Em regra, os titulares dessas contas apenas ficam a saber desta medida, quando procedem à movimentação das mesmas, porque não são notificados pela entidade que ordena o bloqueio.
Perante a informação dos bancos, dirigem-se ao Ministério Publico e ficam a saber que há uma investigação para esclarecer determinados movimentos e que depois de tudo esclarecido serão, oportunamente, informados. Muitas vezes, passados alguns meses, recebem a comunicação de que as contas podem ser movimentadas, sem qualquer explicação adicional. Acontece isso, com alguma frequência, com pessoas singulares e com empresas, ficando estas, durante meses, sem poder desenvolver as suas actividades, o que prova, necessariamente, prejuízos patrimoniais graves. E estes prejuízos serão suportados pelos contribuintes, se o Estado for accionado e, judicialmente, condenado pelos danos causados.
Note-se que os titulares destas contas não são sequer constituídos arguidos, embora a lei lhes faculte a possibilidade de pedirem para serem como tal constituídos, em vez de ficarem apenas sob o manto da suspeição. O estatuto de arguido confere alguns importantes direitos e deveres, o que já não se passa em relação a um mero suspeito.
Dada a frequência com que o M.P. tem estado a usar este meio de obtenção de provas, agindo numa espécie de clandestinidade, importa alertar para esta pratica porque briga com os direitos fundamentais dos cidadãos, como veremos de seguida.
Existem questões que se colocam quanto à competência para decisão de apreensão e congelamento de activos e das contas bancárias, assim como quanto ao prazo decorrido desde o despacho de apreensão dos valores e congelamento das contas bancárias e os seus efeitos ex lege. Refira-se que a lei impõe que as contas devem ser desbloqueadas, se no prazo de oito meses, não for deduzida acusação, nos autos de instrução que motivaram a medida de apreensão dos valores e bloqueio das respectivas contas! Aliás, pior do que a apreensão dos valores e bloqueio das contas, é a sua manutenção, depois do prazo limite de oito meses, sabendo o M.P. que deve, ex oficio, proceder ao cancelamento da medida, transcorrido aquele prazo!
Impõe-se, desde já, que se avoque os pilares constitucionais de Cabo Verde e se enquadre a ordem jurídica sob o primado constitucional democrático.
A República de Cabo Verde assenta nos pilares da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito democrático1, do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, igualdade para todos os cidadãos, cuja acção se encontra subordinada à Constituição e à legalidade democrática2.
Cabo Verde é uma República constitucional democrática, cuja ação do Estado se encontra submetida à juridicidade, à constitucionalidade, aos sistemas de direitos fundamentais, primados inatos ao Estado de Direito3.
Os actores do Estado, em especial os integrantes do poder judicial, a quem cabe administrar a justiça em nome do povo4, estão obrigados a respeitar, a promover e a defender os pilares da República de Cabo Verde.
Os mesmos estão vinculados aos direitos, liberdades e garantias, consagrados na Constituição de Cabo Verde, por força do seu artigo 18.º5.
Nesta senda, a propriedade privada é considerada um direito fundamental económico, como consagra o artigo 69.º, n.º 1 da CRCV.
A restrição a todo e a qualquer direito [liberdades e garantias] fundamental, como o direito à propriedade privada, só pode ser previsto por lei e só deve ser admitida dentro dos limites constitucionais e de acordo com a lei6/7.
Retira-se do artigo 32.º, n.º 7 da CRCV que aos arguidos é assegurado o direito de defesa contra todos os actos e omissões que ocorram em sede de um processo sancionatório, em especial em sede de um processo criminal.
É este direito-garantia constitucional que se deve invocar contra estes casos concretos: por um lado, um acto, despacho que decreta a apreensão dos valores e o congelamento das contas bancárias; por outro, uma omissão de decisão e de promoção dos efeitos inerentes à caducidade da validade da decisão [8 meses].
O despacho que decreta a apreensão dos valores e congelamento das contas bancárias dos cidadãos ou das empresas costuma ser exarado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 31.º, n.º 1 da Lei n.º 38/VII/2009, de 20 de Abril.
A Lei n.º 38/VII/2009, de 20 de Abril, foi alterada pela Lei n.º 120/VIII/2016, de 24 de Março, sendo que o artigo 31.º passou a ser o artigo 46.º, e o número 3 deste preceito foi alterado, no quadro de uma interpretação autêntica, para esclarecimento do correto sentido normativo do preceito legal.
Os n.ºs 1 e 2 do artigo 46.º [anterior 31.º] mantiveram a mesma redação.
O n.º 1 do artigo 46.º da Lei n.º 38/VII/2009, alterada pela Lei n.º 120/VIII/2016, de 24 de Março, estipula que a «autoridade judiciária procede à apreensão de bens imóveis ou móveis, direitos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos depositados em bancos ou outras instituições de crédito, mesmo que em cofres individuais, em nome do arguido ou de terceiros, quando tiver fundadas razões para crer que eles constituem vantagens do crime, ou se destinam à atividade criminosa».
Autoridade judiciária, para o sistema processual penal cabo-verdiano são o juiz e o Ministério Público, como se retira do artigo 9.º do Código de Processo Penal (CPP).
O legislador submete o âmbito de atuação preventiva e repressiva do preceito – apreensão de bens – a duas dimensões funcionais do poder judicial: ao juiz e ao Ministério Público. Ou seja, o legislador não tipifica em concreto cada acto para cada um dos operadores do sistema de justiça criminal, opta por impor uma interpretação do n.º 1 do artigo 46.º da Lei n.º 38/VII/2009 à natureza funcional e orgânica constitucional de cada um daqueles operadores, às suas atribuições e aos seus poderes de actuação em concreto.
Se a apreensão de bens se operar ou se perspetivar que ocorra no espaço e tempo funcional que o CPP atribui ao Ministério Público – v. g., apreensões de bens imóveis ou de bens móveis ou de outros bens que não estejam cobertos de uma tutela reforçada [tutela judicial] –, é este operador judiciário [MP] que tem a competência para proceder à apreensão daqueles elementos reais de prova.
Mas se a apreensão de bens tiver de ser procedida em espaços e tempos de tutela judiciária reforçada – v. g., escritório de advogado, consultórios, estabelecimentos médicos, estabelecimentos universitário, estabelecimentos de comunicação social, e estabelecimentos bancários –, a autoridade judiciária competente para proceder à autorização e presidir à diligência é o juiz, por força das alíneas d) e i) do n.º 1 do artigo 307.º conjugado com os artigos 245.º8 e 246.º do CPP no respeito pelos artigos 43.º e 44.º da CRCV.
É este o regime que o legislador também consagrou no n.º 1 do artigo 243.º do CPP, quando determina que:
«Por decisão fundamentada de juiz ou do Ministério Público, consoante for o caso, poderão ser apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova».
Como se pode ler e assumir, as apreensões podem ocorrer por decisão do Juiz – nos espaços e tempos de tutela reforçada [jurisdicional] – e por decisão do MinistérioPúblico – nos espaços e tempos de tutela relativa. A atribuição e a competência de decisão de apreensão de bens e congelamento dos mesmos depende da dimensão da esfera jurídica ou do valor jurídico a restringir ou a afectar. A competência oscila de acordo com o núcleo da esfera jurídica ou do valor jurídico em causa.
É, assim, que se deve interpretar o n.º 1 do artigo 46.º da Lei n.º 38/VII/2009 quando prescreve a «autoridade judiciária procede à apreensão», devendo-se interpretar juiz, nos espaços e tempos de tutela reforçada, e Ministério Público, nos espaços e tempos de tutela relativa.
É esta a vinculação jurídica exigida pelo princípio da legalidade, que tem, como seu grande baluarte do Estado de Direito, o princípio da reserva de código9, adoptado pelas ordens jurídicas continentais e suas sucessoras, como é o caso da ordem jurídica de Cabo Verde, ou seja, impõe-se que a lei avulsa seja interpretada de acordo com a norma prescrita no código, sob pena de não só a norma da lei avulsa como também a interpretação dessa norma estar ferida de ilegalidade.
Como preceitua o artigo 246.º do CPP, cabe ao juiz «proceder à apreensão de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos depositados em bancos ou outras instituições de crédito».
Esta imposição legal tem nova vinculação nas alíneas d) e i) do n.º 1 do artigo 307.º do CPP que determina que cabe exclusivamente ao juiz presidir/praticar as apreensões e congelamentos dos valores integrantes de contas bancárias.
O Ministério Público, no caso sub judice – valores apreendidos e contas bancárias congeladas –, não tem competência para proceder à apreensão dos valores e congelamento das contas bancárias.
O M.P., ao proceder a apreensão dos valores e bloqueio das contas, como tem sido pratica, faz uma interpretação normativa não conforme com o estipulado pelo código nem com o princípio da indisponibilidade e vinculação das competências processuais penais. Por isso, uma decisão assim tomada pelo Ministério Público encontra-se ferida de ilegalidade. Pior do que isso, é que a lei impõe um prazo de validade de semelhante decisão. Assim, a decisão caduca, se no prazo de oito meses, não for deduzida acusação contra os titulares das contas congeladas. Ultrapassado este prazo, o M.P. não ordena, como manda a lei, o levantamento do congelamento, com o agravo de preclusão do prazo máximo para a manutenção do congelamento dos valores depositados nas contas.
Agindo desta forma o M.P., ocorre uma nulidade insanável de um acto de instrução por se fundar num método proibido de prova – intromissão ilegal na privacidade dos depositantes10 –, nos termos do artigo 178.º, n.º 3 e 151.º, alínea e) do CPP e do artigo 35.º, n.º 8 da CRCV.
A decisão de apreensão dos valores e respetivo congelamento das contas bancárias nos moldes que tem sido tomada não respeita a lei processual penal e, muito menos, os princípios próprios de um Estado de Direito Democrático como é a República de Cabo Verde.
Impõe-se, pois, que o Procurador-Geral da República dê instruções aos seus procuradores da Comarca para porem fim a esta prática, que não dignifica a Justiça e desprestigia o Estado de Direito. Aliás, num momento em que os governos, este e os anteriores, fazem tudo para que a Justiça esteja ao serviço do crescimento económico do país, esta pratica só pode contribuir para afastar o investimento estrangeiro.11
É certo que todos devemos apoiar o combate, sem trégua, ao crime organizado, designadamente, a corrupção, o trafico de droga ou de pessoas, o terrorismo e outros, que estão sempre na base da lavagem de capitais, enquanto crime precedente, mas este combate não pode ser feito fora do quadro da legalidade, de um processo justo e equitativo, com todas as garantias de defesa dos cidadãos e das empresas e não na base “do vale tudo”, máxime, a preterição dos valores que fundam o nosso Estado de Direito Constitucional.
Se numa economia e numa sociedade como a dos Estados Unidos da América, onde os problemas de droga e lavagem de capitais são de longe superiores aos nossos, tal prática está sujeita a fortes restrições e só deve ser autorizada por um juiz de modo a proteger o cidadão, não se percebe a amplitude e a ligeireza com que a mesma é aplicada em Cabo Verde.
O Estado de Direito Democrático não se constrói apenas com boas leis. É também indispensável que aqueles que administram a justiça, em nome do povo, sejam bem formados e cumpridores destas boas leis. Caso contrário, tudo não passa de ficção!
1 O princípio do Estado de direito democrático, como ensina Gomes Canotilho, assenta, desde logo, na Constituição democrática, como é a Constituição de Cabo Verde, assim como avoca dimensões formais e materiais que se entrecruzam e se imbricam, de modo a manter a unidade da ordem jurídico-constitucional e infraconstitucional, como o princípio da constitucionalidade que se correlaciona com o princípio da supremacia da Constituição, como o princípio da separação de poderes que vincula a execução de quaisquer atos às competências, constitucionalmente definidas e ordenadas de acordo com as funções, como o princípio da independência dos tribunais e a vinculação do juiz à lei e à Constituição, como o princípio da vinculação à legalidade da atividade do Estado, e o princípio da garantia judiciária e da juridicidade da vida em comunidade. Cf. J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Edição (8.ª Reimpressão). Coimbra: Almedina, 2003, pp. 254-255.
2 Cf. artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 2, e 15.º da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV).
3 Cf. J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional …. 7.ª Edição (8.ª Reimpressão), pp. 243-249.
4 Cf. artigos 209.º, 210.º, 225.º e 229.º da CRCV.
5 Poder-se-á afirmar, na linha de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, este preceito [em conjunto com o artigo 17.º da CRCV], “transforma a Constituição em estatuto fundamental da ordem jurídica geral”, sendo que o artigo 18.º da CRCV consagra uma “cláusula de imediaticidade aplicativa” dos direitos, liberdades e garantias consagrados pela Constituição. Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa Anotada – I. 4.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 381 e 382. Nesta linha de pensamento, Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional – Tomo IV – Direitos Fundamentais. 3.ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 311-320.
6 Cf. artigo 17.º, n.ºs 2, 4 e 5 da CRCV.
7 Seguimos na matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias as posições de Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional – Tomo IV – …. 3.ª Edição, pp. 337-341, e de Gomes Canotilho. Direito Canotilho…. 7.ª Edição (8.ª reimpressão), pp. 437-460.
8 É, de todo importante, que se relembre que o artigo 245.º do CPP remete para o regime jurídico das revistas [e buscas], previsto nos artigos 234.º a 242.º do CPP.
9 Nesta linha de pensamento se deve ler Luigi Ferrajoli. Derecho y Razón. Teoría del garantrismo penal. 7.ª Edição. Tradução do italiano Diritto e Ragione. Teoria del Garantismo Penale de Perfecto Andrés Ibáñez et Alii. Madrid: Editorial Trotta, 2005, pp. 93-97 (93) e Manuel Monteiro Guedes Valente. Teoria Geral do Direito Policial. Reimpressão da 4.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2016, p. 355, nota 777; e Do Ministério Público e da Polícia. Prevenção Criminal e Acção Penal como Execução de uma Política Criminal do Ser Humano. Lisboa: UCE, 2013, pp. 286 (nota 620), 293 e 296. É neste sentido que se deve ler o princípio da segurança jurídica de Arthur Kaufmann, integrando-o como uma garantia de justiça, de valoração das consequências, sentimentos jurídicos, harmonização jurídica prática, unidade jurídica, coerência e consistência jurídica. Cf. Arthur Kaufmann. Filosofia del Derecho. Tradução do alemão Rechtsphilosophie de Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Bogotá: Eniversidad Externato de Colombia, 1999, pp. 97, 102, 170, 176, 180 e 189.
10 É este o entendimento dos Juízes Conselheiros do STJ português, em anotação ao Código de Processo Penal Português, como se pode ler em António Henriques Gaspar et Alii. Código de Processo Penal Comentado. Coimbra: Almedina, 2014, p. 771: a «prova resultante de apreensão de objetos em estabelecimento bancário por outra autoridade diferente do juiz constitui um meio proibido de prova e, como tal, não pode ser valorada em julgamento, consubstanciando uma intromissão ilegal na privacidade do depositante do objeto”. Entende-se por objeto como bem ou valor.
Neste mesmo sentido se pode ler Paulo Pinto de Albuquerque. Comentário do Código de Processo penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4.ª Edição. Lisboa: UCE, p. 515.
11 Não quero acreditar, como alguns já admitem, que isso é feito de proposito para afastar os investidores estrangeiros e tramar o actual governo, porque dantes não se fazia o que se faz hoje em relação a esta matéria.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 842 de 17 de Janeiro de 2017.