“Actualmente, no mercado de valores mobiliários nacional, é possível transaccionar-se uma única acção, resultando a transacção na alteração do preço de referência das acções da sociedade cotada”, explica ao Expresso das Ilhas a auditora geral Ana Semedo, quando questionada sobre por que razão a AGMVM teve de recomendar que os preços fossem aprimorados. “Se um investidor adquire uma única acção por um preço à sua escolha, esse valor torna-se imediatamente o novo preço de referência dessa acção. Todas as ordens subsequentes de compra e venda das mesmas acções passam, então, a ter esse preço como base, o que pode ser desproporcionado e distorcer a verdadeira dinâmica do mercado. Não é razoável que uma transacção isolada e de volume insignificante possa ter um impacto tão relevante na formação do preço de mercado”.
O contexto nacional de aceleração do crescimento económico e de aumento das necessidades de financiamento do Estado favoreceu os desenvolvimentos no mercado de valores mobiliários em 2024. De acordo com o relatório anual da AGMVM, a capitalização bolsista das empresas cotadas aumentou mais de dois pontos percentuais, para 7,3% do PIB, o valor mais elevado desde a criação da Bolsa de Valores de Cabo Verde, S.A. Em termos globais, a capitalização bolsista do mercado nacional passou de 43,9% para 45,5% do PIB. Os rácios de rotatividade de títulos e de rotatividade das acções registaram também um crescimento, fixando-se em 2,25% e 8,03% (em 2023, estes valores foram de 0,08% e 0,59%).
Os desenvolvimentos no mercado de valores mobiliários foram marcados, em 2024, pelo aumento das emissões do Estado, sobretudo de Obrigações do Tesouro, e por uma dinâmica assinalável de transacções no mercado secundário. O valor das novas emissões do Estado cresceu cerca de 25%, para 19.968 milhões de escudos, recuperando da queda de 28% de 2023.
O Estado foi sobretudo financiado pelas instituições de crédito e pelo INPS, à volta de 53% e 45%, respectivamente. As sociedades não financeiras (em 0,3%), as sociedades financeiras não bancárias (0,9%) e as famílias (0,3%) também contribuíram para o seu financiamento.
As emissões empresariais tiveram condições mais favoráveis, com maturidade média de 14,8 anos e taxa de juros média de 5,95% (maturidade e taxa médias de 5,1 anos e 4,13% das emissões empresariais de 2023).
As transacções no mercado secundário registaram um aumento excepcional, tanto em quantidade como em valor, estimuladas pelo significativo aumento do número de investidores a retalho. Em consequência, a cotação dos títulos mais negociados, as acções, aumentaram 30% devido à valorização das acções das sociedades financeiras na ordem de 100%.
O número de emitentes empresariais com dívida titulada admitida à negociação, a maioria dos quais empresas públicas, aumentou para sete, enquanto o número de investidores a retalho passou de 180 para 999.
Maioria das empresas sem acesso à bolsa
No entanto, refere o relatório da AGMVM, o desempenho do mercado de capitais nacional permaneceu condicionado pela relativa falta de acesso da maior parte das empresas e pela reduzida oferta de instrumentos financeiros nos mercados primário e secundário. [De acordo com os resultados do VI Recenseamento Empresarial do Instituto Nacional de Estatísticas, 83% das empresas cabo-verdianas que se encontravam activas em 2023 são microempresas (com um volume de negócios estimado, em termos médios, de 759 mil escudos) e 77% não possui contabilidade organizada. Entre outras condições, a emissão de valores mobiliários requer dos emitentes uma situação económica e financeira adequada, devidamente certificada nas demonstrações financeiras auditadas. Ainda, nos termos do Código do Mercado de Valores Mobiliários em vigor, só podem ser admitidos à negociação em Bolsa um montante mínimo de acções e obrigações equivalentes, respectivamente, a 100 e 20 milhões de escudos.]
“As exigências de capitalização bolsista ou de capital social, bem como de prestação de contas, serão as mais desafiadoras tendo em conta as características do nosso tecido empresarial cabo-verdiano, constituído, predominantemente, por empresas de pequeno porte e sem contabilidade organizada”, sublinha Ana Semedo.
“As alterações ao Código do Mercado de Valores Mobiliários, que estão em aprovação, vão flexibilizar os critérios quantitativos, tornando-os mais alinhados com a dimensão da nossa economia. Entretanto, as questões da prestação de contas e dos deveres de informação, que boa parte das empresas cabo-verdianas demonstram dificuldades em cumprir, não poderão ser flexibilizadas, sob pena de colocarmos em risco a confiança no mercado. Por isso há que haver políticas complementares visando o fortalecimento da capacidade das empresas que operam em Cabo Verde”, diz a auditora geral da AGMVM.
As reformas que aí vêm
A actuação da AGMVM ficou marcada pela contínua execução de reformas, a nível legislativo e regulamentar, visando dotar o mercado de infraestrutura legal e capacidades apropriadas às necessidades de financiamento da economia nacional.
“No âmbito da regulação, a prioridade é alteração do Código do Mercado de Valores Mobiliários, ou melhor a aprovação das alterações propostas”, diz Ana Semedo. “Entre outras, a proposta na qual trabalhamos visando o alinhamento do regime que regula todo o funcionamento do mercado com as necessidades da economia: propõe redução dos requisitos capitalização para a admissão de acções à cotação para 1/5 do valor actual (de 100 milhões para 20 milhões escudos) e das obrigações em 50% (para 10 milhões de escudos); inclui um regime de exclusão voluntária da negociação para estimular a entrada; prevê norma permissiva à criação de segmentos de mercado específicos para PME’s ou start-ups; flexibiliza a norma do Código das Sociedades Comerciais que apenas permite um novo financiamento através do mercado quando o valor em dívida seja inferior ao capital realizado da sociedade anónima; e sistematiza um regime de intermediação financeira susceptível de promover a entrada de novos operadores no mercado e estimular a prestação de serviços pelos incumbentes, mormente através da possibilidade de aplicarem preçários próprios”.
“Outras mudanças regulatórias importantes estão relacionadas com a reforma do regime jurídico dos organismos de investimento coletivo, bem como do regime de fundos de capital de risco. Os organismos de investimento colectivo, ou fundos de investimento, são veículos importantes de acumulação e alocação da poupança para investimento, que não têm tido representatividade desejável em Cabo Verde. As reformas visam inverter este cenário”, sublinha a auditora geral.
Manipulação do mercado
A AGMVM actuou junto dos supervisionados para promover o cumprimento do serviço da dívida em atraso, dos deveres de comunicação ao mercado e das disposições regulamentares para a manutenção do certificado de registo de perito avaliador de imóveis em fundos de investimento; levou a cabo duas acções de fiscalização offsite [realizadas remotamente] e colaborou com o BCV numa acção onsite [inspecção aos balcões das instituições financeiras]; além das já referidas recomendações para melhorar a formação de preços de valores mobiliários.
Ainda em 2024, a AGMVM: autorizou, aprovou e registou cerca de 32 processos; analisou duas reclamações de investidores e emitentes e instaurou, em resultado da análise das reclamações, bem como das suas acções de supervisão contínua e de acompanhamento do mercado, dois processos de contraordenação. Procedeu, também, à averiguação preliminar de transacções com indícios de manipulação de mercado e de abuso de informação de dois investidores, tendo endereçado as respectivas notícias de crime ao Ministério Público.
“Convém clarificar que o mercado se encontra disciplinado, o que aliado ao desconhecimento dos investidores e outras entidades de como actuar em situações que se sintam lesados, faz com que as reclamações não sejam muito frequentes”, começa por sublinhar Ana Semedo.
“Quanto às reclamações analisadas no ano passado, destaca-se a de uma investidora sobre a falta de diligência do seu intermediário financeiro na execução de uma ordem de subscrição de obrigações, duas relacionadas a insuficiente ou inadequada prestação de informações por parte de intermediários financeiros e, uma última, relacionada com interpretações inadequadas dos normativos no que se refere a registo de acções escriturais, que resultaram na cobrança indevida de custos de custódia a uma entidade que não pretendia ter aqueles valores mobiliários admitidos à negociação em Bolsa”, explica a auditora geral.
Já a conduta com indícios de manipulação de mercado que a AGMVM averiguou, “começou com a aquisição, por parte de um investidor, de um pequeno lote de acções de uma sociedade cotada. De seguida, o investidor passou a vender uma acção de cada vez a preços sucessivamente mais baixos, embora sempre dentro dos limites legalmente permitidos, o que teve por consequência uma diminuição expressiva do preço da acção da sociedade num curto espaço de tempo. Atingido um determinado valor, o investidor emitiu uma ordem de compra de um lote seis vezes maior ao inicialmente adquirido, aparentando pretender fazer inverter a tendência de evolução dos preços daquelas acções e, assim, beneficiar da sua variação artificial. Com efeito, ao fazer o preço cair e depois comprar em grande quantidade a preço baixo, o investidor criou uma situação em que poderia obter ganhos indevidos quando o preço dessas acções voltasse a subir”, esclarece Ana Semedo.
Riscos à confiança
A AGMVM revelou um ligeiro agravamento dos riscos à confiança no mercado em 2024. “A tendência observada na matriz de risco está principalmente relacionada com a materialização dos riscos de abuso de informação e manipulação do mercado, bem como ao registo de um conjunto de incidentes operacionais em plataformas de negociação e sistemas de controlo interno de intermediários financeiros, aos quais se juntam o incumprimento das obrigatoriedades de comunicação por parte de alguns emitentes”, refere Ana Semedo.
“Os indícios de crimes contra o mercado com os quais tivemos de lidar no ano passado, assim como incidentes operacionais são minimizados com as nossas acções de fiscalização às plataformas de negociação da Bolsa e aos sistemas de controlo interno e gestão de riscos dos intermediários financeiros, mas sobretudo com as nossas acções de transmissão de conhecimento e informações junto aos intermediários financeiros, principalmente para identificação de situações de manipulação e insider trading [uso de informação privilegiada] ”, continua.
“A supervisão da AGMVM neste quesito ultrapassa a esfera da monitorização dos riscos operacionais”, refere a auditora geral. “A AGMVM deve garantir que os investidores tenham as informações necessárias sobre o investimento que realizam, não só as características, mas também os riscos associados, através da prestação dos deveres de informações pré e pós emissão – supervisão de conformidade. Igualmente, a AGMVM deve garantir que os intermediários financeiros façam a apropriada categorização dos investidores (conforme o seu conhecimento, práticas de investimento e/ou classe de rendimento) e adequação dos produtos financeiros ao seu perfil, evitando uma inadequada tomada de riscos e consequências advenientes”.
“A protecção dos investidores não será efectiva sem um forte investimento na sua educação financeira, na transmissão de conhecimentos sobre conceitos básicos em finanças e investimento, mas também sobre melhores práticas de gestão do orçamento familiar, como evitar fraudes; a conduta que devem manter no mercado (para prevenir crimes contra o mercado e outros comportamentos inadequados); os seus direitos e responsabilidades; o papel da AGMVM e intermediários financeiros na sua proteção; a conduta que devem manter no mercado (para prevenir crimes contra o mercado e outros comportamentos inadequados); etc.”, conclui Ana Semedo.
Os objectivos até 2026
No relatório, a AGMVM refere que no plano estratégico para o quadriénio 2023-2026, há três objectivos a serem concretizados através de dez estratégias e 35 acções-chave.
A meio do percurso, a AGMVM avaliar a execução como satisfatória, estando 51% das acções concretizadas ou em avaliação.
Os maiores desafios à implementação das estratégias estão relacionados à disponibilidade e capacidade de pessoal especializado, nomeadamente de técnicos informáticos e juristas, refere o relatório.
Com a contratação de técnicos, cujo processo decorre desde o quarto trimestre de 2024, a AGMVM “estará em condições de acelerar a adopção das mencionadas soluções, cujos trabalhos preliminares (criação de bases de dados de acompanhamento do mercado e de registo de actos, de desenho de outputs de reporting e de modelos de aquisição de dados) se encontram em fase avançada”, refere o documento.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1232 de 9 de Julho de 2025.