Editorial: Não confundir as prioridades

PorHumberto Cardoso, Director,28 mai 2018 6:54

​Discursos do governo e dos partidos políticos na Assembleia Nacional e também de outros sujeitos políticos sistematicamente deixam transparecer a importância crucial da descentralização e da regionalização no desenvolvimento de Cabo Verde.

Pela ênfase que põem na matéria presume-se que a consideram não só como condição sina qua non para o sucesso futuro do país como também uma das primeiras prioridades senão mesmo a principal prioridade. As iniciativas legislativas do governo e da principal força de oposição que já deram entrada no parlamento dão sinal da vontade em avançar ainda que com diferenças quanto ao modelo, distribuição de competências pelos vários poderes e necessidade ou não de se operar uma grande reforma do Estado concomitantemente com a implementação da regionalização preconizada. O debate parlamentar desta sessão de Maio sobre a descentralização também é manifestação dessa vontade em manter o assunto bem vivo na mente dos eleitores. Pelos resultados e animosidade manifestada entre as partes ao longo do debate não é porém muito auspicioso quanto à possibilidade de se chegar aos acordos e compromissos necessários para a sua concretização.

Autonomia do poder local e descentralização da administração pública são princípios constitucionais que devem presidir a organização do Estado democrático e que importa operacionalizar da melhor forma para que os interesses específicos das populações organizadas em autarquias sejam reconhecidos e respeitados e que a máquina do Estado na sua tarefa de servir os cidadãos o faça com eficiência e eficácia, sem discriminação e garantindo igualdade de oportunidades. A dificuldade em aplicar esses princípios vem de longe. No pós-independência, o regime de partido único, por natureza centralizador, e o modelo de desenvolvimento adoptado baseado na estatização da economia e na reciclagem da ajuda externa exacerbaram a herança da centralização recebida do regime colonial. Quando finalmente nos anos noventa da democracia se verificou a restauração das câmaras municipais e a institucionalização do poder local eleito já se mostrou difícil reverter a onda do centralismo. Nem o esperado impacto da liberalização económica na dinamização das ilhas e na ascensão de uma sociedade civil autónoma conseguiu sobrepor-se aos efeitos socioeconómicos causados pela dependência externa que depois internamente se traduzia nas múltiplas dependências do poder centralizado a partir da capital do país.

As dificuldades de vária ordem, ideológicas ou outras, encontradas em operar uma verdadeira reorientação económica do país acabaram por acumular-se e criar frustração e ressentimentos que no ambiente político do eleitoralismo fácil foram canalizados para conseguir apoio político sob o argumento que uns tiram a outros o seu quinhão e que é imperativo para o desenvolvimento fazer a redistribuição dos recursos sem a correspondente preocupação com a produção. Com isso, infelizmente a matéria da descentralização e da regionalização passa a dominar a vida política e partidária não porque se reconhece que é essencial para a integridade do Estado de Direito democrático ou para se conseguir melhor ambiente de negócios ou ainda dar às comunidades de todo o país oportunidade para realizarem o seu futuro com autonomia, mas sim por ganância política. Ouvindo as muitas propostas que neste âmbito são avançadas, percebe-se que os objectivos de todo esse exercício político, apesar de todo o discurso feito, prendem-se com a necessidade em manter e conservar bases eleitorais. Ainda não se moveu para o centro da atenção de todos a necessidade de liberar as pessoas para construírem o seu próprio futuro e não deixá-las presas nas malhas que sistemas de dependência tendem a alimentar e a perpetuar.

Não estranha pois que dificilmente se chegue a acordo ou que se firmem compromissos quanto ao melhor caminho para realizar a descentralização ou a regionalização. Todos querem ganhar à cabeça e ao longo do processo. Com esse objectivo em mente todos os argumentos são válidos para se manter acesas as paixões dos grupos de apoio. Na generalidade das democracias, ataques a políticos tornaram-se corriqueiros, críticas devastadoras são feitas às instituições e o cinismo é abertamente cultivado em relação às políticas dos governos. Ninguém parece escapar à tentação de agitar sentimentos anti-partido, atacar o parlamento como órgão de mediação política e apontar a actuação dos governantes como distantes do real sentir do país e portanto de legitimidade duvidosa. Tanto assim é que, seguindo essa corrente e em nome da regionalização já se propõe diminuir o número de deputados, mudar o sistema eleitoral para se ter círculos uninominais, combater o partidarismo com primárias, com enfraquecimento de disciplina partidária e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidaturas nas legislativas. Em simultâneo faz-se apologia de práticas na actuação política como “estar junto das pessoas”, ouvir as pessoas e estar atenta às vozes expressas nas redes sociais sem mediação de qualquer tipo.

A realidade demonstrada pelo Afrobarómetro é que, não obstante as alterações já em curso, a democracia não está bem. A apreciação maioritária traduzida nas sondagens que vieram a público é que as pessoas estão insatisfeitas com a democracia e não se sentem ouvidas ou tidas em devida consideração pelos representantes do Estado. Tal apreciação deixa entender que afinal toda essa tendência para os políticos se comportarem como celebridades com voz própria, fraca ligação partidária e grande proximidade das pessoas não contribui muito para melhorar a confiança na democracia. Pelo contrário, poderá estar a piorar a situação com o ambiente quase caótico que se vai criando em que pessoas com um cargo já parecem ter uma agenda própria para se posicionarem para outro cargo público, e em que tiques narcísicos normalmente encontrados em celebridades aparecem com facilidade e em que não é muita a disponibilidade para mostrar coerência na actuação política, prejudicando no processo a procura da verdade e a capacidade para fazer os compromissos necessários para se atingir os grandes objectivos do país.

Cabo Verde no ponto em que se encontra não deve confundir as suas prioridades e não deve assumir que tem o tempo todo para soltar-se das amarras que dificultam crescimento rápido e criação de emprego. Deve sim poder construir consensos, acordos ou pactos de regime que favoreçam a consolidação das instituições democráticas e a reforma no sentido de maior eficácia em sectores-chave como a segurança e justiça.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 860de 23 de Maio de 2018.

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,28 mai 2018 6:54

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  28 mai 2018 6:54

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