“Em primeiro lugar, vamos valorizar as boas novas – e com razão, porque não temos recebido muitas ultimamente”, começou Kristalina Georgieva. “A grande onda de inflação global está em retrocesso. Uma combinação de medidas resolutas de política monetária, de alívio das restrições da cadeia de abastecimento e de moderação dos preços dos alimentos e da energia está a guiar-nos de volta na direcção da estabilidade de preços”.
E isto tudo, como lembrou a directora-geral do FMI, sem levar a economia global à recessão e à perda de empregos em grande escala – como aconteceu durante a pandemia e depois de episódios de inflação anteriores. Tanto os mercados de trabalho dos EUA como da área do euro, exemplificou, estão a arrefecer de forma ordenada.
“É uma grande conquista”, concluiu Georgieva. Mas, apesar das boas notícias, não são esperadas grandes festas de vitória nas Reuniões Anuais.
Um futuro difícil
Segundo a directora-geral do FMI, são três as razões principais de preocupação. Para começar, as taxas de inflação. Podem estar a descer, mas o nível de preços mais elevado que se sentem nas carteiras veio para ficar. “As famílias estão a sofrer, as pessoas estão zangadas”, resumiu a diretora-geral do FMI.
As economias avançadas tiveram taxas de inflação nos máximos registados numa geração. O mesmo aconteceu com muitas economias emergentes. E a situação foi especialmente má para os países de baixo rendimento. “A nível nacional e a nível individual, a inflação atinge sempre mais duramente os pobres”, disse Georgieva.
Não facilita o ambiente geopolítico difícil. Há o alargamento do conflito no Médio Oriente com potencial para desestabilizar as economias regionais e os mercados globais de petróleo e gás. “O seu impacto humanitário, juntamente com as guerras prolongadas na Ucrânia e noutros locais, é desolador. E, acima de tudo, isto está a acontecer numa altura em que as nossas previsões apontam para uma combinação implacável de baixo crescimento e dívida elevada”, disse a diretora-geral do FMI.
Aliás, prevê-se que o crescimento a médio prazo seja fraco – não muito inferior ao pré-pandemia, mas longe de ser satisfatório. Não será suficiente para erradicar a pobreza mundial. Nem para criar o número de postos de trabalho necessários. Nem para gerar as receitas fiscais de que os governos precisam para pagar dívidas pesadas, ao mesmo tempo que satisfazem vastas necessidades de investimento, incluindo a transição verde.
O escasso espaço fiscal
Segundo a política búlgara, que no início deste mês iniciou o segundo mandato à frente do Fundo Monetário Internacional, o quadro torna-se mais preocupante devido à elevada e crescente dívida pública – muito mais elevada do que antes da pandemia.
O que significa isto para o “espaço fiscal”? Para isso tem de se olhar para a parcela das receitas do governo consumida pelo pagamento de juros. É aqui que se junta a dívida elevada, as taxas de juro elevadas e o baixo crescimento – porque é o crescimento que gera as receitas de que os governos necessitam para funcionar e investir. À medida que a dívida aumenta, o espaço orçamental contrai-se desproporcionalmente mais nos países de baixo rendimento.
E o espaço fiscal continua a diminuir. “Basta olhar para a evolução assustadora do rácio juros/rendimentos ao longo do tempo”, exemplificou Georgieva. “Podemos ver imediatamente como as difíceis escolhas de gastos se tornaram ainda mais difíceis com pagamentos de dívidas mais elevados. Escolas ou clima? Conectividade digital ou estradas e pontes? É a isso que tudo se resume”.
Para agravar a situação, vivem-se tempos profundamente conturbados, num mundo com mais guerras e mais insegurança, com as despesas com a defesa a continuarem a aumentar e com os orçamentos de ajuda a ficarem ainda mais aquém das necessidades crescentes dos países em desenvolvimento.
“Não só a ajuda ao desenvolvimento é demasiado pequena, como os principais intervenientes, movidos por preocupações de segurança nacional, recorrem cada vez mais à política industrial e ao proteccionismo, criando uma restrição comercial atrás da outra. No futuro, o comércio não será o mesmo motor de crescimento de antes”, disse a directora-geral do FMI. E quando Kristalina fala, o mundo devia ouvir com especial atenção, afinal estamos a falar da mulher que, no seu primeiro mandato, liderou a resposta do FMI a vários choques mundiais: a pandemia, conflitos e a subida vertiginosa da inflação.
Previsões não são destino
Num discurso com várias frases com impacto, a responsável pelo Fundo Monetário Internacional recordou que previsões não são certezas nem certificam uma fatalidade. Mas, lá está, é preciso fazer melhor. E é preciso fazer mais. “Há muito que podemos e devemos fazer para aumentar o nosso potencial de crescimento, reduzir a dívida e construir uma economia mundial mais resiliente”, reiterou Georgieva.
Os governos, para começar, devem trabalhar para reduzir a dívida e reconstruir as reservas para o próximo choque – “que certamente ocorrerá, e talvez mais cedo do que esperamos. Os orçamentos precisam ser consolidados” – de forma credível, mas gradual na maioria dos países. Isso implicará escolhas difíceis sobre como aumentar as receitas e tornar a despesa mais eficiente, garantindo ao mesmo tempo que as acções políticas são bem explicadas para ganhar a confiança da população.
“A contenção orçamental nunca é popular”, sublinhou Georgieva. “E a situação é cada vez mais difícil. Numa ampla amostra de países, o discurso político favorece cada vez mais a expansão fiscal. Mesmo os partidos políticos tradicionalmente conservadores do ponto de vista fiscal estão a desenvolver o gosto pelo empréstimo para gastar. As reformas fiscais não são fáceis, mas são necessárias e podem aumentar a inclusão e as oportunidades. Os países mostraram que isso pode ser feito. Em última análise, a médio prazo, o crescimento é fundamental – para gerar emprego, receitas fiscais, espaço fiscal e sustentabilidade da dívida”.
Não há tempo a perder
Reformas, o foco deve estar nas reformas. E há três áreas principais a serem melhoradas, segundo a directora-geral do FMI. Primeira área de reformas: fazer com que os mercados de trabalho funcionem para as pessoas. Num mundo de demografia profundamente desigual: populações jovens em crescimento em alguns locais, sociedades envelhecidas noutros, a migração económica pode ajudar, mas apenas até certo ponto, por causa das ansiedades em muitos países. O mesmo pode acontecer com as medidas de apoio para ajudar a trazer mais mulheres para o mercado de trabalho. “Acima de tudo, são necessárias reformas para melhorar o conjunto de competências e adequar as pessoas certas aos empregos certos”, disse Georgieva.
Segunda área: mobilizar capital. Há uma abundância de dinheiro a nível mundial, mas muitas vezes não está nos lugares certos ou nos investimentos certos. “Colocar a poupança a funcionar para obter o máximo benefício económico exige que os decisores políticos se concentrem na eliminação de barreiras, tais como ambientes de investimento fracos e mercados de capitais superficiais”, sublinhou a directora-geral do FMI.
Terceira área: aumentar a produtividade. E há muitas formas de a aumentar, desde melhorar a governação e as instituições até reduzir a burocracia e aproveitar o poder da IA. Mais e melhores gastos em educação e ajuda em Investigação e Desenvolvimento. “Entre as economias avançadas, as que lideram a inovação mostram o que funciona: indústrias de capital de risco, ecossistemas que trazem não só financiamento, mas também conhecimento, aconselhamento e redes profissionais – seleccionando novas ideias, identificando vencedores, alimentando-os desde o nascimento até à formatura”, referiu a política.
Reaprender a trabalhar em conjunto
Estamos a viver num mundo desconfiado e fragmentado, onde a segurança nacional subiu ao topo das preocupações de muitos países. Até aqui, nada de novo, mas nunca tinha acontecido numa época de tão elevada co-dependência económica.
“O meu argumento”, disse Georgieva, “é que não devemos permitir que esta realidade se torne uma desculpa para não fazermos nada para evitar uma maior fractura da economia global. Muito pelo contrário. O meu apelo durante estas Reuniões Anuais será: trabalhemos juntos, de forma esclarecida, para elevar as nossas perspectivas colectivas”.
Como sublinhou a directora-geral do FMI, as tensões globais não devem ser adquiridas como um dado adquirido e importante será trabalhar para baixar a temperatura geopolítica e responder aos empreendimentos que só podem ser enfrentados em conjunto.
Como ilustrou a economista; “prova um: o comércio, que baixou os preços, melhorou a qualidade e criou emprego. Dois: o clima, onde enfrentamos um desafio existencial, com os países que menos contribuíram para as emissões globais a serem agora os primeiros a sofrer. O aquecimento global inesperadamente rápido deveria estar a dar o alarme. Os glaciares estão a derreter, as calotas polares estão a desmoronar. Os eventos climáticos adversos telegrafaram uma mensagem assustadora do futuro. Terceiro: inteligência artificial, a nossa melhor hipótese de aumentar a produtividade. Um estudo do FMI conclui que a IA, se bem gerida, tem potencial para aumentar o crescimento mundial até 0,8 pontos percentuais – só com isto, avançaríamos para um caminho de crescimento mais elevado do que nos anos anteriores à pandemia. No entanto, a IA necessita urgentemente de códigos regulamentares e éticos que sejam fundamentalmente globais”.
“Se me fosse concedido um desejo”, concluiu a directora-geral do FMI, “seria simplesmente este: não deixemos que esta década seja recordada como aquela em que permitimos que o conflito atrapalhasse as tarefas existenciais, acumulando enormes custos e potenciais calamidades para as que se seguiriam. Que seja recordado como um momento em que ultrapassamos as nossas diferenças para o bem de todos”, reiterou Kristalina Georgieva.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.