Mais próxima da costa africana do que da própria Sicília, à qual pertence administrativamente, Lampedusa, uma pequena ilha de 20 quilómetros quadrados com cerca de seis mil habitantes, é o ponto mais a sul de Itália, que no início do século se tornou um dos principais pontos de entrada na Europa de migrantes irregulares, na sua maioria subsaarianos, que atravessam o Mediterrâneo em embarcações precárias operadas por redes de traficantes desde a Líbia e Tunísia.
Os que conseguem chegar ao largo da ilha são levados directamente para o «centro de acolhimento» ('hotspot') de Lampedusa, por estes dias sistematicamente sobrelotado e com condições muito precárias, apesar de também diariamente centenas de migrantes serem transferidos dali para outros centros na Sicília e na península italiana, tal é o fluxo de chegadas que se verifica este ano, o maior desde 2017.
Mas muitos morrem no mar durante a travessia daquela que é hoje apontada pela Organização Internacional para as Migrações como "a rota mais perigosa do mundo", a do Mediterrâneo Central, onde este ano já terão perdido a vida mais de 1.500 pessoas, segundo estimativas 'por baixo'.
"É muito provável que o número trágico de pessoas que se sabe terem perecido ou desaparecido no Mediterrâneo esteja significativamente subestimado. Muitos naufrágios podem ter ocorrido sem testemunhas", diz à Lusa Laurence Bondard, da SOS Mediterranee, uma das várias organizações não-governamentais que prestam socorro no Mediterrâneo.
Lampedusa é também destino de eleição para muitos turistas que, nos meses de verão, 'invadem' a ilha, conhecida pelas suas praias exóticas, onde tartarugas depositam ovos, e fundos marinhos protegidos.
A artéria principal é como a de qualquer destino balnear de sucesso, com restaurantes e bares cheios, lojas de artigos de praia e de 'souvernirs', bancas de venda de bijuteria, artesanato ou fruta, e agências turísticas que organizam excursões de barco.
Desde o café do seu amigo Giacomo, localizado no ponto de intercepção entre o porto velho e o porto novo da ilha, localizados na mesma baía, Gianluca habitou-se a ver embarcações turísticas com festa e luxos a bordo cruzarem-se diariamente com os navios da guarda-costeira que trazem os migrantes recolhidos ao largo da costa.
"Chegam, fazem-nos sentar ali, por vezes uma hora ou mais ao sol, enquanto tratam das burocracias, para depois os levarem para o 'hotspot'", diz à Lusa este músico radicado há muitos anos na ilha, apontando para o local habitual de desembarque dos migrantes, que da ilha só conhecerão o centro de acolhimento. "Centro de detenção", corrige Giacomo.
Natural de Lampedusa, a maior das três Ilhas Pelágias que formam o pequeno arquipélago, Giacomo sente-se revoltado com a gestão da crise migratória e criou mesmo um "movimento político e cultural", denominado «Pelagie Mediterranee», cujo grande objectivo é travar aquilo que classifica como "a militarização de Lampedusa, que chegou a um nível nunca antes visto, com a presença de casernas e áreas militares disseminadas por toda a ilha e a deturpação da ilha com antenas e radares que poluem o ambiente".
"Apenas é aceitável uma pequena presença militar, proporcional à dimensão de Lampedusa", defende Giacomo, que, num espaço adjacente ao seu café construiu um pequeno museu de homenagem aos migrantes, com objectos recuperados das embarcações precárias tão distintas dos barcos turísticos, como biberões, latas de conserva, medicamentos, panelas e até sapatos.
De "visita técnica" de poucos dias a Lampedusa, Rafael, um académico brasileiro da Universidade de Vale do Itajai, em Santa Catarina, que coordena um mestrado em direito das migrações transnacionais, diz à Lusa que a principal impressão que leva de Lampedusa é precisamente "o contraste de duas realidades tão contraditórias", que seria ainda mais evidente não fosse a criação de áreas de acesso extremamente restrito, longe dos olhares dos turistas, como o próprio 'hotspot', que a Lusa teve autorização para visitar.
"Há um esforço no sentido de tornar os migrantes irregulares invisíveis, esconder essa realidade para não prejudicar a chegada dos migrantes que lhes interessam, os que têm dinheiro", comenta.
Também Gianluca admite que o contraste de duas realidades tão opostas, "entre os que tudo têm e os que nada têm senão desespero", é "particularmente intenso em Lampedusa".
De amigos ouviu o testemunho de quando Lampedusa assistiu, a 06 de Outubro de 2013, à que foi a maior tragédia no Mediterrâneo até ao recente naufrágio em águas gregas, cujo número de vítimas mortais está ainda por apurar.
A curtíssima distância da mais emblemática e paradisíaca praia da ilha, a Spiaggia dei Conigli (Praia dos Coelhos), que já foi eleita a melhor do mundo, uma embarcação com centenas de somalis e eritreus naufragou cerca das 05:00 da madrugada, causando a morte de pelo menos 368 migrantes,
"Os meus amigos tinham saído para uma noite de festa a bordo de um barco, que se prolongou pela madrugada. Quando começou a alvorecer e a fazer luz, viram o mar cheio de corpos", conta.
"Ainda socorreram aqueles que puderam, enquanto a guarda-costeira, que demorou uma hora a chegar, observava à distância, a aguardar autorização para intervir. Apresentaram denúncia contra as autoridades. Mas ainda hoje estão traumatizados", diz.
Dez anos volvidos, as tragédias nas águas do Mediterrâneo sucedem-se, e, em Bruxelas, os Estados-membros da União Europeia continuam a reflectir sobre o tema e a tentar 'fechar' o novo pacto sobre migrações e asilo, a partir de 01 de Julho sobre presidência da Espanha, outro dos países europeus mais afectados pela crise migratória e que tem a 'sua' Lampedusa nas Ilhas Canárias, outra das 'portas' procuradas por quem tenta de forma desesperada chegar à Europa.