Kierkegaard e o valor da existência como singularidade

PorCarlos Bellino Sacadura,30 set 2025 11:45

Soren Kierkegaard é o precursor do existencialismo ou filosofia da existência. Manteve uma relação ambivalente com Hegel: a rejeição e o fascínio, a rotura e a retomada, a distância e a proximidade, a oposição e a integração.

Ambos partilham a problemática da historicidade como tema fundamental das suas filosofias, mas enquadram-na de modo diverso. Hegel procura esclarece-la no âmbito de um sistema racional do Saber Absoluto, enquanto Kierkegaard afirma que nenhum sistema ou razão podem entender a vida, a qual excede qualquer lógica, racionalidade ou sistematização. Hegel é o pensador do universal, e Kierkegaard do singular ou individual. Assim, a história universal ou do mundo não interessa a Kierkegaard, porque não foi experienciada por ele. Só a história da existência individual, pessoal ou singular – aquela cada um de nós viveu – é objecto da sua atenção. Kierkegaard compara a filosofia hegeliana a um vasto palácio com inúmeras divisões, ficando a existência individual perdida nessa imensidade. O mesmo acontece com os sistemas filosóficos com ambição de abarcar todo o saber: a verdade não é a totalidade, o verdadeiro não é o todo, mas sim o indivíduo ou a singularidade da existência única. À afirmação de Hegel – o verdadeiro é o todo, ou a verdade é a totalidade, Kierkegaard contrapõe – a verdade é a subjectividade, ou seja, não é anónima ou indiferenciada, mas pessoalmente vivenciada.

Walter Benjamin veio a retomar esta ideia em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Ao longo da história, as obras de arte tinham uma aura – aquilo que as tornava únicas ou singulares. Com a reprodução técnica – na imprensa ou no meio digital – essa índole única ou singular perde-se, porque podemos multiplicar as reproduções, por exemplo, dos quadros, ma com isso perdemos a aura da obra de arte, aquilo que a torna única. O que Kierkegaard procurou foi conseguir exprimir o que temos de único na nossa vida, aproximando a filosofia da vivência própria e da existência pessoal ou singularizada, em vez da universalidade abstracta. É claro que, sendo individualizado, o percurso de Kierkegaard não é transponível para qualquer outro, mas constitui um exemplo sobre um modo de traçá-lo ou de exprimi-lo.

Para Kierkegaard, há três etapas da vida humana que a configuram através da experiência estética, ética e religiosa, focadas na obra Estádios no caminho da vida. No estádio estético, faz-se uma referência ao sensível, mais do que à arte. Trata-se de viver no instante, no imediato, encarando a vida como um jogo sem regras nem compromissos, exemplificado pelas figuras do sedutor realmente existente que era Giacomo Casanova, e da sua réplica literária na figura de Don Juan. No estádio ético, superior ao estético, efectua-se um compromisso com a sociedade e com os outros passando-se a assumir um compromisso no amor – o casamento – e no trabalho. No último e mais elevado estádio, o religioso, o ser humano finito, através da fé – não a dos filósofos, mas a bíblica, de Abraão, Isaac e Jacob – dá um salto para o Infinito na forma de um compromisso com Deus.

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A concepção de uma filosofia que começa pela experiência vivida, só depois pensada ou reflectida, foi precursora do existencialismo ou filosofia da existência, sendo Kierkegaard uma referência para pensadores como Heidegger, Karl Jaspers ou Gabriel Marcel, influenciando sobretudo o chamado existencialismo cristão. A caracterização de Kierkegaard como filósofo irracionalista causou muitas confusões, como se ele regredisse para um nível inferior ou aquém da razão. Pelo contrário o significado de irracional no seu pensamento é o de algo superior ou incaptável por uma racionalidade que o Iluminismo (excepto Kant) (e, mais tarde, o positivismo) erigia em princípio supremo de inteligibilidade e acção. No mundo actual, em que se tende a valorizar acima de tudo a racionalidade científica ou técnica, e as redes massificam os utentes como consumidores, mas não como responsáveis pelas suas opções, é preciso revalorizar a experiência pessoal e a autonomia individual, como propõe Kierkegaard. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.

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Autoria:Carlos Bellino Sacadura,30 set 2025 11:45

Editado porAndre Amaral  em  1 out 2025 0:00

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