como avalia o resultado?

Como tenho vindo a reiterar, a intenção inicial do projecto não previa qualquer incursão sociológica por nenhuma área especializada que não fosse a história de vida do enfermeiro devidamente contextualizada e documentada. Pelo que me é dado a conhecer, não há estudos sociológicos, na área da saúde em Cabo Verde tornados públicos, pelo que se está perante uma área de investigação inédita e verdadeiramente desafiante para todos quantos investigam nesse domínio concrecto. Extravasando o próprio objectivo inicial da história de vida do enfermeiro, a partir das narrativas possíveis dos sujeitos envolvidos, resolvi colocar no centro do debate do livro, nos capítulos 3 e 4, as relações de trabalho entre enfermeiros e médicos caraterizadas, sobretudo no passado, por profundas assimetrias que, ainda hoje, subsistem, em menor escala, é certo. Na reconstrução da life story de Rufino Maurício, parte-se das suas vivências e experiências profissionais ao serviço da saúde em Cabo Verde, mas sem nunca deixar fora do debate e da análise a figura central do livro. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma incursão minha inédita, cujo mérito é o de, para lá da relevância da sua dimensão biográfica, chamar a atenção para a necessidade de uma reflexão sobre o sistema de saúde nacional, numa determinada perspetiva, e, particularmente, em torno dos seus principais actores – os enfermeiros e os médicos – das suas disfuncionalidades e, ainda, à volta de uma perspectiva mais integradora e inclusiva, em contraposição ao modelo biomédico centrado na tecnologia.

As suas últimas incursões sociológicas são a diplomacia e, agora, neste livro, a saúde. Como explica o seu interesse eclético, na área da investigação sociológica, passando da sociologia das migrações para a música, a diplomacia e, recentemente, a saúde?

Considero-me um sociólogo eclético, do ponto de vista teórico-metodológico, isto é, do ponto de vista do interesse pelos diversos paradigmas sociológicos, pelas diversas estratégias metodológicas e, ainda, pelos variados domínios e temáticas de investigação. Na verdade, antes de me enveredar pela sociologia das migrações, através do meu primeiro livro pioneiro intitulado “Comunidade imigrada. Visão sociológica. O caso da Itália”, editado em 1997, defendera a minha monografia de licenciatura em Sociologia, em Julho de 1980, na Universidade de Havana, sobre o contributo da presença africana na formação do sincretismo cultural em Cuba, que será editada em livro no próximo mês de Novembro do corrente ano. Entretanto, com o decorrer do tempo e a acumulação de experiência e conhecimento científico, a minha linha de investigação tem-se consolidado e diversificado, do ponto de vista temático e dos objetos de estudo, passando, sucessivamente, das migrações para a música, diplomacia e saúde, privilegiando visões mais alargadas e estratégias metodológicas variadas, mercê, sobretudo, do meu curso de doutoramento em Sociologia no ISCTE-IUL e da minha formação na área das Ciências Musicais na Universidade Nova de Lisboa concluídos em Portugal, na primeira década de 2000.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1134 de 23 de Agosto de 2023. 

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Autoria:António Monteiro,25 ago 2023 7:03

Editado porSara Almeida  em  14 mai 2024 23:30

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