Tornou-se popular com a pandemia, mas há muito que é estudado e que os cientistas acreditam no seu potencial. As vacinas de mRNA para o SARS-CoV-2 são o início de uma mais que provável utilização generalizada da tecnologia RNA Mensageiro com fins terapêuticos. É todo um novo paradigma na resposta da ciência a agentes infecciosos e doenças crónicas.
Nos laboratórios, há mais de uma década que os cientistas estudam as vacinas de mRNA noutros contextos. Como explica Nuno Morais, do Instituto de Medicina Molecular (IMM), da Universidade de Lisboa, com a covid-19, o que se fez foi aproveitar esse conhecimento de vários anos.
“Capitalizou-se um investimento que estava a ser feito em vacinas que foram desenvolvidas, essencialmente, a pensar no cancro. Quando as pessoas se surpreendem, que essas vacinas levaram tão pouco tempo a serem desenvolvidas, a tecnologia estava implementada, era uma ideia que já vinha a ser desenvolvida”, comenta.
A versatilidade que as vacinas de mRNA oferecem é significativa, o que ajuda a explicar o entusiasmo da comunidade científica. Neste momento, decorrem vários ensaios clínicos. Dentro de algum tempo, a tecnologia poderá ser a resposta que procurávamos no combate a bactérias, vírus, parasitas ou fungos, mas também no desenvolvimento de vacinas personalizadas contra o cancro e outras patologias.
Jailson Brito Querido, investigador do Laboratory of Molecular Biology, da Universidade de Cambridge, está particularmente optimista.
“Muito provavelmente, até ao final desta década as vacinas de mRNA passarão a ser uma estratégia comum no tratamento do cancro. Já nas doenças infecciosas, a corrida já começou”, antecipa.
O objectivo do RNA Mensageiro é estimular a resposta do sistema imunitário, através da indicação que passa às células para que sintetizem uma proteína que vai criar anticorpos. Ao contrário das vacinas tradicionais, as vacinas de mRNA não utilizam o agente infeccioso ou parte dele, motivo pelo qual são inovadoras e mais seguras.
“Como uma casa, as nossas células estão divididas em vários compartimentos. Um dos compartimentos chama-se núcleo, onde está guardada a nossa informação genética. Um outro compartimento é o citoplasma, onde está o ribossoma, que é a fábrica de proteínas dentro das células. Para fabricar as proteínas, o ribossoma precisa de receber as instruções que estão guardadas na nossa informação genética. Para isso, as células utilizam o mRNA para enviar essas instruções ao ribossoma. As vacinas contêm um ou mais mRNA, os quais transportam as instruções de que os ribossomas precisam para fabricar proteínas de um agente infeccioso e com isso despertar a resposta imune, ou seja, a produção de anticorpos”, sintetiza Jailson Brito Querido.
A medicina personalizada não é uma novidade, mas o nível de personalização oferecido pela aplicação da tecnologia RNA Mensageiro abre um mundo de oportunidades no tratamento e prevenção de doenças. Para cada paciente, em cada caso, uma solução terapêutica específica. Nuno Morais realça a importância da recolha de dados e a definição de padrões que isso permite.
“À medida que tu acumulas dados de muita gente, começas a aumentar a precisão com que consegues adivinhar o que se está a passar com o doente seguinte. Acumulamos dados de muitos doentes e vamos à procura daquilo que é comum e daquilo que é diferente, vamos à procura de padrões. Quando vier o doente seguinte e vires aquele tipo de padrão, já sabes que terapia é que lhe vais dar e sabes que esta vai funcionar e aquela não”, resume.
Aplicado ao campo do diagnóstico, este princípio também permite avanços significativos.
“O mRNA dá-te a capacidade de medires em grande escala o que está a acontecer com todos os genes da célula e também medir de forma muito precisa como é que as células estão a responder a estímulos”, simplifica o especialista do IMM.
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Uma história de décadas
A descoberta da estrutura do DNA, em 1953, por Francis Crick e Jim Watson, no MRC Laboratory of Molecular Biology (MRC LMB), revolucionou a Biologia Molecular e abriu portas para a existência de um mensageiro. Contudo, só mais tarde, em 1961, foi finalmente anunciada a descoberta do mRNA por vários cientistas, entre eles, o sul-africano Sydney Brenner.
A partir dos anos 1990, tornou-se evidente o seu potencial médico e biotecnológico. Contudo, a sua grande fragilidade dificultou as pesquisas. Só na última década foi possível retardar a destruição do mRNA, o que conduziu ao desenvolvimento das primeiras vacinas.
Extremamente sensíveis, as vacinas de mRNA requerem transporte e armazenamento em condições excepcionais, o que condiciona a sua utilização nas regiões mais remotas do globo. Para Jailson Brito Querido, “um dos grandes desafios passa pelo aumento da estabilidade do mRNA”.
“Quando olhamos para estas vacinas, estamos a olhar para várias décadas de investigação científica realizadas um pouco por todo o mundo. O grande mérito das empresas como a BioNTech e a Moderna foi tornar essas décadas de conhecimento científico em produto comerciável”, assinala.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021.