Em Moçambique, reconstrução continua a ser um sonho, um ano após o Idai

PorExpresso das Ilhas, Lusa,14 mar 2020 9:22

​Um colchão de espuma dá para cinco, encalhado entre baldes, panelas, roupa, tudo dentro de quatro paredes de blocos irregulares com buracos para a rua e uma fina chapa de cobertura.

Com tudo amontoado, parece que um ciclone ainda mora ali, na única divisão que não caiu há um ano quando o vendaval e a chuva do Idai se abateram sobre aquela e milhares de outras habitações precárias nos bairros pobres da cidade da Beira. 

Chindende Sera, 60 anos, ainda sonha com a reconstrução e hoje até recebeu material oferecido por doadores através das Nações Unidas - o ‘kit’ inclui barrotes de madeira e chapas de zinco -, mas que de nada lhe serve porque “não há dinheiro” para comprar cimento e refazer o resto da casa. 

“Os nossos recursos são limitados”, explica Sandra Black, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM), ao entregar o material.

A agência das Nações Unidas recebeu pouco mais de um terço dos 52 milhões de dólares (45,6 milhões de euros) pedidos a doadores, num cenário de défice transversal a todo o sistema da ONU.

Acrescenta que oferecem o que, numa análise em conjunto com as autoridades moçambicanas, parece ser mais útil, identificando os casos mais vulneráveis.

É impossível chegar a todos, reconhece, e isso é fácil de perceber pelo coro de queixas que Chindende e outros beneficiários têm de ouvir ao atravessar o bairro da Manga, na periferia da cidade da Beira, ao levar as ajudas do local de entrega até casa.

Ele, a mulher e três filhos vão continuar a acotovelar-se, cozinhar e tentar dormir no mesmo quarto minúsculo, com tudo amontoado.

Um remendo do tamanho de uma vida de biscates e ajuda de familiares – e ainda assim Chindende dá graças por não ter estado na sala quando a parede caiu, formando o monte de escombros que, passado um ano, ali continua: “Foi sorte. Deus me protegeu muito”.

A vizinha Inês Felipe, 19 anos, chora: chora por recordar a tempestade, chora ao receber o material, chora ao contar que ela e a mãe vão tentar reconstruir o telhado.

Como? Ainda não sabe. É como se dentro dela vivesse um ciclone, porque, um ano depois, só na sala e num quarto não chove, tudo minúsculo, tudo apertado lá dentro, sem espaço para haver paz de espírito e sem dinheiro para Inês se matricular na escola, quando já correu um mês do novo ano lectivo.

A mãe “foi trabalhar”, o pai já morreu há anos e a irmã levou-a um tio para o Búzi, já que naquela casa descoberta da Manga o sonho de uma habitação condigna continua a tardar, tal como para a maioria dos 500 mil habitantes da cidade da Beira.

Já era assim antes do Idai: o ciclone só veio agravar a pobreza de quase dois milhões de pessoas que, de uma forma ou outra, afectou.

Não há saneamento, a energia (quando a há) é fornecida por um emaranhado de fios carcomidos, todo o caminho é de lama, é difícil perceber o que sempre assim foi pobre e desordenado e o que ficou ainda pior depois do ciclone.

E há crianças a correr, sempre muitas crianças por todo o lado – não fosse este um país jovem, com metade dos 30 milhões de habitantes com menos de 18 anos.

O retrato no bairro da Manga é o que se pode captar hoje em qualquer ponto da urbe que já foi a mais influente de Moçambique, que nasceu no tempo colonial português, erguida em terras conquistadas a pântanos, a cidade onde casos de requalificação são uma excepção.

“Isto vai ser um processo extremamente lento”, diz Daviz Simango, presidente do Conselho Municipal da Beira, uma vez que a população e o país são pobres e dependem de fundos que não chegam para tudo e para todos.

“A mãe que vendia frutas ou artigos em pequenas quantidades vai ter um passo lento até recuperar o dinheiro” de que necessita para reconstruir, ilustra.

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Saindo da cidade, há 72 zonas de reassentamento no Centro do país onde vivem perto de 100.000 pessoas que perderam tudo, mas escaparam vivas de zonas inundadas há um ano acima da altura das casas.

Olham para o passado desde esses novos locais altos onde a ajuda humanitária lhes fixou tendas, deu comida e abrigo.

Estes campos de apoio transformam-se hoje em novas aldeias, permanentes, onde o governo atribuiu parcelas de terreno a cada família afectada para construir a sua casa e plantar a sua machamba (horta) para autos-suficiência alimentar no futuro.

“Estou melhor, aqui é o meu espaço, não estou a pagar renda”, conta Rabica Andrade no reassentamento de Mandruzi, onde integra um grupo de mulheres que produzem tapetes - uma das actividades de rendimento dinamizadas pelas organizações que estão a apoiar a consolidação destas novas aldeias.

Mas ainda há muito por fazer, diz Mira Vilanculo em Mutua, área de reassentamento localizada alguns quilómetros a leste, sentada à beira de um pequeno painel solar que carrega telemóveis.

“Estamos a chorar por energia e por um mercado” onde se possa ter “outro caril”, ou seja, produtos e ingredientes que complementem a ajuda alimentar humanitária, baseada em arroz e milho.

“Com um mercado podíamos ter um repolho ou uma banana, laranja ou tangerina”, que para já ficam só na ementa de sonho.

Nas áreas de reassentamento é comum haver a ambição de construir uma boa casa, porque as actuais, quando já não são tendas, ainda misturam lonas e caniço, barro e pedaços de madeira, finas coberturas de zinco, à vista, nada que imponha respeito a uma tempestade.

Já se fazem testes e divulgação de técnicas de construção resilientes, mas a maioria das que se fazem continua a ser precária.

Num “cenário ideal” todos deviam ter “uma boa casa, mas estamos em Moçambique, um dos países mais pobres em África. São necessários muitos recursos” que não estão disponíveis, resume Ghulam Sherani, dirigente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

“Por isso, tentamos fazer o melhor possível com os recursos disponíveis para estas pessoas recomeçarem as suas vidas”, conclui.

Um ano depois, estar longe de zonas de risco de inundação e fixar residência em zonas seguras é o primeiro (e único) passo, a reconstrução de sonho poderá vir a seguir.

O período chuvoso de 2018/2019 foi dos mais severos de que há memória em Moçambique: 714 pessoas morreram, incluindo 648 vítimas de dois ciclones (Idai e Kenneth) que se abateram sobre Moçambique.

O ciclone Idai atingiu o cento de Moçambique em Março, provocou 603 mortos e a cidade da Beira, uma das principais do país, foi severamente afectada.

O ciclone Kenneth, que se abateu sobre o norte do país em Abril, matou 45 pessoas.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,14 mar 2020 9:22

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  11 dez 2020 23:21

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