Novos tempos, novos desafios e ameaças ao jornalismo, novas formas de contar histórias, novas concorrências, novas maneiras de interagir com os cidadãos/leitores/ouvintes/consumidores. No Dia da Liberdade de Imprensa, 3 de Maio, José Manuel Fernandes, fundador do Observador e antigo director do Público, esteve na Praia, a convite da AJOC, e falou com o Expresso das Ilhas sobre este novo jornalismo.
Quais são as ameaças e desafios do jornalismo contemporâneo?
Acho que a grande ameaça que o jornalismo contemporâneo hoje corre é o facto de estar a ocorrer uma espécie de pulverização do espaço público. Sobretudo, estou a falar nas democracias mais avançadas, mas penso que o mesmo está a passar-se nos outros países. O que é que acontece? O jornalismo é indissociável da democracia, a democracia para funcionar necessita de ter um espaço comum onde as pessoas partilham, não digo toda a informação, mas pelo menos um conjunto de informação suficiente para poderem decidir o seu destino comum a partir de uma certa base mínima de saberem o que está em causa. No tempo de Atenas isso era garantido porque toda a gente se reunia na Ágora, a partir do momento em que as democracias passaram a ser grandes, com muita gente, isso passou a ser garantido pela imprensa escrita que garantia que a informação era difundida, como mais tarde o fizeram a rádio e a televisão. E sempre foi sendo assim e continua a ser assim. Mas o que está a ocorrer, nos últimos anos, um pouco por todo o lado? É que este espaço público tem vindo a partir-se, devido à evolução tecnológica, por que é possível que eu deixe de ter o espaço público do telejornal da noite, ou do jornal da manhã, para passar a ter como espaço público a minha rede social. E, de repente, passo a ter pessoas que vivem em realidades paralelas, ou com informação paralela.
E que, principalmente, trabalham com as emoções.
Sim, onde muitas vezes só trabalham com as emoções. Como uma expressão muito interessante que ouvi diz: isto deixou de ser uma democracia para ser uma emocracia (risos). Portanto, a Internet permite que eu me junte, não às pessoas da minha comunidade – as pessoas que vivem na minha comunidade física, o primeiro local da democracia – mas às pessoas que partilham as minhas ideias, as minhas fobias, os meus medos e, às vezes, podem ser coisas tão simples como eu gostar de Rolex, ou ter a mania dos cães, ou ter a mania dos cães d’água, ou ter a mania dos cães com pulgas (risos). As coisas partiram-se, as pessoas deixaram de falar umas com as outras. As pessoas passaram a estar nas suas redes e outros nas redes deles, ao lado umas das outras, mas sem comunicarem entre si.
Podendo mesmo ser vizinhos.
Podendo estar no mesmo prédio, no mesmo andar, e isso acontece, muitas vezes não sabemos quem é o nosso vizinho da frente. Essa realidade, esse partir do espaço público, que é substituído por comunidades virtuais, para mim, é o grande risco que o jornalismo tem de enfrentar. Por que aqui o jornalismo deixa de ter lugar, desaparece. Essas pessoas, por opção, abdicam da mediação jornalística, por que acham que ela não faz falta e só lhes interessa as notícias de que elas gostam, ou as falsas notícias que vão ao encontro das suas convicções. E isto é válido para todas as convicções políticas, esquerda, direita, centro, tudo. Não é só para os extremos, é para todos. E o jornalismo, que devia cimento para criar o espaço público, torna-se impotente quando isto se frequenta, sendo que o jornalismo teve responsabilidade nesta fragmentação.
Porquê?
Em parte, por que perdeu contacto com algumas comunidades e fez com que essas comunidades deixassem de se sentir representadas naquilo que viam nos órgãos de informação e foram à procura de outros espaços para se sentirem representadas. E também quando o próprio jornalismo se sectarizou, criou órgãos sectários, e isso aconteceu também nos extremos dos espaços informativos.
Ao dizer que somos também culpados, tenho de lhe perguntar, como vamos voltar a ser relevantes novamente?
Ainda não deixámos totalmente de ser relevantes.
Tanto que ainda estamos aqui nesta profissão.
Sim, a prova é que ainda estamos aqui (risos), mas temos de ter consciência deste risco e perceber que não tivemos muito viver sem ser entre nós. Uma coisa que noto em Portugal é que o jornalismo é uma profissão muito absorvente, as pessoas trabalham muitas horas, vivem muito nas redacções, casam muito nas redacções, os seus círculos de amigos são feitos de jornalistas e isto cria um mundo fechado sobre si próprio. Não quer dizer que nos vamos divorciar ou romper com os nossos amigos (risos), mas temos de ter consciência que essa é uma limitação, temos de ter consciência que o nosso mundo não é o único que existe, existem outros e temos de estar atentos a eles, que existem transportes públicos que funcionam noutras zonas, há bairros que não são os nossos, audiências que não são as nossas, que as coisas não se passam só nos meios que frequentamos.
Temos de sair fora da bolha.
Exactamente. E isso é difícil, quando nós partilhamos uma notícia na nossa rede social, por exemplo, somos recompensados pelo número de likes e de comentários e medimos o sucesso da notícia por esses critérios, mas isso é dentro da nossa bolha.
Deixámos de medir o sucesso de uma notícia pelo seu impacto real? Deixámos de querer saber se produziu mudanças políticas, ou legislativas, para nos concentrarmos nos likes e partilhas?
Às vezes acontece isso, por que é o que é visível. Hoje em dia há coisas muito boas e muito más no jornalismo e é preciso saber mexer com elas com alguma inteligência. Eu sou uma pessoa do jornalismo escrito e sabia se uma capa de jornal tinha tido sucesso um mês depois quando vinham os resultados das vendas, apesar de não saber se aquela capa tinha vendido mais por causa do dia da semana, ou se foi por que estava ou não a chover, por que isso influenciava o número de exemplares vendidos. Agora, tenho instrumentos para saber, ao segundo, quantas pessoas estão a ler uma notícia. Isso é uma faca de dois gumes, permite-me saber o que está a interessar as pessoas – e assim posso afinar o noticiário em função disso – mas tenho de ter também a consciência que há uma diferença entre interesse público e interesse do público, portanto tenho de estar sempre a balancear os dois aspectos. E muitas vezes tenho de usar o interesse do público para chamar a atenção do público para o interesse público. Isso é um pouco a nossa missão, saber fazer uma mistura que permita jogar com as duas coisas. Quando há uma pressão económica sobre os órgãos de comunicação isso ainda se torna mais difícil. Temos de fazer um equilibrismo permanente, mas temos de viver assim.
Estamos a falar do imediatismo, de leituras ao segundo, isto está a tirar tempo aos jornalistas para pensar?
Não sei se perdemos o tempo suficiente a pensar. Curiosamente, fiz uma evolução de passar de um jornal semanário para um diário e de um diário para um online, conforme fui ficando com mais anos fui andando mais depressa (risos) e não me dei mal com isso. Temos de conseguir ganhar tempo para pensar, nem que seja à noite quando nos deitamos, quando vamos nos transportes, tentar encontrar alguns momentos para pensarmos no que andamos a fazer. E temos de ter tempo para conversarmos uns com os outros, temos de ter pessoas que nos chamam a atenção, mantermos conversas com pessoas fora da profissão, mas que também não são políticos, nem são decisores, falar com os cidadãos mais comuns, digamos assim. Eu não moro em Lisboa, moro numa aldeia, ouço o que a minha mulher me traz do senhor que vende os legumes, ou falo com amigos que são professores, se não fazemos isto, se andamos sempre nos mesmos restaurantes, nos mesmos bares, no fundo passamos o tempo a morder o nosso próprio rabo.
Ainda sobre os novos tempos, estaremos a ultrapassar bem o facto de já não sermos nós a ter a primazia do que é informação?
Apesar de tudo, acho que ainda somos nós que fazemos a agenda. Ainda há muitas notícias que não são notícia por que as deixamos cair. E outras que as transformamos em notícia por que vamos atrás delas. É evidente que há uma parte de histerismo das redes socias que nos condiciona e não nos devíamos condicionar por isso, mas há muitas outras coisas nas redes sociais que deixamos cair. O que devemos procurar fazer é olhar de outra forma, tentar não andar sempre a ver as mesmas coisas. Dou um exemplo, quando foram as eleições americanas fui fazer uma reportagem aos Estados Unidos, durante essa reportagem estive em Washington alguns dias e depois fui a uma zona deprimida industrialmente da Pensilvânia e estive lá um dia a falar com o presidente da câmara e com algumas pessoas. Era uma zona que tradicionalmente votava democrata e onde apanhei pessoas determinadas a votarem republicano. No dia seguinte, no carro, comecei a ouvir o discurso do Trump a apresentar o candidato à vice-presidência e quando ouvi aquele discurso pensei: “o que este homem está a dizer é o que aquelas pessoas queriam ouvir”. Desde esse dia disse que havia a possibilidade do Trump vencer as eleições, contra todas as sondagens e todos os meus amigos. Na noite das eleições não fiquei totalmente surpreendido. Porquê? Por que saí da bolha. E hoje vejo, na imprensa americana, que continua fechada dentro de uma bolha.
Isso é curioso, por que os jornalistas passaram todo o tempo a alertar sobre o Trump, a mostrar que fugia aos impostos, que mentia, mas foram derrotados pelas redes sociais. Mais recentemente, no Brasil, a imprensa mostrou quem era Bolsonaro e mais uma vez, não conseguiram fazer passar essa mensagem.
No caso do Bolsonaro, penso que é um pouco diferente do Trump. Para perceber o que se passou com o Bolsonaro é preciso ler o que Fernando Henrique Cardoso escreveu. O problema do Bolsonaro não é o Bolsonaro, é o Lula e o PT, o que se passou no Brasil, essencialmente, foi um voto contra o Lula e o PT, as pessoas não queriam mais aquilo e votavam nem que lá tivessem posto um coelho ou o Rato Mickey, ele tinha sido eleito. Calhou ser o Bolsonaro e o que muita gente não compreendeu é que havia ali uma rejeição radical do Lula e do PT. Eu fui percebendo ao ler o insuspeito Fernando Henrique quando ele escreveu que não ia apoiar o Haddad. Quando ele recusa este apoio é por que alguma coisa estava a acontecer. Uma repulsa que levou a um todos menos o PT.
A maneira como o digital alterou a maneira de contarmos uma história, e o próprio modelo de negócio, é um desafio ou uma oportunidade?
É as duas coisas. Que é uma oportunidade é. Chegamos a muitas mais pessoas, mais depressa, nunca a imprensa escrita chegou ao número de pessoas a que chega o digital. O Público chegava, na melhor das hipóteses, a 600 mil pessoas. Hoje o Público online, ou o Observador, chega a mais de 2 milhões de pessoas, só em Portugal, já nem falo do mercado global. Há uma coisa muitíssimo interessante, é possível ser mais acutilante e mais profundo no online do que no papel, as pessoas lêem mais textos longos no online do que o faziam no papel. Temos com frequência os nossos textos mais longos a serem os mais lidos, no Observador. Nós optámos por ter, e pode parecer loucura, sistematicamente textos longos como manchetes e com muita frequência são os textos mais lidos, e falamos de textos que precisam de cerca de 4 minutos para serem lidos. Para se ter uma ideia, 4 minutos equivale ao tempo de leitura de um jornal de papel inteiro, o que significa que nos jornais em papel as pessoas geralmente só lêem os títulos, raramente param para ler um artigo até ao fim. Quando estão 4 minutos a ler no online significa que leram até ao fim. São textos que em papel nunca seriam publicados naquele tamanho. Portanto, há aqui um paradoxo, contra intuitivo, quando pensamos que hoje em dia ¾ das pessoas lêem online em telemóveis. Penso que esse é o lado mais aliciante que tem o online. Agora, é um desafio por que é mais exigente, é mais rápido, implica mais riscos, mas a rapidez também tem uma vantagem, o erro é corrigido muito mais depressa. Tem vantagens, tem desvantagens, mas é uma nova realidade e não podemos viver sem ela. Faz lembrar quando chegaram os carros eléctricos também se dizia que as pessoas iam todas morrer electrocutadas (risos), já passou século e meio e ainda cá estamos, não é?
No fundo, o que quer dizer é que a única coisa que os media têm de fazer para combater esta realidade diferente e este mundo novo é fazer o que sabe fazer melhor: jornalismo.
Disso não tenho dúvidas nenhumas, fazer jornalismo é o que marca a diferença, mas é fazer jornalismo no sentido do que é o jornalismo moderno. O jornalismo quando nasceu, e que se limitava a levar e trazer notícias, ainda é necessário, mas hoje em dia é a parte menos nobre do jornalismo. A parte mais nobre é tudo o resto: contextualizar, explicar, verificar, investigar, tudo isso é o que faz a diferença, acrescenta valor e é o que as pessoas procuram. Por que hoje em dia qualquer cidadão tem acesso, ao mesmo tempo que um jornalista, ao Orçamento de Estado, mas quantos cidadãos são capazes de ler o Orçamento de Estado? Muito poucos. Quem diz o OE diz outra coisa qualquer. O jornalista continua a ter um papel que é seleccionar, não mostra tudo, por isso é que é bom haver vários ângulos, por que somos subjectivos ao seleccionar. E depois há todo o trabalho de valor acrescentado, que é o que as pessoas mais pedem. Quem faz isso no jornalismo é quem tem vindo a ganhar. Por que a única maneira do jornalismo sobreviver no futuro é tendo pessoas a pagar por ele, a publicidade vai continuar a existir, mas cada vez vai ser mais difícil ser esta a pagar o jornalismo. Portanto, vão ter que ser, como foi no passado, os leitores, os espectadores, a pagar pelo jornalismo e para pagar pelo jornalismo é preciso que encontrem lá qualquer coisa de valor acrescentado. Se não, porque estou a pagar? E isso é também um estímulo para fazer jornalismo.
Há cerca de 10 anos assistimos à explosão do cidadão-jornalista. Surgiram teorias a dizer que o futuro do jornalismo ia passar pelo trabalho conjunto entre o cidadão e o jornalista – sugiram vários projectos assentes nessa premissa – porque o cidadão queria ter um papel activo. Entretanto, surge o fenómeno da desinformação – das Fake News – e descobrimos que o cidadão, afinal, continua a ser passivo, a acreditar no que lhe dão. Que análise faz a estas questões?
Há aqui dois aspectos diferentes. Primeiro, a ideia do cidadão-jornalista é um mito, porque o cidadão não tem as competências do jornalista e, portanto, retransmite sem verificar e tanto pode retransmitir uma coisa verdadeira como uma coisa falsa. Não obedece a uma ética, logo, mais facilmente retransmite o preconceito ou induz o preconceito. Mas há um outro aspecto que não podemos esquecer, o cidadão tem hoje um papel diferente. Antes, estava condicionado ao que nós lhe dávamos, dávamos um jornal impresso e ele lia. Quando via um telejornal, éramos nós quem decidia o alinhamento das notícias. Agora não é assim. Agora, o cidadão escolhe as notícias, faz o seu próprio catálogo e recomenda as notícias a outros, por isso tem um papel diferente que nos condiciona e não podemos ignorar. Não é o cidadão-jornalista, mas é alguém que é muito mais activo no processo de produção e difusão da informação. Hoje não é passivo, escolhe o que vê.
Mas continua a ser manipulável.
Sempre foi manipulável, também era manipulado por nós (risos), pelos políticos, etc. Tudo isto é sempre muito complicado. Como costumo dizer, a verdade é sempre algo complicado de atingir e não há nada melhor para percebermos isso que vermos as discussões em torno dos lances de futebol. Mesmo com vídeo, nunca as pessoas estão de acordo. É a metáfora onde podemos ver melhor como a subjectividade condiciona tanto a verdade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 910 de 08 de Maio de 2019.