Estamos prontos para a quarta revolução industrial?

PorJorge Montezinho, Sara Almeida,12 jan 2019 7:31

​Hoje a questão já não é quando vai chegar a quarta revolução industrial, porque ela já aí está. A Quarta Revolução Industrial baseia-se na Revolução Digital, novas formas pelas quais a tecnologia se encaixa nas sociedades e até no corpo humano.

É marcada por descobertas tecnológicas emergentes em vários campos, incluindo robótica, inteligência artificial, nanotecnologia, computação quântica, biotecnologia, Internet das Coisas, impressão 3D e veículos autónomos A pergunta que agora fazemos é: estamos preparados para ela?

Não há volta a dar, o tempo da manufactura intensiva feita por mão-de-obra barata chegou ao fim. A nova indústria, a que nasce da chamada quarta revolução industrial, não será sobre criação maciça de empregos, o que para África representa um desafio adicional. O continente, com uma população jovem e um desemprego relativamente alto, não terá na manufactura a principal solução para criar os postos de trabalho necessários. E com o crescimento contínuo da população, os países africanos terão que desenvolver outras indústrias para receber esta imensa força de trabalho.

Podemos definir “Indústria 4.0” como a quarta revolução industrial, focada na digitalização de processos e integração de sistemas, aplicada à indústria tradicional, com os vários parceiros da cadeia de valor. O conceito começou a ser falado em 2010 e passou a estar no radar das empresas das economias desenvolvidas. Nos últimos anos a situação mudou radicalmente; as empresas aceitaram que um sector industrial dinâmico e moderno é um factor essencial para o crescimento da economia e que a digitalização é também um factor incontornável para o sector. Hoje existe o reconhecimento que as pessoas, os consumidores, os fornecedores ou outros stakeholders também mudaram e o desafio não está apenas na tecnologia, mas também em identificar quais as plataformas e os processos a ter à disposição nas empresas para integrar todos estes interlocutores.

Até 2020, indicam vários estudos, feitos por consultorias privadas e por instituições internacionais (como a PwC ou a ONUDI – a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial), cerca de 72 por cento das empresas das economias desenvolvidas estarão totalmente digitalizadas. E o grande desafio, segundo estes relatórios, não está apenas na implementação das tecnologias mais adequadas, mas sim na transformação cultural da empresa e na actual falta de competências para lidar com esta mudança.

A fabricação de maior valor agregado exigirá, principalmente, trabalhadores muito qualificados. E isto vale para todas as economias e para todos os países. Portanto, apenas aqueles que são educados e altamente treinados farão parte da futura força de trabalho nas fábricas inteligentes. Estes não só terão melhores oportunidades como também terão um maior rendimento. É um dos grandes desafios para as economias do continente africano, porque estaremos perante uma nova e maior desigualdade social entre os trabalhadores qualificados e os não qualificados.

Se os países africanos permanecerem estagnados neste contexto de procura global e implacável pela mais nova tecnologia, o continente pode perder completamente o comboio tecnológico. Isso pode, potencialmente, deixar África no degrau mais baixo da escada da cadeia de valor. Portanto, os países africanos precisam de se concentrar na educação da população jovem e no treinamento e desenvolvimento da força de trabalho. Essa é a chave para desbloquear as oportunidades da indústria 4.0.

“É preciso capacitar Cabo Verde para aquilo que está a acontecer”, disse ao Expresso das Ilhas Nuno Mangas, presidente do IAPMEI (Agência para a Competitividade e Inovação portuguesa), que esteve na Praia como orador convidado, no passado mês de Dezembro, quando se assinalou o Dia da Industrialização em África (apesar da data oficial ser 20 de Novembro). “Acho que Cabo Verde tem um factor diferenciador ao nível da educação e dos recursos humanos. Além disso, tem esta proximidade com a África Ocidental, com os países de língua portuguesa, com a América Latina. E tem de perceber que hoje há um conjunto de novos sectores de actividade económica, com potencial, para os quais Cabo Verde se pode posicionar. Hoje a tecnologia permite às empresas trabalharem de Cabo Verde para o mundo. Desde que haja uma boa conectividade, desde que haja pessoas bem qualificadas, desde que haja uma ligação entre o centro de saber e de investigação e a economia há potencial para este mercado que é global e para a atracção de empresas que não pensam no mercado cabo-verdiano, mas no mercado global”.

“Esta nova indústria terá uma cada vez maior componente de serviços e é aí que Cabo Verde se pode colocar”, continua Nuno Mangas, que foi também presidente do Instituto Politécnico de Leiria. “O emprego será cada vez mais qualificado na área dos serviços e vamos assistir à deslocalização das pessoas da área produtiva para a área dos serviços, marketing, análise de dados, comunicação, programação, etc. É aí que Cabo Verde pode posicionar-se, mas para isso tem de ter mais know-how. Se por um lado temos de ajudar a capacitar as indústrias tradicionais cabo-verdianas, por outro é preciso estimular as novas áreas, as start-ups, etc”.

PEDS 2017-2021

O Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável, do governo, não faz qualquer referência à indústria 4.0, mas tem como projecto a transformação do arquipélago numa plataforma comercial e industrial. Segundo o documento, Cabo Verde possui o básico para, querendo, ser um Centro Internacional de Negócios “altamente competitivo”, e um espaço privilegiado de localização de empresas, de sedes de sociedades holdings e de profissionais liberais de elevada especialização.

Porém, o documento também admite que para reunir as condições necessárias e suficientes o país precisa investir em três domínios de competitividade: a confiança; os custos de contexto; e a sustentabilidade. Em relação aos custos de contexto, por exemplo, “o projecto deve cobrir domínios específicos como o acesso e os custos de transporte e de comunicações, da energia, melhorar significativamente a efectividade na prestação de serviços públicos e criar instrumentos e mecanismos para dar firme e eficaz combate à corrupção”.

Entretanto já passaram mais de dois anos desde que o documento foi publicado e falamos de uma nova forma de trabalho que leva anos a ser concretizada e à volta da qual outros países têm avançado há mais de uma década. Se a Indústria 3.0 focava-se na automatização de máquinas e processos, a Indústria 4.0 foca-se na total digitalização dos activos físicos e na sua integração em ecossistemas digitais com os vários parceiros da cadeia de valor. Gerar, analisar e comunicar a informação é fundamental para fundamentar os ganhos que advêm da Indústria 4.0, que alia uma grande variedade de novas tecnologias na procura da criação de valor às empresas. Cloud computing, realidade aumentada, Internet das Coisas, análise de big data e algoritmos avançados, sensores inteligentes, impressão 3D, interfaces avançados de interacção humana, há muito que deixaram de ser conceitos e tecnologias utópicas e passaram a fazer parte das empresas.

“Não conheço a realidade cabo-verdiana em pormenor”, sublinha Nuno Mangas, “mas a transformação de Portugal começou com o surgimento de empresas de base tecnológica que começaram a pensar no mercado global e que hoje são empresas muito grandes. Não é por acaso que Portugal teve três unicórnios recentemente [empresas com um valor superior a mil milhões de dólares]. A grande aposta foi no conhecimento, pessoas que fizeram investigação, que foram expostas a contextos internacionais. É evidente que depois houve todo um ecossistema, como uma rede de incubadoras, a ligação entre as instituições de saber e a economia real, e foi com este conjunto que se criou um sistema de apoio ao empreendedorismo que hoje dá frutos”.

Actualmente em Portugal, todas as universidades e politécnicos têm incubadoras a funcionar em parcerias com empresas, ou municípios. O IAPMEI, entidade que as certifica, tem 136 registadas. Em Janeiro de 2017, o Primeiro-Ministro, António Costa, apresentou a estratégia do programa “Indústria 4.0”, com objectivo de qualificar os trabalhadores portugueses dos sectores público e privado para a chamada 4ª Revolução Industrial, ao mesmo tempo que se modernizam os sectores “tradicionais” da indústria nacional. No total, é estimado que mais de 50 mil empresas sejam abrangidas pela estratégia. No total, são 60 medidas que incluem desde o papel de cada entidade nesse processo até os modelos de financiamento que injectarão na economia portuguesa cerca de 4,5 biliões de euros até 2020.

“É um trabalho que começámos há mais de uma década”, sublinha o presidente do IAPMEI, “as coisas não acontecem de um dia para o outro. Agora, importante é começar a fazer as coisas acontecerem, têm de se gerir prioridades, porque não se faz tudo ao mesmo tempo”.

Foi assim também com a ligação entre as universidades e as empresas, ou como referiu Nuno Mangas anteriormente, entre o saber e a economia real. “O principal é a confiança. É um processo que começa com pequenos projectos e à medida que a confiança se vai ganhando vai crescendo até ser quase de forma natural, em que a empresa quando tem um problema vai ter com a universidade e quando a universidade descobre uma solução nova vai ter com a empresa”.

Tendências globais em robótica e fábricas inteligentes

De acordo com a Federação Internacional de Robótica, este ano mais de um milhão de robôs industriais serão instalados em todo o mundo e, até lá, haverá cerca de 2,6 milhões de robôs em operação. Em termos de densidade de robôs por 10.000 trabalhadores, a Coreia do Sul é líder mundial com 531 robôs, enquanto na Europa, a Alemanha lidera com 301 robôs. Embora haja mais países europeus na corrida da automação e da robótica, os países asiáticos, como a China, serão o maior mercado para robôs industriais. Actualmente, a China tem cerca de 49 robôs por 10.000 trabalhadores, mas o objectivo é atingir uma densidade de 150 robôs até 2020, exigindo a instalação de mais de 600.000 robôs. África não pode ignorar estas tendências, porque terão um grande impacto em termos de criação de emprego no continente, no futuro.

Além disso, ao contrário do passado, onde os robôs industriais eram principalmente destinados a tarefas repetitivas, as novas gerações de robôs industriais trabalharão perfeitamente com os humanos (os chamados cobots). Estes cobots serão integrados com toda uma gama de inovações digitais disruptivas que tornarão toda a fábrica mais inteligente. Com todas essas inovações, a produtividade dos trabalhadores será bastante melhorada, mas, no geral, a fábrica exigirá muito menos pessoas para operar. Para o grande grupo de trabalhadores não qualificados em África, isto será prejudicial para as suas futuras perspectivas de emprego. Além disso, essas tendências afectarão o potencial económico geral dos países africanos emergentes.

A China está a adoptar, muito rapidamente, as tendências da Indústria 4.0. O gigante asiático, ao mesmo tempo que vem desenvolvendo capacidades, tem adquirido empresas de robótica e automação por todo o mundo e o governo chinês defende o uso de novas tecnologias para mitigar os crescentes custos do trabalho, bem como para conter o fluxo de deslocalização das suas empresas de manufactura. Com a instalação cada vez maior de robôs industriais, para aumentar a produtividade e gerir os custos operacionais, é cada vez menor a necessidade de deslocalizar as empresas para países asiáticos e africanos onde a mão-de-obra é mais barata.

África e a indústria 4.0

Para África, todas essas tendências são uma grande ameaça à sua industrialização. O continente ainda continua no nível mais baixo da cadeia de valor de fabricação. E a ameaça iminente é que as vantagens competitivas de África, como a sua grande força de trabalho, serão corroídas, e eventualmente desaparecerão, à medida que outros países, com uma forte base de produção, reequipam suas fábricas com as tecnologias mais recentes.

Em Maio do ano passado, o presidente do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), Akinwumi Adesina, anunciou que vai investir até 35 mil milhões de dólares na industrialização do continente. O plano está assente em quatro pilares: “apoio à agricultura, que é o caminho mais rápido para a industrialização, apoio no desenvolvimento de clusters industriais e zonas económicas especiais, apoio no desenvolvimento de políticas industriais e apoio no financiamento das infra-estruturas, como estradas, portos e logística”. Mas o presidente do BAD deixou também o aviso: “atirar dinheiro para o problema” não chega.

As estimativas para os próximos cinco anos apontam para aumentos de produtividade entre os 90 biliões e os 150 biliões de euros e a procura dos consumidores por uma maior variedade de produtos cada vez mais personalizados, gerará um crescimento adicional de receita de cerca de 30 biliões de euros por ano. Os custos de produção poderão ter reduções entre os 15% e os 25%. Ao contrário do que seria esperado, o emprego tem tendência para crescer cerca de 6%, mas procurar-se-á mão-de-obra altamente formada, com as engenharias mecânica e informática no topo das preferências.

O mundo está numa corrida implacável pela adopção da mais recente tecnologia. E se o continente africano não promover o ambiente certo para as pessoas e as empresas adoptarem o mais rapidamente as novas tecnologias, poderá ficar muito para trás. Com o abismo tecnológico a precisar de ser superado a aumentar com os anos.

Enquanto África ainda luta e usa o tempo para resolver as muitas questões fundamentais para o seu desenvolvimento económico, o mundo move-se a um ritmo cada vez mais rápido, especialmente na economia digital. A industrialização ainda mal criou raízes no continente africano e esta indústria nascente já enfrenta a ameaça iminente dos robôs.

Tec
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Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Jorge Montezinho, Sara Almeida,12 jan 2019 7:31

Editado porChissana Magalhães  em  14 jan 2019 8:06

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