António (nome fictício) é transitário há 10 anos e por mês recebe entre 8 e 15 contentores. Durante a época alta, alguns dos seus contentores levaram cerca de 20 a 30 dias para serem abertos.
Passados os 10 dias concedidos pela agência transportadora o transitário paga, por cada dia de atraso, cerca de 2.400 escudos por contentor, até este ser aberto. Passados 30 dias, esse valor duplica.
“Neste momento estou cheio de dívidas. Toda vez que acontece uma crise do tipo eu e os meus colegas transitários sofremos. Isto aconteceu durante a pandemia e este ano, agora no Verão”, revela.
António conta que quando os barcos chegam ao Porto da Praia os contentores são colocados em armazéns. Entretanto, queixa-se que os contentores de algumas empresas de shipping são colocados em armazéns e logo são abertos, enquanto os contentores dos transitários são colocados num grupo de segunda classe e abertos quando houver tempo.
“Sendo assim, além de perder o cliente que vai preferir trazer a sua encomenda com aquele shipping, acabo por contrair outros custos devido à paralisação na abertura dos contentores”, afirma.
Isto porque quando o contentor chega ao país o transitário deve pagar à autoridade portuária um certo valor. Mas, prossegue, se a ENAPOR levar 20 dias para abrir o referido contentor, tem de pagar o Terminal Handling Charge (THC). Ou seja, uma taxa de manuseio da carga no terminal portuário para poder validar o Bill of Lading (B/L), custo cobrado pela documentação e emissão do conhecimento de embarque.
“Ao pagar o B/L, a companhia do barco valida o meu contentor até o 10º dia, sem nenhum custo. Contudo, se a ENAPOR demorar 20 dias para abrir o contentor, por lei já não poderá abrir aquele contentor até que eu pague a diferença de 10 dias para a agência. Eu tenho de pagar a diferença antes do meu contentor ser aberto, antes de começar a fazer dinheiro”, explica.
Logo, tem de gastar cerca de 24 mil escudos para que o contentor seja aberto. António refere que neste momento aguarda 15 contentores, mas que possui fundo para pagar apenas três ou quatro contentores e não os 15, como consequência dos atrasos da época alta.
“Tenho de pagar por três ou quatro contentores, aguentar um bocadinho e depois pagar os outros. Já não tenho o mesmo fundo de antes em que poderia pagar para abrir os 15 contentores de uma só vez”, lamenta.
Mais…
Ernesto (nome fictício) também transitário, exemplifica que em 26 de Julho recebeu um contentor que foi aberto apenas no dia 17 de Agosto e que teve de pagar cerca de 2.400 escudos por cada dia de atraso.
Por mês, este transitário recebe até 12 contentores. No entanto, se não tiver fundos para pagar à empresa transportadora pelos atrasos, a ENAPOR não se responsabiliza e manda os clientes para a sua agência.
“Mas, se tenho de pagar entre 65 e 100 contos à agência do barco para que possa validar a B/L, e dependendo do volume tenho de pagar à ENAPOR entre 60 e 90 contos, por que é que eu tenho de me responsabilizar pelo atraso? Se eu pagar por todos os contentores e a ENAPOR não os abrir a tempo é um dinheiro empatado e eu tenho de sobreviver”, salienta.
Ernesto conta que acaba de receber quatro contentores e que pagou apenas por dois, uma vez que tem de recuperar o perdido. Contudo, acrescenta que se não conseguir pagar a tempo pelos outros, terá de pagar à autoridade portuária pela armazenagem depois de cinco dias.
“Neste caso, eu sou o elo mais fraco, porque passados 10 dias, tenho de pagar a transportadora para que o contentor seja aberto e não tenho nenhuma garantia de que desde que pague, a ENAPOR vai levar 10 dias para o abrir”, queixa-se.
O transitário questiona o prazo de 10 dias concedido pelas transportadoras e ressalta que é preciso fazer um estudo de mercado que obrigue as companhias a fornecer aos transitários os dias consoante a capacidade do porto.
“Saímos do buraco da pandemia, recuperamos e voltamos a cair durante este Verão. Tudo porque a ENAPOR não estava preparada, ou até estão, mas não fazem a conta da época alta e da época baixa”, revolta-se.
“Quando começaram a ter este problema no mês de Junho, só em meados de Agosto é que resolveram tirar todas as cargas que estavam ali desde 2019, para serem colocadas num outro armazém no cais para que pudessem ser abertos mais contentores. Levaram dois meses para se consciencializarem que estavam numa crise. Nós não temos de ser penalizados pela má gestão da ENAPOR”, pontua.
Outras reclamações
António defende que devia haver uma maior transparência quanto à ordem de abertura dos contentores, melhor gestão e voz aos transitários.
“Porque se nós pagarmos à ENAPOR dentro do prazo estipulado e o contentor não for aberto a tempo, não podemos ser responsabilizados pelas multas. A ENAPOR teria de pagar pelo menos metade do prejuízo” advoga.
Na mesma linha, Ernesto diz que não pode pagar pelo trabalho do outro. “Estou a trabalhar com uma companhia que me traz prejuízo e não tenho outra opção. E se eu resmungar sou colocado na lista negra”, aponta.
De acordo com os transitários, só daqui a seis meses é que poderão recuperar o prejuízo. Até lá, precisam apertar o cinto e diminuir os custos.
Esclarecimento da ENAPOR-Praia
De Janeiro até Agosto houve um crescimento muito acentuado de contentores de grupagem no Porto da Praia, conforme diz ao Expresso das Ilhas o administrador, Nelson Freire.
Segundo aquele responsável, os contentores de grupagem, ou seja, os que são abertos nos armazéns da ENAPOR, representam menos que 10% do total dos contentores que o Porto da Praia movimenta.
“Até Agosto de 2021, o Porto da Praia movimentou 28 mil TEU (unidade de medição de contentores) de longo curso, somente os contentores que vêm de fora. Sem considerar os 200 contentores movimentados internamente”, informa.
Esses 28 mil TEU representam um crescimento de 12% nessa categoria de contentores, em relação ao ano passado.
“É algo muito grande para o porto porque, de facto, houve um aumento significativo em termos de contentores movimentados. Friso em termos dos contentores porque é o principal tráfego para o Porto da Praia”, precisa.
Foram movimentados 953 contentores de pequenas encomendas, de Janeiro a Agosto de 2021, representando um acentuado crescimento de 50% (+317 contentores), comparativamente ao período homólogo do ano passado.
No que tange aos volumes de pequenas encomendas movimentados, registou-se um crescimento de 62%, representando em termos absolutos um crescimento de +44.977 volumes comparativamente ao do ano de 2020.
“Esta é a causa dos constrangimentos na prestação de serviço na abertura dos contentores. Contudo, perante esta situação, a ENAPOR do Porto da Praia tudo fez para ajustar a capacidade de resposta”, sustenta.
Nelson Freire menciona que houve um aumento do número de trabalhadores durante os meses de Junho, Julho e Agosto e que os serviços passaram a ser prestados das 08h00 às 19h00 e também aos sábados.
“Entendemos que foi algo muito excepcional. Nunca antes tinham sido movimentados tantos contentores de grupagem. Neste momento estamos a preparar-nos para a época festiva que começa daqui a dois ou três meses”, destaca.
Actualmente, a autoridade portuária, em colaboração com a Alfândega, está a elaborar um novo modelo para as pequenas encomendas em que o transitário vai assumir a sua distribuição.
“Se for verificar na lei, no Código Marítimo e Portuário, é o transitário que deve ter o papel de liderança nesse trabalho de pequenas encomendas. Mas, aqui em Cabo Verde, infelizmente, ainda é a ENAPOR a fazê-lo”, observa.
Quanto à maior clareza na ordem da abertura dos contentores, o administrador do Porto da Praia esclarece que há um procedimento desde a chegada até à abertura de um contentor de grupagem.
“Primeiro faz-se a descarga, depois o transitário deve dirigir-se à ENAPOR para liquidar as suas obrigações e uma vez que cumpra todas as obrigações esse contentor é posicionado para a abertura. Quer dizer que há várias questões que podem atrasar essa abertura”, descreve.
Se um transitário demorar a liquidar as suas obrigações perante a autoridade portuária, o contentor é colocado em stand by.
Nelson Freire confirma a prioridade a determinados contentores, como é o caso daqueles que transportam medicamentos.
“Sendo um tipo de carga especial, esses contentores beneficiam de uma priorização durante o período de abertura. Durante o Verão, o número de contentores prioritários dobrou. Praticamente todo o processo de importação de medicamentos fez-se numa janela de Julho e Agosto”, elucida.
Contudo, este responsável avança que a ENAPOR está a trabalhar para disponibilizar, no seu site, todos os contentores que entraram no país e qual o estado de cada um, de forma a transmitir maior confiança aos transitários.
O administrador do Porto da Praia diz ainda compreender a reclamação dos transitários de que a ENAPOR devia assumir uma parte das dívidas contraídas devido ao atraso na abertura dos contentores.
Mas frisa que não foi provocado por uma acção ou inacção da empresa. Por esta razão, recomenda a esses profissionais maior atenção no momento de negociar a vinda dos contentores para Cabo Verde.
Ou seja, prossegue, ao negociar o tempo de disponibilização dos contentores, os transitários devem levar em conta o período do ano, como o Verão ou épocas festivas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1035 de 29 de Setembro de 2021.