Duas décadas de estabilidade e de credibilidade para a moeda cabo-verdiana

PorJorge Montezinho,19 mai 2018 7:16

​A estabilidade da moeda ou a preservação do valor da moeda constituem factores-chave para o desenvolvimento de um país. As autoridades monetárias do mundo não são indiferentes a essa realidade e é hoje aceite por todos que o objectivo primordial dos bancos centrais deve ser a preservação do valor da moeda.


No final do século passado, passou-se a medir a credibilidade das políticas económicas implementadas via estabilidade da moeda, o que foi particularmente importante para as economias emergentes ou em transição. As autoridades monetárias desenvolveram um leque de ferramentas que permitiam atingir os objectivos de estabilidade. Sobre os Governos recai a tarefa de escolher qual o melhor caminho para a concretização da estabilidade de preços. Esta pode ser monetária ou cambial. No caso de Cabo Verde, optou-se por uma âncora cambial, num contexto de paridade fixa entre o escudo cabo-verdiano e o euro.

A estabilidade da moeda ou a preservação do valor da moeda constituem factores-chave para o desenvolvimento de um país. As autoridades monetárias do mundo não são indiferentes a essa realidade e é hoje aceite por todos que o objectivo primordial dos bancos centrais deve ser a preservação do valor da moeda. No final do século passado, passou-se a medir a credibilidade das políticas económicas implementadas via estabilidade da moeda, o que foi particularmente importante para as economias emergentes ou em transição. As autoridades monetárias desenvolveram um leque de ferramentas que permitiam atingir os objectivos de estabilidade. Sobre os Governos recai a tarefa de escolher qual o melhor caminho para a concretização da estabilidade de preços. Esta pode ser monetária ou cambial. No caso de Cabo Verde, optou-se por uma âncora cambial, num contexto de paridade fixa entre o escudo cabo-verdiano e o euro.

Em Março de 1998 é assinado, na cidade da Praia, o Acordo de Cooperação Cambial (ACC) entre a República de Cabo Verde e a República de Portugal. No documento, a representar os dois Estados, os nomes do então Ministro das Finanças de Portugal, António Sousa Franco, e do antigo Ministro da Coordenação Económica de Cabo Verde, António Gualberto do Rosário. A 15 de Junho do mesmo ano era publicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português o Decreto n.º 24/98, onde as partes, “reconhecendo os laços históricos de amizade e cooperação entre os seus dois povos, bem alicerçados no património comum aos países lusófonos; regozijando-se com o balanço exemplar das relações luso-cabo-verdianas em diversos domínios, entre os quais a cooperação económico-financeira; desejando aprofundar os laços económicos bilaterais, nomeadamente através da criação de condições para o incremento dos fluxos comerciais e de investimento; considerando que Cabo Verde se encontra empenhado num processo de reformas profundas, tendentes ao ajustamento, à abertura e à modernização da sua economia; sustentando que a estabilidade cambial entre as moedas dos dois países contribuiria de forma significativa para a aproximação mútua e o sucesso das reformas em Cabo Verde; decidem estabelecer o seguinte Acordo: Artigo 1.º A moeda nacional da Parte Cabo-Verdiana passa a estar ligada à moeda nacional da Parte Portuguesa por uma relação de paridade fixa”, como se lê no início do diploma.

Era o culminar de um processo que começou com a abertura democrática de Cabo Verde, sete anos antes, que tinha também como linha programática a liberalização económica do país. E que teve repercussões, mais tarde, na ascensão do arquipélago a país de rendimento médio, na parceria especial com a União Europeia e na adesão à Organização Mundial de Comércio.

Durante todo o período que decorreu da Independência, em 1975, a 1990, a economia foi dominada pelo Estado. O primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 1982-1985 traduzia os princípios da Constituição de 80: “(...) a nossa economia exige uma planificação rigorosa, orientada segundo o princípio do centralismo democrático. (...) o Estado terá que desempenhar um papel determinante em todos os domínios (...) o sector produtivo estatal ocupará uma posição dominante na economia (...) para assegurar o desenvolvimento económico na via dos objectivos programáticos do Partido”. Para isso, “(...) basta que o Estado controle os sectores básicos e as variáveis económicas estratégicas”.

Praticamente todas as esferas de actividade económica eram dominadas pelo Estado: da agricultura, ao comércio de importação e a grosso, nalguns casos o comércio a retalho, passando pela indústria ligeira, a energia, a pesca, os transportes e comunicações, o sistema financeiro, a prestação de serviços diversos, a imprensa, a construção, hotelaria, etc. No sector financeiro, o Estado tinha o exclusivo de toda a actividade.

A importação de mercadorias estava sujeita ao regime de contingentação (plafond) atribuído a cada um dos importadores e cada operação de importação tinha que ser previamente autorizada. As transferências para o exterior eram autorizadas caso a caso, igualmente, através do único banco existente na altura, o Banco de Cabo Verde. Vários sectores da economia estavam vedados à iniciativa privada. A importação de produtos de primeira necessidade era monopólio estatal. A criação de empresas carecia de autorização caso a caso.

O Governo do MpD alterou este panorama através de um programa faseado de liberalização da economia que seguiu em paralelo com a reestruturação do sector empresarial do Estado e as privatizações. O sector financeiro foi eleito como um dos eixos estratégicos. Deu-se início ao programa de modernização com a reforma do sector dos seguros e da previdencial social. No sector bancário, as reformas centraram-sena abertura da actividade ao sector privado e na liberalização das operações. As operações cambiais com o estrangeiro foram liberalizadas. E acontece o acordo cambial.

O acordo, no fundo, tinha como objectivo a ligação da moeda cabo-verdiana à moeda portuguesa, através de um regime de paridade fixa, e a criação de condições que garantissem a convertibilidade do escudo cabo-verdiano (CVE). Eram fixados alguns objectivos, sendo de realçar três: 1. a criação de condições para o incremento dos fluxos comerciais e de investimento; 2. o apoio ao processo de reformas estruturais da economia cabo-verdiana com vista à abertura e modernização da sua economia; 3. a estabilidade cambial entre as moedas dos dois países, como condição para o sucesso dos objectivos enunciados.

Estes objectivos reflectem o contexto que se vivia na altura, fortemente condicionado pela grande instabilidade cambial, numa época em que se levantavam sérias dúvidas quanto à política cambial vigente e em que subsistiam desequilíbrios macroeconómicos insustentáveis, que colocavam em risco as próprias reservas externas do país. Cabo Verde tinha, como actualmente tem, uma economia extremamente aberta e o equilíbrio da Balança de Pagamentos dependia em muito dos influxos das transferências correntes, quer da ajuda externa, quer, principalmente, das remessas dos emigrantes. Este elevado grau de abertura e de fluxos provenientes do exterior sujeitavam a economia choques, a efeitos fortemente desestabilizadores sobre os preços internos, sobre a produção e sobre o emprego.

José Luís Livramento, autor do livro Cabo Verde: de uma Economia de Renda para um Modelo de Economia Sustentável, diz ao Expresso das Ilhas que tem de se reconhecer a visão política de então e que passados 20 anos do ACC, o balanço é muito positivo. “Positivo no sentido de trazer estabilidade cambial ao país, reduzindo os riscos cambiais, mas também dando credibilidade à economia cabo-verdiana através do elemento fundamental: a moeda”.

O ACC é constituído por três características essenciais: a fixação de uma paridade cambial fixa do Escudo de Cabo Verde ao Escudo de Portugal, uma facilidade de crédito limitada da Republica de Portugal a Republica de Cabo Verde e adopção pelo Governo de Cabo Verde de critérios macroeconómicos de referência dos Estados membros da União Europeia.

A paridade cambial fixa do Escudo Cabo-verdiano ao Escudo Português foi fixada inicialmente (em inícios de 1998) em 0,50 CVE/PTE, ou seja, 1 PTE = 0,50 CVE, mas em Marco de 1998 essa paridade foi revista para 1 PTE = 0,55 CVE. Em 1999, com a entrada do Euro, surgiu a necessidade de ajustar o ACC o que levou à determinação do valor do Euro em Escudos de Cabo Verde como 1 Euro = 110,265 CVE. Para além da fixação da nova paridade cambial em relação ao Euro, a substituição do Escudo Português pelo Euro não levou a nenhuma outra modificação no ACC.

O segundo elemento do ACC entre Cabo Verde e Portugal foi uma facilidade de crédito limitada, disponibilizada pelo Governo de Portugal à Republica de Cabo Verde no valor base de 27,434 milhões de Euros, o qual pode ser aumentado até 44,892 milhões de Euros. O objectivo desta facilidade de crédito é reforçar, quando necessário, as Reservas Cambiais de Cabo Verde, auxiliando assim a convertibilidade externa do CVE (a escassez de reservas cambiais é uma situação em que o valor dos activos externos líquidos do Banco de Cabo Verde e inferior a 3 meses de importações previstas para o exercício económico em curso. Actualmente, estas reservas representam cerca de seis meses). Nos primeiros dez anos do ACC, de 1998 a 2008, ocorreram 11 saques sobre a referida facilidade de crédito, num valor total de 54,9 milhões de Euros.

O terceiro elemento, a adopção de Cabo Verde dos critérios macroeconómicos de referência dos Estados Membros da União Europeia e serve para avaliar o rumo das políticas macroeconómicas de Cabo Verde e assim também a sustentabilidade da paridade cambial.

O cumprimento do Acordo é assegurado pela Comissão do Acordo de Cooperação Cambial (COMACC), compos-ta por representantes dos Governos das duas partes, a qual detém o poder de supervisionar as operações financeiras resultantes do Acordo, bem como acompanhar a execução das políticas económicas. A par da COMACC, e sob sua tutela, foi criada uma componente técnica de supervisão do Acordo, denominada de Unidade de Acompanhamento Macroeconómico (UAM).

Ao escolher vincular a sua moeda à de um outro país, Cabo Verde perdeu parte da autonomia em matéria de política monetária. No entanto, os resultados demonstram que a estabilidade cambial alcançada e a ligação a uma âncora credível têm sido mais úteis do que a autonomia cambial, especialmente quando se pondera a instabilidade existente aquando da celebração do ACC. No fundo, o país trocou a autonomia cambial pelo bom desempenho dos preços, por níveis de inflação baixos e por um crescimento económico sustentado.

O que não invalida que ainda existam desafios. José Luís Livramento fala de um longo caminho para a moeda cabo-verdiana. “Em primeiro lugar, através de medidas concretas complementares, criando e avançando com um ecossistema macroeconómico mais sólido, nomeadamente na aproximação dos normativos cabo-verdianos aos normativos europeus, como está previsto no programa do actual governo. Mas também complementando a situação cambial com medidas mais controladoras dos indicadores macroeconómicos. Creio que apesar dessa estabilidade, verifica-se que alguns indicadores, particularmente a dívida, têm estado com um caminho de alta em alta, há muito que ultrapassámos os patamares tido como aceitáveis. Portanto, há algum caminho a fazer-se no aspecto do controlo macroeconómico. A inflação há muito que está controlada, o défice orçamental derrapou durante muito tempo sem que houvesse um caminho de regresso a patamares aceitáveis e isso originou a dívida, portanto há que ter mais rigor, quanto a mim, no controlo macroeconómico, principalmente no endividamento do país, o que penso está a ser feito pelo actual governo”.

Há outro repto que a moeda cabo-verdiana terá de enfrentar, mais cedo ou mais tarde, e este vem do continente. “Nós estamos na CEDEAO. A CEDEAO tem um programa que visa ter uma moeda comum na região, apesar dos muitos atrasos nessa ambição”. Em termos monetários, dos quinze países que constituem a CEDEAO, oito deles (Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo) integram a União Monetária Económica da África Ocidental (UEMOA), partilhando uma moeda comum (o franco CFA), emitida pelo banco central da União. Os restantes sete países mantêm bancos centrais próprios. Em 2000, nasceu a ideia da criação de uma União Monetária para o conjunto de países da CEDEAO, cujo processo passaria por duas fases. Numa primeira fase seria criada a Zona Monetária da África Ocidental (ZMAO), à qual deveriam aderir todos os países da CEDEAO que não fazem parte da UEMOA. Numa segunda fase, a ZMAO seria fundida com a UEMOA, dando origem à união monetária. Na prática, foram já dados alguns passos no sentido da futura criação da ZMAO, foi criado um instituto monetário (embrião do futuro banco central) e foram acordados um conjunto de critérios a serem observados pelos futuros Estados-membros antes da entrada em funcionamento da união monetária. Dos sete países da CEDEAO que preservam moeda própria, seis deles subscreveram a respectiva participação na ZMAO assim que ela entre em funcionamento. Cabo Verde tem mantido o estatuto de país observador. Em 2014, o então Primeiro-Ministro José Maria Neves anunciou a vontade de integrar a moeda comum da CEDEAO. Para a data da entrada em funcionamento da ZMAO, têm sido fixados objectivos que, por razões diversas, têm vindo a ser sucessivamente adiados. “Este propósito tem sido reforçado nos últimos meses”, sublinha José Luís Livramento, “não será fácil porque há a fileira anglófona, a fileira francófona, e no meio estão os dois países lusófonos. Mas Cabo Verde terá de se posicionar sobre o futuro da sua moeda em relação a essa futura moeda única da CEDEAO”.

ara já, o que vigora há duas décadas é mesmo o Acordo de Cooperação Cambial, e José Luís Livramento resume o documento em duas palavras-chave: estabilidade e credibilidade. “Inclusive tem sido até um estabilizador automático na economia cabo-verdiana. Actualmente há uma tendência de subida do preço do petróleo, vai atingir rapidamente um valor acima dos 80 dólares a curto prazo e segundo alguns analistas poderá chegar aos 100 dólares no próximo ano, mas o impacto dessa subida tem sido amenizado por uma boa relação cambial entre o dólar e o euro. Compare-se o que aconteceu no final dos anos 90, a subida do preço do petróleo aconteceu ao mesmo tempo que o dólar teve uma grande valorização e o resultado foi a crise fortíssima na economia cabo-verdiana. Hoje, esse choque está a ser absorvido um pouco pela correlação entre o euro e o dólar”, conclui.

Os Regimes Cambiais em Cabo Verde A Unificação Monetária 1852 -1901

Em 1852 a situação monetária nas colónias portuguesas caracterizava-se pela grande diversidade de peças metálicas em circulação, pela depreciação da moeda provincial, por frequentes períodos de escassez de moeda metálica, pela existência e, mesmo, domínio de moedas africanas e, ainda, pela persistência da troca directa. Esta situação criava sérios entraves ao desenvolvimento e à estabilidade das relações comerciais coloniais e representava um obstáculo a ultrapassar, a fim de efectivar a ocupação das colónias. Surge assim a ideia de unificação das moedas das colónias, um passo considerado indispensável para o domínio do sistema monetário da metrópole o que, por seu lado, era uma condição necessária para a estabilidade das relações comerciais coloniais.

Entre 1880 e 1890 foram publicados diversos decretos que procuravam: a) incrementar a circulação fiduciária; b) aumentar a circulação da moeda de prata portuguesa; c) nacionalizar completamente a moeda metálica.

O Padrão-Prata 1901-1929

Em Novembro de 1901 o Governo português e o Banco Nacional Ultramarino (BNU) assinaram um contrato que autorizava este banco a emitir notas, em regra de prata ou cobre (…) e, ainda, notas de ouro (…) e dava às notas do banco curso legal nas províncias e distritos autónomos em que fossem emitidas. A moeda de prata destacou-se, transformando-se na base do regime monetário colonial, pela importância que tinha nas relações internas e pelo facto de estar a perder a sua função internacional, na sequência da proliferação do padrão ouro.

O Padrão-Escudo 1929-1974

Em 1929 foi afastado o objectivo de criação de uma moeda única, com base na ideia de que cada uma das partes deve, separadamente, correr riscos, vencer as dificuldades, firmar as bases da sua economia monetária. Foram introduzidas algumas alterações ao sistema monetário vigente: 1) manteve-se as notas de tipo especial e privativas para cada uma das colónias; 2) restabeleceu-se a convertibilidade das notas. O novo regime reflectia parcialmente o padrão ouro e resultou da transformação do regime padrão-prata no regime padrão-escudo.

O Período pós-Independência

No período que sucedeu à independência de Cabo Verde, o escudo cabo-verdiano passou de um regime de vinculação ao escudo português para um regime de vinculação a um cabaz de moedas, representativas dos principais parceiros comerciais de Cabo Verde. O peso de cada moeda era determinado pela proporção das importações totais, acrescida de um terço das remessas de emigrantes provenientes de cada um dos países representados no cabaz. O regime exigia que as taxas fossem actualizadas periodicamente, de forma a apreender as mudanças registadas nos ponderadores ou coeficientes das moedas. No ano de 1977, a moeda de Cabo Verde estava vinculada a um cabaz de 18 moedas, em 1979, o cabaz passou a ser composto por 11 moedas e, em 1980, o número de moedas no cabaz diminuiu, passando a compreender 9 moedas. Em 1991 a moeda de Cabo Verde estava ligada à moeda dos seguintes países: Portugal, Holanda, França, Suécia, Dinamarca, Suíça, Japão, Itália e Alemanha.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 859 de 16 de Maio de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,19 mai 2018 7:16

Editado porChissana Magalhães  em  21 mai 2018 11:25

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