Este artigo surge na sequência de ter chegado a mim um texto na rede social Facebook, que tinha como base a aprovação da renomeação do Estádio Nacional. Segundo também pude constatar, estas mesmas narrativas foram defendidas e compartilhadas por alguns titulares de cargos políticos, sem ao menos, criteriosamente, consultar a história do futebol, transmitindo imprecisamente a história e defendendo a base de emoções políticas, o posicionamento governamental em renomear o EN com o nome de Pelé.
Ipsis litteris, deixo aqui, transcrito, o 1º dos 3 pilares veiculados publicamente que deram azo ao atestado público e inclusive a defesa desta mesma narrativa, em várias hastes, públicas e privadas, defendendo a posição da renomeação do EN, num contexto poético e sem qualquer cuidado histórico sobre o futebol, antecedente ao período de nascimento e atuação de Edson Arantes do Nascimento.
Deixo abaixo exposto, a base da sustentação do 1º pilar defendido publicamente:
«A perenização do nome de Pelé - o maior jogador de futebol de todos os tempos - através da denominação do Estádio Nacional, não é só pelo facto de Pelé ser um génio do futebol. E defendo essa atribuição por três razões.
«Como sustentação da primeira razão, transcrevo um texto que alguém me enviou, e que ajuda a enaltecer a dimensão de Pelé e o seu impacto mundial:
«Até chegarmos ao Pelé, o futebol, inventado pelos ingleses, era desporto cujos ídolos eram brancos.
Pelé foi o primeiro futebolista negro aplaudido de pé no campeonato do mundo da Suécia. Pelé é muito mais do que os golos e dribles. É um novo paradigma. Assim como Martin Luther King ajudou a mudar a perceção do homem negro pela conquista de direitos, Pelé mudou a perceção de que o homem negro e de origem pobre, não pode atingir sucesso. Demonstrou mais do que isso: ser o melhor dos melhores e ser idolatrado por pretos, brancos e amarelos».
Devo transmitir que esta sustentação é imprecisa. Pelo menos é o que nos diz a historiografia.
O futebol para além de não ser “inventado pelos ingleses”, mas sim atualizado, Edson Arantes do Nascimento, vulgarmente conhecido por Pelé, não foi o primeiro negro ídolo no futebol e tampouco aclamado e aplaudido de pé num mundial. Longe disso!
Poderá ser o primeiro na Suécia, o que é perfeitamente normal, mas a colocação talvez mal-intencionada ou feita de forma imprópria, demonstra como se tivesse sido o primeiro em edições de um mundial! Se for o caso, está repleto de imprecisão!
Apesar de ser um ato político e contra o passado desportivo nacional, o centrismo histórico utilizado para legitimar o nome de Pelé no Estádio Nacional é assustador! A argumentação apresentada deveria ser amplamente diferente!
Esta posição nada mais é do que uma colocação errónea por parte de quem escreveu esta narrativa, cheio de tendências ou alguma emoção no ato da escrita.
Senão vejamos quando surgira as primeiras regras para o futebol (britânico), escritas em 1830, denominadas football rules, há pelo menos 110 anos antes do nascimento de Pelé.
Para ser mais explícito e para que todos entendam, Pelé foi a continuidade da luta do homem negro no futebol e nunca a primeira personagem. Como o artigo comprovará, a idolatria pelo homem negro no futebol, a sua luta e a sua aceitação genérica nunca começa com Pelé! É totalmente inadequado esta abordagem!
É que devido à conhecida questão da escravatura, o africano livre que foi transformado em escravo (falo da escravatura atlântica), foram exportados para diferentes destinos e após muitas gerações, alguns tiveram a sorte de praticar o futebol britânico e serem idolatrados não só a nível local como também a nível mundial.
De entre várias escolhas solenemente possíveis, deixo 3 nomes importantíssimos para a história do futebol mundial, muito antes de Pelé, figuras estas, admiradas pelo próprio rei, que tiveram notoriedades e são considerados autênticos ídolos “idolatrados por pretos, brancos e amarelos”.
Antes de entrar no capítulo das figuras, primeiro objeto de análise é o Uruguai!
A primeira potência sul americana e uma das primeiras potências mundiais foi o Uruguai. Um pequeno país de má memória para o Brasil que desfila na sua prateleira 2 Copas Mundiais e de entre as duas, uma conquista no Brasil, em pleno Estádio do Maracanã em 1950. Pelé ainda estava na pré-adolescência, completaria 10 anos!
Devido à falta de perceção coletiva, para além de 2 mundiais, a seleção Celeste é ainda a primeira Potência histórica do futebol na região sul americana (CONMEBOL) ao nível de seleções, com 15 Copas Américas, a par da Argentina e com mais 6 títulos continentais do que o Brasil. Não obstante, o Uruguai dispõe de ainda 2 Jogos Olímpicos, isto em 1924 e 1928, estabelecendo assim como a primeira grande potência de toda a América.
Para além disso, foi desde 1910, uma das primeiras nações de predominância não negra no mundo a utilizar vários jogadores negros, em variadíssimas ocasiões, combatendo o preconceito tido no período e levando assim à conquista de vários títulos regionais e continentais.
Para não ser exaustivo, entrando propriamente no assunto e analisando o primeiro pilar propalado, devo dizer que ao longo da história do desporto, vários foram os negros de destaque, sobretudo nos inícios do século XX, atuando nos mais diversos países onde a influência britânica chegou.
A figura do uruguaio Obdúlio Varela.
Escrevo primeiramente da figura de Obdúlio Jacinto Muiños Varela, nascido de uma família humilde, em 1917, na capital uruguaia de Montevidéu, 23 anos antes de Pelé, considerado por muitas personagens do futebol como um notável do seu período.
Destacou-se como capitão do Uruguai na Copa do Mundo de 1950, onde conquistou a final diante do Brasil em pleno Maracanã.
Obdúlio ou El Jefe Negro, como era conhecido, é tido como um dos grandes pontos temporais de estudo sobre a negritude no continente americano no futebol, deixando um grande impacto na história do desporto rei. Era idolatrado por todo o continente sul americano e um pouco pelo mundo. Pela sua destreza, compromisso e notoriedade, foi também capitão do Peñarol, um grande clube do futebol uruguaio e um dos melhores do mundo na altura.
José Leandro Andrade
Uma outra personagem sui generis era a de José Andrade, conhecido como maravilha negra, antes do próprio Obdúlio, nascido em 1901, 49 anos antes de Pelé. Andrade nasceu, desenvolveu, jogou e aposentou-se ainda antes de Pelé nascer. Ainda, segundo a história, existiam vários jogadores negros antes de Andrade. Contudo, foi o grande expoente do futebol mundial, conquistando 2 Jogos Olímpicos, (Paris 1924 e Amesterdão 1928). Andrade também foi considerado pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol, como o 20º melhor futebolista sul americano e o 29º melhor jogador do mundo, associado aos atletas do século XX. Não obstante, em tempos, foi considerado pela France Football, como o sexto melhor da história.
Larbi Benbarek
E por último e não menos importante, Larbi Benbarek, um dos maiores astros do futebol africano, europeu e mundial (Senegal, Marrocos e Espanha) de todos os tempos, inclusive idolatrado pelo próprio Pelé. Nasceu em Marrocos, na cidade de Casablanca, em 1914, 26 anos antes de Pelé. Pérola Negra como era chamado, era um autêntico ídolo por onde passava, mas foi em Espanha onde ganhara o rótulo de Deus, ao serviço do Atlético de Madrid. Pela sua genialidade e por ter um reconhecimento geral, foi intitulado “Pé de Deus”.
Para ir ainda mais longe, Pelé definiu Benbarek com a seguinte frase: “se eu sou o Rei do Futebol, Benbarek era o Deus”.
De facto, existiram centenas de jogadores negros, nascido pobres, ídolos em várias latitudes, que participaram na afirmação do homem negro, antes do Rei!
Conclusão
O primeiro pilar veiculado foi mal colocado e está repleto de centrismo, fugindo à verdadeira dimensão da história, personalizando uma figura que é a consequência da luta dos vários outros negros registados anteriormente ao próprio nascimento de Edson Arantes do Nascimento ou Pelé.
Pelé foi uma figura importante para a história, mas nunca a primeira idolatrada e de luta para o equilíbrio entre as diferentes estratificações sociais. A verdade é que talvez nem a história aponte de forma concisa quem foi o primeiro. O que se sabe é que vários jogadores – alguns supramencionados - ao longo da história do futebol, tiveram até, antes do nascimento de Pelé, grande relevância no futebol mundial gozando de tremenda popularidade. Por isso, é essencial conhecer a história, sobretudo pela classe política, sob pena de exibir pilares facilmente julgados. Simplesmente e com todo o respeito, falar de Pelé na história do futebol atualizado pelos britânicos é como abrir um livro aproximadamente na página 100! Pois, são aproximadamente 4 gerações anteriores ao nascimento do próprio rei!
Cordialmente,
William Jesus Sena Vieira