Dados divulgados em 23 de Junho pela ONU, mostram que naquele mês 181 mil mulheres, homens e crianças enfrentavam insegurança alimentar num total de 32% da população nacional.
Já o governo avançou que cerca de 107 mil pessoas estão sob pressão em termos alimentares e 30 mil em situação de insegurança alimentar.
Cíntia (nome fictício), 37 anos, mãe de dois filhos de 12 e 10 anos, faz parte das pessoas que vivem sob pressão alimentar e poderá entrar na estatística dos que enfrentam insegurança alimentar.
“Tenho o salário mínimo e antes da pandemia e da guerra gastava, mensalmente, cerca de 10 mil escudos com a comida. Com 10 mil escudos de compra dava para comer por quase um mês, porque sempre minguava faltando três ou dois dias para receber”, relata esta mãe.
Hoje, com 10 mil escudos, Cíntia afirma que pode comprar comida suficiente para apenas duas semanas, e com um “jeitinho” talvez três. Ou seja, o mesmo dinheiro e uma quantidade menor de comida.
“Os [alimentos] mais essenciais agora custam mais, por exemplo óleo, leite, arroz, ovo. Tive de retirar alguns produtos da lista de compras, como frutas, iogurtes, carne de porco e de vaca”, enumera.
Os filhos, prossegue, deixaram de comer frutas e iogurtes para que pudessem garantir o almoço e o jantar.
“Fico triste com esta situação porque quero comprar algo saboroso para que possam levar à escola e não posso. Por isso, almoçam e vão para a escola onde recebem refeições quentes. Agora com as férias, vão ficar em casa o dia todo e as coisas vão piorar um bocadinho”, atenta.
Conforme conta, o pai de uma das crianças ajuda, mensalmente, com cinco mil escudos porque o Tribunal assim estipulou. Entretanto, frisa, os cinco mil escudos são para carregar os passes para que possam ir à escola.
Durante as férias, esse dinheiro destina-se à comida e ainda assim a situação “é delicada”. Sendo auxiliar de serviços gerais numa instituição pública, Cíntia declara que não consegue garantir uma cesta básica das Associações ou instituições que ajudam, porque a prioridade é sempre para aqueles que não têm um salário.
A única renda extra da família provém do abono da filha mais velha, já que do mais novo, o pai é quem recebe e fica com o dinheiro.
“Se os preços aumentarem mais, vamos ter de comer arroz com azeite para não passarmos fome. Recebo um salário mínimo, tenho de pagar a renda da casa, a electricidade e ainda comer. Não tenho marido, não conto com ajuda e é isso”, especula.
Questão de saúde pública
A nutricionista Yahmilla Carvalho explica que quando se deixa de consumir qualquer tipo de alimento sem uma orientação profissional - a menos que se trate de alimentos industrializados sem benefícios nutricionais - pode-se comprometer a saúde.
“Carnes, ovos, peixes são as principais fontes de proteínas. Não comemos apenas porque é gostoso, é questão de necessidade. A partir do momento que deixamos de comê-los, se não trouxemos, de uma outra fonte, os nutrientes que podemos encontrar nesses alimentos a nossa saúde fica comprometida”, clarifica ao Expresso das Ilhas.
As proteínas, de acordo com a profissional de saúde, fornecem saciedade, ajudam no desenvolvimento dos músculos e estão envolvidos em vários processos do organismo, como por exemplo a questão da energia.
Sem nenhum acompanhamento médico, quando retiradas do dia-a-dia a pessoa apresenta fadiga, perda de peso, além de comprometer alguns órgãos.
Quanto às hortaliças e frutas são as maiores fontes de fibra, vitaminas e minerais. Yahmilla Carvalho destaca que por esta razão poderá ainda ocorrer problemas quanto à imunidade, funcionamento dos intestinos, diabetes, hipertensão, entre outros.
“Num primeiro momento podemos até pensar que deixar de comer, por questões financeiras, esses alimentos pode afectar uma única pessoa ou uma família, mas é uma questão de saúde pública porque cada vez mais aumentam pessoas com as doenças já referidas”, alerta.
No que tange às crianças, a falta de proteínas e vitaminas proporcionadas pela carne e frutas compromete o crescimento e desenvolvimento intelectual, segundo a profissional.
Aumento de pedidos de apoio põe em risco stock do Banco Alimentar
A presidente do Banco Alimentar da Fundação Donana revela que estão a receber cada vez mais pedidos de famílias para apoio alimentar, sublinhando que a seca prolongada, a pandemia e o aumento dos preços tem estado a pressionar a população mais carenciada.
Em 2019, apesar da pandemia, a instituição conseguiu recolher e distribuir 303.420 quilos de alimentos e em 2020 foram 575.420 quilos. 2022, entretanto, segundo Ana Fonseca Hopffer Almada está a ser um ano muito difícil.
Para exemplificar, cita que apenas no mês de Março a instituição distribuiu 15.508 cestas básicas a público que não é habitual, ou seja, que não são ajudadas regularmente através das associações comunitárias.
“Foram cestas básicas para pessoas que chegam ao Banco Alimentar afirmando que não têm comida para comer, que têm fome. São mulheres chefes de famílias que perderam o seu rendimento, jovens mães com bebés, são jovens as vezes até com formação e que não têm trabalho e que estão sem alimentos”, ressalva.
Ana Fonseca Hopffer Almada informa ainda que no mês de Junho o Banco Alimentar recebeu três mil quilos de alimentos que já foram distribuídos, em cerca de mil cestas básicas. Por esse motivo, estão a contactar os parceiros para angariar alimentos, uma vez que o aumento de casos da COVID-19 não permite realizar as habituais campanhas nos super e minimercados.
“Neste momento o nosso armazém está com pouca capacidade de resposta. Se não tivermos apoios vai chegar uma altura em que não teremos alimentos. Arroz, por exemplo já não temos. Tivemos uma doação de quase 4 toneladas de arroz, mas já terminaram. As pessoas não imaginam a quantidade de gente que recebemos e que não são o nosso público alvo, embora esses continuam a receber os seus apoios”, admite.
Face a este cenário, Ana Fonseca Hopffer Almada diz que o principal desafio do Banco Alimentar é manter o stock que está esvaziando rapidamente devido ao aumento de pedidos de ajuda, sobretudo de pessoas que tinham uma vida mais ou menos estável, mas que com as sucessivas crises e a inflação perderam a capacidade de comprar comida.
A presidente do Banco Alimentar precisa que a instituição conta, normalmente, com as associações comunitárias que selecionam 10 famílias com idosos acamados, pessoas portadoras de deficiência e pessoas que não podem trabalhar.
Na cidade da Praia, há cerca de 300 famílias beneficiárias, além de famílias de Santa Cruz, Calheta, Tarrafal, Santa Catarina e Ribeira Grande de Santiago.
Criado em Outubro de 2012, depois da assinatura de um protocolo com a organização que tutela o Banco Alimentar contra a Fome de Portugal, o Banco Alimentar tem parcerias 74 associações em toda a ilha de Santiago, 10 na ilha do Fogo, 10 na ilha de São Vicente e 10 na ilha do Sal num total de 104 Associações, além de instituições caritativas e humanitárias.
Associação Pilourinho cria hortas para ajudar população de AGF
A associação Pilorinhu de Achada Grande Frente (AGF) está a criar hortas comunitárias para ajudar as pessoas mais carenciadas daquele bairro e fazer face ao aumento dos preços dos alimentos.
Em declarações ao Expresso das Ilhas, o presidente Zanildo Moreno avança que as hortas fazem parte do projecto “Jornada Agroecológica”.
“O objectivo desta criação é fazer face à subida dos preços dos alimentos. Temos como referência a horta da nossa associação através da qual conseguimos diminuir o custo da alimentação dos nossos voluntários”, elucida.
As hortas comunitárias darão continuidade ao projecto Xalabás em que foram reabilitadas algumas hortas de famílias do bairro, assim como da escola de Achada Grande Frente.
“É concluir o que o Xalabás começou, criar tanto hortas verticais, como hortas nos quintais. As famílias tanto podem consumir os produtos da horta, como podem vender e assim ganhar um dinheiro extra e garantir o autossustento. Mas a doação às famílias que não têm como ter a horta em casa é obrigatória”, realça.
A associação Pilourinho já tem identificadas 15 casas onde serão plantadas papaia, banana, maracujá, cana de açúcar, pinhão e vários legumes.
“Também na selecção das casas, priorizamos famílias que já têm alguma experiência com hortas. Não ia valer a pena criar uma horta que não seria cuidada. Têm de ser pessoas com boa vontade para cuidar das hortas, que cumpram a obrigação de ajudar os outros porque há muitas famílias em situação difícil em AGF”, frisa.
Mais do que o autossustento do bairro, o presidente da Associação Pilourinho assegura que o projecto visa praticar a agricultura baseada na integração e aplicação de conceitos ecológicos e sustentáveis sem o uso de químicos.
“A nossa sociedade consome muitos produtos importados e esses produtos têm químicos que podem pôr em causa a saúde das famílias. Daí querermos dedicar à agroecologia”, sustenta.
A associação Pilorinhu pretende alargar o projecto das hortas comunitárias para outros pontos da ilha de Santiago e do país.
Contudo, Zanildo Moreno anuncia que neste momento está-se ainda finalizar o orçamento necessário para a implementação do projecto. Mas, já este mês, vão proceder à plantação de 100 árvores fruteiras na comunidade, doadas pela FAO.
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A FAO define a insegurança alimentar como um fenómeno que ocorre quando um indivíduo não possui acesso físico, económico e social a alimentos de forma a satisfazer as suas necessidades.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.