Mulheres nas STEM: Desigualdades no mundo binário

PorSara Almeida,10 fev 2018 7:41

​São as áreas com maior taxa de empregabilidade. São também aquelas onde se encontram empregos com salários superiores à média. Falamos das CTEM — Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática (ou STEM, em inglês), áreas onde, cada vez mais, surgem as melhores oportunidades. Contudo, estas continuam a ser maioritariamente masculinas, numa (des)proporção que é gritante.

Apostar na presença feminina nas STEM é empoderar as mulheres, esbatendo os rostos da pobreza. Uma causa a que cada vez mais “mulheres STEM” dão voz.

Quando Selma Neves era pequena, costumava ver o seu tio, engenheiro informático, a “mexer nos computadores”. A actividade despertou-lhe a curiosidade. Achou-a fascinante e hoje, ao olhar para trás, considera que foi aí que começou um interesse que ditaria as suas escolhas de vida.

Mudou-se para os Estados Unidos, cresceu e no secundário optou pela via técnica na área da Electrónica. Era a única rapariga. Depois, formou-se em Engenharia de Sistemas Informáticos, onde finalmente encontrou colegas mulheres: duas.

Foi só quando finalmente entrou no mercado de trabalho, na multinacional IBM, que encontrou um ambiente mais equilibrado em termos de género. “A empresa tinha mais expressão feminina, mas fez um esforço para que isso acontecesse”.

Após o seu MBA, e apesar de ter mantido “sempre um pé” na tecnologia, Selma passou a trabalhar como gestora. De regresso a Cabo Verde integrou a NOSi, onde é coordenadora do departamento de marketing e vendas (numa altura em que a Empresa se converte numa EPE - entidade pública empresarial), o panorama encontrado nesta empresa foi semelhante. Mas são ambas excepções à regra, reconhece. Poucas são as empresas que a nível tecnológico mantêm alguma paridade.

Na realidade, a disparidade é mundial. De acordo com o World Economic Forum, as mulheres ocupam apenas 26% dos empregos “tech” a nível global.

Não sabemos ao certo qual é essa percentagem em Cabo Verde, mas o universo académico dá algumas luzes. Em 2012, por exemplo, de acordo com um estudo do Banco Mundial sobre o ensino superior em Cabo Verde, 72,7% dos alunos de licenciatura na área dos STEM eram do sexo masculino e apenas 9,5% das meninas optava por esta área. Um panorama um pouquinho acima da média, aparentemente, mas cuja ligeira superioridade não só não consola como é posta em causa se considerarmos que frequentar uma licenciatura da área nem significa que se termine.

Sónia Semedo é docente de Engenharia Eletrotécnica, e revê nas suas salas o que é mostrado nas estatísticas. “Este ano não tenho uma única menina. No 1º e 2º ano ainda conseguimos ter cerca de 20% de meninas, mas como dou aulas aos últimos dois anos já começo a não ter alunas”, lamenta. Outras professoras, incluindo as de outras universidades, pintam-lhe o mesmo panorama nas suas salas.

Entretanto, reconhece, há algumas áreas dentro das STEM onde há maior presença feminina. “Por exemplo, as ciências mais ligadas à engenharia biológica, geografia … mas no que toca a matemática ou então engenharias que precisam mais da computação, começamos a ter esse grande desnível entre meninas e meninos”

“É isso que queremos combater”, explica Sónia Semedo, que é membro da Women in Tech Africa de Cabo Verde (WITA-CV), um colectivo de mulheres das áreas STEM, que desde há dois anos tem vindo a realizado várias iniciativas no sentido de promover essas áreas no feminino e como factor de empoderamento.

A raiz do problema

As razões que afastam as meninas destas áreas têm sido debatidas um pouco por todo o mundo, e salvaguardando algumas especificidades de Cabo Verde, há pontos comuns. Para começar a persistência quase universal da atribuição de características masculinas às áreas. Os modelos comportamentais que se passam às meninas geralmente nada têm a ver com as STEM, sendo que estas são pois, desde a infância, afastadas das mesmas pela prevalência de estereótipos e preconceitos.

A falta de alguém que dê o exemplo, de um mentor, é uma das razões que Selma Neves considera ter influência. Para ela foi o tio, “mesmo os homens são importantes para trazer mulheres para a área”, brinca. Contudo, acredita que o exemplo de ver e conhecer mais mulheres das STEM pode ser fundamental para quebrar essa fricção que as meninas têm com estas áreas.

“O problema está em consciencializar as meninas de que esta área também é para elas”, corrobora Sónia Semedo. “Quando se pergunta a uma menina o que quer ser quando crescer, quase todas dizem professora ou médica. Dificilmente alguma diz ‘quero ser astronauta’. Então, acho que elas precisam de novas referências para mostrar que é possível estar nessas áreas, e que essas áreas também são para elas”, aponta a engenheira.

Entretanto, uma coisa é comum aos cursos das áreas STEM: todos eles, em maior ou menor grau, requerem uma base matemática.

A nível internacional o facto das meninas, no secundário “fugirem” de disciplinas como matemática ou física tem, aliás, sido apontado como um dos maiores impedimentos ao aumento do ratio feminino nos cursos tecnológicos.

Essa aversão é notada também em Cabo Verde muito por culpa, no entender de Telma Fortes, doutora em Matemática, de um sistema de ensino que não faz o uso devido da matemática intuitiva. Há uma quebra, cria-se a ideia de que a matemática, essa coisa abstracta, não serve para nada. Um assunto que aprofundaremos em futuras edições.

Sónia Semedo conhece a “desculpa” da matemática. “Mas acho que não é só isso”, considera. Aliás, as engenharias e a biologia que são STEM com mais raparigas, também têm a componente da matemática, argumenta.

A distinção poderá estar na matemática aplicada vs matemática “pura” (clássica). Telma Fortes, que tem como área de investigação a matemática aplicada à biomedicina, observa que as matemáticas aplicadas são mais atractivas para as mulheres.

Seja qual for o peso da temida matemática na equação, o problema é no mínimo complexo, e cheio de variáveis.

Aliás, um dos objectivos por trás das iniciativas na área do activimo STEM para meninas, é mesmo este de perceber o que as repele.

“Queremos perceber porquê”, afirma Elcelina Silva, presidente da WITA CV. Contudo, acredita a engenheira informática, o principal trunfo será dar a conhecer as vantagens do STEM. “Se uma pessoa souber que determinada área tem muitos incentivos, vai escolhê-la, independentemente dos desafios que possa encontrar na área”.

A soma dos catetos

Como criar interesse pela STEM? Mostrar as vantagens competitivas no mercado de trabalho, os melhores rendimentos e taxa de empregabilidade é, pois, uma forma.

Outras têm de vir desde tenra idade. Criar o gosto. “Temos se calhar de repensar e ver as alternativas” no ensino a nível de matemática e introdução do Coding, arrisca Selma Neves. Começar cedo, com kits, normalizando o contacto com a tecnologia e a linguagem de programação.

“Acho queno ensino básico e secundário usar ferramentas, como os legos, ou os arduínos, pode ser uma boa maneira de criar o gosto” pelas STEM, considera, na mesma linha, Sónia Semedo.

Um outro exemplo, mais direcionado para as meninas mesmo é a wereable technology (tecnologia vestível), que permite que, usando técnica e materiais geralmente associados à mulher – a costura e os tecidos –, se faça electrónica. “Recentemente vi uma designer (Teresa Almeida) que usa bordados com componentes electrónicos. Se eu levar isso para uma escola eu ensino-lhes a fazer condutividade sem que elas se apercebam. E vão ganhando o gosto”, conta a professora de Electrónica.

Afinal porque é tão importante trazer meninas e mulheres para esta área? Como as nossas entrevistadas foram acentuando ao longo do texto, esta é uma forma de empoderamento. Permite que as mulheres não fiquem à margem das oportunidades que aparecem no sector. Permite combater o desemprego, que tem hoje um rosto feminino. Mas não só. “Hoje, não se pode viver sem tecnologia. Não se consegue pensar num negócio que não beneficie de alguma tecnologia”, observa Selma.

Uma perspectiva partilhada por Sónia Semedo: “como estamos numa era digital, mesmo não sendo engenheira informática, temos de trabalhar com ferramentas digitais. Então o objectivo [da WITA CV] é, para além de mostrar que existem essas carreiras específicas, que podemos utilizar ferramentas desenvolvidas por esses cursos e empoderar ou melhorar as nossas competências nas áreas transversais.”

Um exemplo: “as mulheres que estão no mercado informal, podem tirar proveito do uso do viber para aumentar o seu pacote de clientes”.

Ao mesmo tempo, mostra a literatura, que quando se aumenta a renda de uma mulher toda a família beneficia e promove-se o desenvolvimento económico. Basta olhar o número de chefes de família em Cabo Verde que são mulheres para ver o potencial das mulheres STEM.

Pelo contrário, mantê-las à margem de um mundo cada vez mais digital é uma forma de exclusão, com consequências sociais a vários níveis e comprometimento de gerações futuras.

Ainda mais uma vantagem das STEM é que a possibilidade de trabalho virtual, sem amarras físicas ou de horário, salienta Selma. Isso que permite à mulher gerir melhor o seu tempo e conciliar trabalho com outras dimensões, nomeadamente a maternidade ou a investigação.

Além disso, se um país se quer afirmar nas STEM, não pode deixar de fora metade da sua população.

Ao envolver meninas, pelas informações expostas, na realidade todas as iniciativas faladas atraem também meninos. Envolvem-se todos.

Mas se por um lado há que mudar mentalidades e mostrar que esta é também uma área assexuada, por outro é preciso trabalhar a jusante e desmontar as expectativas e falsas presunções sobre a eficiência das mulheres nessa área.

“Muitas vezes as expectativas em relação às mulheres são menores do que em relação aos homens. Quando vão encontrar um engenheiro informático, se encontram uma mulher ficam surpreendidos. Ainda confiam mais num homem do que numa mulher”, lamenta Elcelina Silva.

Mundo de homens

Falando ainda em estereótipos e modelos, os que persistem sobrecarregam a mulher (e quase exclusivamente a mulher) com as funções domésticas e de cuidadora da família.

“As mulheres são diferentes e foram talhadas para cuidarem da família. Assim, mesmo com trabalho, com investigação, quando chegam a casa, não conseguem” não cumprir esse papel, “está em nós”, aponta a matemática Telma Fortes.

Falar de mulheres nas STEM desencadeia pois um levantamento de várias vertentes da equidade de género, pois todas elas se encontram relacionadas. Mas sem nos desviarmos da questão das STEM, os números também mostram bem o quão difícil é para as mulheres vingar, principalmente, em áreas tradicionalmente masculinas.

Nos países da União Europeia, por exemplo, apenas 20% das mulheres com cursos TIC continuam a trabalhar na indústria da tecnologia após os 30 anos.

Para Telma Fortes, há iniciativas discriminatórias que fazem sentido. Por exemplo, prémios e bolsa exclusivos para mulheres, ou com quotas de género. Ou associações de género e área, como a Associação para Mulheres na Matemática. Coisas que estão já a ocorrer em vários pontos do mundo criando oportunidades para as mulheres.

“As mulheres são ‘multifunções’ e isso tem de se levar em conta também na investigação. Porque muitas vezes somos colocadas em pé de igualdade com os homens. Ora, não estamos em pé de igual, nem podemos estar. Então a ‘igualdade’ para as oportunidades deveria ser diferente também. Deveríamos ter prémios e oportunidades somente para mulheres, em dois grupos, porque a realidade é essa”, defende.

Telma Fortes é também docente, de matemática. Nas suas aulas encontra um panorama mais equilibrado do que as suas colegas aqui entrevistadas.

Mas reconhece que as mulheres podem ficar para trás à medida que o grau de estudos avança.

Só para contextualizar: embora em 2012 56% dos estudantes de licenciatura fossem mulheres (em 2015, era já de 59% a percentagem, de acordo com o INE), no mestrado eram apenas 37% e nos doutoramentos não iam além dos 21%.

O estudo é referente a estudantes do ensino superior em Cabo Verde, mas o seu caso é paradigmático para o panorama geral. Telma Fortes é a única mulher de naturalidade cabo-verdiana doutorada em matemática e a viver no país. Há, na sua área e com as mesmas variáveis naturalidade e residência, cerca de uma dezena de homens com doutoramento. Uma proporção díspar.

Mas o problema não é só nacional. Recentemente Telma participou no Heidelberg Laureate Forum (HLF), um encontro de laureados em matemática e ciências da computação ao mais alto nível (antigos laureados do Abel Prize - o chamado Nobel da matemática -, entre outros). Este ano, houve 15 laureados HLF. “Todos homens”.

“Uma das coisas que pensamos nesse encontro foi isto tem de mudar”. Mesmo assim, foi com estupefação que os outros participantes souberam que ela era a única doutorada de Cabo Verde (e aí residente) em matemática. Impressionou também a fraca participação da sub-região. Só Cabo Verde, com Telma, e Senegal, com um representante masculino, marcaram presença. Marrocos e África do Sul tiveram muitos participantes. Os restantes PALOP nenhum, Brasil dois, Portugal zero. Mas a esmagadora maioria dos 200 participantes eram, de facto, Europeus.

Assim, os desafios das mulheres nas STEM são muitos, a nível mundial. Mas quando se chega a África, a própria ciência ainda é um desafio.

“Faltam oportunidades para África, para as mulheres. É tudo concentrado na Europa: Reino Unido, França… é necessário olhar para a ciência aqui em baixo (ao Sul). Para além de sermos mulheres, somos mulheres africanas e a ciência em África é o que é. São coisas que temos de debater, conversar. Temos de falar sobre isso”, considera Telma Fortes.

Panorama geral (também) é mau

Nem a maior taxa de empregabilidade, nem o facto de darem acesso a empregos mais bem pagos parece ser suficientemente cativante para atrair as jovens para as áreas STEM. Mas é preciso salientar que também não tem atraído os rapazes, na medida do expectável.

Quase metade dos estudantes licenciados no ano de 2015 (47,3%) era da área das ciências sociais, humanas, letras e línguas – a área com mais taxa de desemprego, facto que já em 2012 o Banco Mundial atribuía a um excesso de diplomados. São quatro vezes mais do que os que se licenciaram em Ciências exactas, engenharias e tecnologias no mesmo ano. Aliás, esta área (a de maior empregabilidade) é a que menos licenciados formou nesse e nos anos anteriores.

E havia menos estudantes em CTEM em 2015 do que em 2010, apesar do “Cluster TIC” e do “choque tecnológico” almejados.

Girls in ICT Day 2016

O primeiro grande evento ligado à questão do empoderamento feminino através das STEM (mais concretamente das TIC), em Cabo Verde, decorreu em Abril de 2016 e foi organizado pela Uni-CV. Tratou-se de uma conferência, realizada no âmbito da celebração Girls in ICT Day, na qual a Universidade pública juntou vários parceiros nacionais e internacionais, juntando-se assim a universidades de mais de 150 países que comemoram a data. Foi a primeira universidade dos PALOP a aderir a este dia das “Mulheres nas tecnologias”, uma iniciativa da União Internacional de Telecomunicações (UIT), que tem como objectivo base atrair mais mulheres para os cursos TIC.

Elcelina Silva, que é também a presidente do Women in Tech Africa de Cabo Verde (entretanto estabelecido no “pós-conferência”), foi a coordenadora deste Girls in ICT Day e recorda a boa adesão e resposta positiva que o evento teve.

A mensagem de que é necessário “consciencializar as mulheres sobre as oportunidades de carreira nas áreas das TIC”, incentivando-as a seguirem esta área, passou, avalia. E é uma mensagem importante.

“Na Uni-CV quisemos dar um contributo. Trouxemos esse tema para descobrirmos as dificuldades e trazer mais meninas para a área”, especifica.

Isto porque, “acreditamos que com mais mulheres nesta área podemos combater o desemprego feminino e o rosto feminino da pobreza”, explica.

Ao mesmo tempo, a conferência, à margem da qual decorreu uma feira de mostras tecnológicas, visou ainda “estar mais perto das empresas e das instituições para estas verem as potencialidades das mulheres nas tecnologias”.

O Girls in ICT Day 2016 deu pois uma espécie de pontapé de saída. Entretanto, entre iniciativas de outras entidades, a WITA CV também tem organizado diferentes eventos, incluindo palestras, visitas a escolas, e outros. Os objectivos são semelhantes ao do Girls in ICT Day.

Como refere Sónia Semedo, pretende-se inspirar mais meninas a escolher as STEM, para terem as melhores oportunidades no futuro, mas também, acrescenta, no que toca às mulheres que já estão formadas, mostrar-lhes as potencialidades STEM e formas de as aplicar no seu dia-a-dia.

Developer Circles

A primeira edição do Developer Circles, um programa do Facebook Inc., que em Cabo Verde é organizado por Selma Neves, aconteceu no final de Janeiro. “A ideia é juntar programadores da comunidade local, para criarem, na plataforma do Facebook, novas aplicações que podem até tornar-se num negócio”, explica.

A iniciativa foi encerrada por um diálogo aberto sobre o papel das mulheres Cabo-verdianas nas tecnologias. Trazer este debate para o lançamento do Developer Circles foi uma ideia que surgiu da experiência de anteriores workshops que a engenheira organizou.

Em 2016, num outro evento também com a chancela do Facebook, entre 100 participanetes, apenas três eram mulheres. No ano passado, em um outro evento, bastante técnico e mais pequeno (cerca de 20 pessoas) não havia nenhuma mulher da área da tecnologia. “Apenas apareceu uma senhora”, com o intuito de entender como usar a plataforma para melhorar o negócio.

Perante esse desequilíbrio optou por direccionar o Circles para o público feminino. “Pretendi angariar mulheres para o evento, numa perspectiva de empoderamento, não de exclusão dos homens. E foi muito bom. O espaço era limitado mas tivemos boa adesão, 40 e tal pessoas. Apareceram homens e mulheres, e a maioria neste caso foram mulheres.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 845 de 07 de Fevereiro de 2018.

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Autoria:Sara Almeida,10 fev 2018 7:41

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  10 fev 2018 7:41

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