A “transição digital forçada” provocada pelo novo coronavírus reforça que o futuro é digital, a todos os níveis, e a sustentabilidade e resiliência também passam por aí.
Neste contexto de pandemia, houve alterações na forma como se usa a internet e na relevância que ela tem no mundo profissional, educativo, económico, social, enfim em todas as áreas. Entre as mudanças, o que destacaria?
Destacaria, em primeiro lugar, a educação. A COVID-19 fez com que as pessoas tivessem de estar em casa durante um bom período de tempo, agora estamos a retomar a educação, mas sabemos que um dos conselhos das autoridades é o distanciamento entre pessoas para conter o vírus. Então, este é um desafio, mas também é uma oportunidade. É uma oportunidade porque estamos a falar de uma transição digital forçada, mas não só na educação, também em todos os sectores económicos. E há aqui uma oportunidade para mudarmos e percebermos que o digital não é uma tendência, o digital é uma ferramenta para aumentar a produtividade e a eficiência. A pandemia vem-nos mostrar que é também uma ferramenta de resistência ao choque. Seja em caso de pandemia ou não, para um país como Cabo Verde, dividido por diferentes ilhas, temos aqui uma oportunidade também de resistir ao choque exactamente através do digital. Quando falo em resistir ao choque, falo também na criação de oportunidades para a economia digital. Nós vimos em Cabo Verde o negócio do Home Delivery a crescer, principalmente na restauração, mas também nos supermercados. Quem soube aproveitar os canais digitais conseguiu recuperar um bocadinho daquilo que foram os desafios que acontecem quando as pessoas têm de ficar em casa, quando os restaurantes fecham. Uma oportunidade também para as empresas dos pagamentos online e os próprios bancos, através dos seus serviços de internet banking. Já existiam clientes que o faziam antes, hoje em dia, pelo medo, recomendações das autoridades sanitárias e conforto, já muitos mais fazem os pagamentos através de um click, no seu telemóvel ou computador. Houve igualmente mudanças nos serviços públicos, as câmaras municipais e governo central. Nós disponibilizamos uma série de serviços online, desde o início da pandemia. Disponibilizamos o site da COVID-19.CV que mostra informação privilegiada e informação fidedigna de acompanhamento à pandemia, disponibilizamos serviços públicos que ficaram suspensos, para as autorizações necessárias, por exemplo, utilizou-se o digital - estou a apensar na circulação de viaturas, a circulação de pessoas também no regresso às suas ilhas... Então, o governo, que já tinha feito um esforço pois Cabo Verde sempre foi um país que apostou na governação electrónica, começa a entender que há cada vez mais que reforçar a ligação com os cidadãos através de serviços digitais. E os próprios municípios estão também a começar a relacionar-se com os seus munícipes através da governação digital.
Disse que Cabo Verde sempre apostou no digital e falou em oportunidades. De que nível Cabo Verde partiu no início desta pandemia e onde está agora?
Acho que Cabo Verde sempre deu passos importantes na governação electrónica, mas há uma necessidade grande de darmos passos ainda mais acelerados para servirmos melhor os cidadãos. Esses passos estão a ser dados. Também o sector privado começa a acordar para a transformação digital e temos uma juventude capaz e com uma vontade grande de participar no crescimento económico do país e das empresas. Há oportunidades. Hoje há cada vez mais jovens com conhecimentos de marketing digital que podem colocar ao serviço de empresas mais tradicionais. Temos necessidade de aposta nas plataformas sociais, nas redes sociais, e perceber como é que os podemos prestar serviços através do digital. Há que ter sempre canais digitais de venda, se não ficamos no risco de que a chegada de uma pandemia possa suspender todo o nosso negócio. Não pode ser assim. Há uma lição que todos temos que aprender: que o digital pode-nos ajudar. E depois, para o turismo, acho que vai haver aqui uma oportunidade nos chamados nómadas digitais. A partir do momento em que o mundo começa a poder trabalhar de forma remota, sítios como Cabo Verde, que tem uma qualidade de vida interessante, com praias bonitas, com pessoas aberta ao mundo [podem vir a ganhar com isso]. Vai aqui surgir uma oportunidade para Cabo Verde e estamos também a apostar nesta parte.
Mas ao mesmo tempo que há todas essas oportunidades acentua-se a info-exclusão e iliteracia digital. Como conseguir que ninguém fique para trás, realmente?
Dados do Banco Mundial colocam Cabo Verde como o país de África subsariana com maior percentual de acesso à internet. Os dados da ARME mostram que no I trimestre de 2020 nós tivemos 443.000 assinaturas de internet em Cabo Verde. Uma taxa de penetração de 80%, mas temos aqui um desafio. Mais uma vez não vale a pena nós escondermos os nossos desafios: 395000 desses 443000 são small screen. Ou seja, são telemóveis. E nós precisamos aqui de ‘levar’ para os tablets. Por isso é que o governo tem apostado em fazer chegar os tablets aos professores e alunos. O orçamento Rectificativo de 2020 que foi recentemente aprovado contempla a aquisição de 700 tablets para distribuir aos novos docentes, mas também dispositivos para serem distribuídos ou emprestados a 20% dos alunos mais carenciados. Temos um programa de formação online, para professores e coordenadores pedagógicos no uso de plataformas online, porque temos, precisamente, o desafio de não deixar ninguém para trás, e apoiar os professores que tem aqui hoje uma nova realidade e um novo canal para o ensino. Os próprios professores têm de se habituar à nova realidade, vão ter de acompanhar toda esta mudança. O próprio aluno tem de acompanhar esta mudança, bem como os próprios pais. O governo também tem de acompanhar esta mudança. Então temos todos uma necessidade que não pode ser outra que não a de nos adaptarmos àquilo que é uma nova realidade. Não pode ser de outra forma. E o governo tudo tem feito, e já tinha vindo a fazer há algum tempo, para apostar na inovação e na tecnologia.
Essa é uma aposta antiga. Em que se tem traduzido?
Às vezes as pessoas têm alguma dificuldade em perceber como é que um país investe tanto na inovação e depois não investe em outras coisas. Mas a pandemia veio-nos mostrar exactamente a necessidade de apostarmos cada vez mais na tecnologia e na inovação. Nós estamos a apostar num cabo submarino, um investimento que fizemos agora no Ellalink; temos os nossos parques tecnológicos, que vão estar finalizados brevemente; temos os nossos WebLab que não deixaram de trabalhar mesmo em tempos de pandemia e durante o verão estão a oferecer cursos online; temos a Akademia de Código que vai reconverter jovens que estão desempregados de longa duração e que não têm necessariamente um formação nesta área para programadores, um programa intensivo financiado pelo Estado; temos a bolsa Cabo Verde digital que beneficiou agora 50 jovens para criar 30 start ups de base tecnológica e que é uma oportunidade única para os jovens cabo-verdianos, nunca tinha sido feito um programa de empreendedorismo com foco só no empreendedorismo tecnológico... Temos uma parceria com IBM, uma formação que queremos que chegue a 10 mil pessoas. É, mais vez, um plano de literacia digital e inclusão digital. Queremos apostar muito na programação e na inteligência artificial. Em formações técnicas com parceiros internacionais voltadas para a empregabilidade. Queremos que os jovens cabo-verdianos entre os melhores do mundo. Há bem pouco tempo definimos o quadro legal para a formação profissional à distância, isto parece-me importante. O resultado de todo esse esforço que temos feito também é a entrada nos rankings internacionais relacionados com inovação e starups. Uma entrada que é também resultado dos esforços do sector privado, das nossas startups. E queremos atrair mentes brilhantes para Cabo Verde. Temos um programa que vai ser anunciado em breve para nós atrairmos a nossa diáspora, que trabalha no sector da inovação para Cabo Verde, para desenvolver ideias aqui. E queremos também que quem tem interesse nesta área não tenha que abandonar o seu país e possa, através do nosso parque tecnológico, infra-estruturas que estamos a criar e políticas públicas, dar o seu contributo para o país.
Elencou várias inciativas, mas tudo isso já estava pensado antes da pandemia...
Sim. Cabo Verde tem essa vantagem perante outros países. Por exemplo, comparado com os outros países, às vezes falamos muito do preço da internet. Eu percebo a preocupação dos cabo-verdianos e estamos a trabalhar para o descer. Temos internet ilimitada a partir 4550 escudos...
Mas esse preço é para a fibra óptica que nem sequer está disponível na Praia toda...
Estamos a chegar a cada vez mais sítios. E relativamente ao mobile, a cobertura já é muito grande do nosso território. 1 GB são 500 escudos, muito abaixo dos nossos vizinhos e muito aceitável mesmo na lusofinia. Neste momento já entramos no 4G e já falamos no 5G. Estamos com um memorando de entendimento com uma grande empresa de telecomunicações que vai-nos apoiar nesta área.
A Huawei?
Sim. Estamos a desenhar [o memorando], não para uma solução comercial mas a pensarmos na educação, nos hospitais, ou seja para servirmos de forma mais rápida e eficaz os cabo-verdianos através do 5G. Mas ainda sobre os preços, são muito aceitáveis. Agora, se é aceitável para a realidade da maioria dos cabo-verdianos, acreditamos que ainda não, por isso temos também o mais de 100 praças digitais para acesso de forma gratuita, e onde estamos a trabalhar ainda mais depois desta pandemia. Aquilo que o governo definiu e está no orçamento rectificativo é começarmos a ver a internet como um bem essencial, com uma forte implicação do tarifário para a comunicação académica e também nos custos de acesso a conteúdos didácticos e plataforma de vídeo-conferência e vídeo-aulas. Não podemos criar aqui todo o ensino digital e não conseguirmos ter o acesso. Assinamos recentemente com as duas empresas de telecomunicação que operam em Cabo Verde um memorando de entendimento para a criação de condições favoráveis para o acesso à internet em áreas de saúde, educação, formação profissional (incluindo associações comunitárias que trabalham nessa área) e empreendedorismo tecnológico. Este memorando tem um plano de acção que passa exactamente por garantir internet a preços bastante acessíveis, e mais do que o acesso, importa o conteúdo. Isto é fundamental e é um dos nossos objectivos é tornar a internet como um bem essencial.
Exige-se das operadoras, mas na realidade elas também estão a sofrer o impacto económico da COVID-19. O que está a ser pensado para as apoiar?
Nós acreditamos que há uma oportunidade agora para a transformação digital. As operadoras, mais do apenas empresas de telecomunicações, são empresas digitais e o digital está neste momento a dar uma oportunidade e a ser uma necessidade para todos. Então estas empresas, com toda a certeza vão ter sucesso no nosso país se definirem o modelo de negócios certo. Acreditamos que o nosso papel é a criação de oportunidades e é isso que estamos a fazer com as infraestruturas com também com as políticas públicas, de apoio as nossas startups, apoio à formação... a partir daí é deixar o mercado funcionar.
Em jeito de conclusão, as apostas feitas por Cabo Verde, ao longo dos tempos, e o caminho traçado: a pandemia mostrou que a aposta foi correcta e bem feita?
O discurso, neste momento, está muito virado para a transição digital e para a transição energética. Esse é o discurso do governo de Cabo Verde há 3 anos, e não são só narrativas. Há investimentos claros nestas áreas, e é importante ver quanto é que em Cabo Verde temos gastado em termos de inovação e em termos de energia também para a parte da transição energética. Acredito que com o talento e a vontade dos nosso jovens, com políticas públicas e investimento em infra-estruturas que temos feito e com a vontade e necessidade das nossas empresas de abraçarem o digital estamos a dar passos em frente para o futuro e para determinarmos o Cabo Verde em que queremos viver.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 981 de 16 de Setembro de 2020.