Editorial: Paga-se caro a inacção

PorHumberto Cardoso, Director,23 jul 2018 10:09

Nos últimos dias de Dezembro de 2017 a Polícia Nacional entrou em greve por três dias. A população assistiu numa mistura de espanto e ansiedade à greve inédita na história do país. O governo também aparentemente apanhado de surpresa acabou por fazer uma requisição civil que não foi aceite por boa parte dos grevistas e que pelo contrário foi repudiada pelos sindicatos. Felizmente não houve perturbações maiores da ordem pública. Terá perdurado a má impressão deixada pelo comportamento de alguns agentes durante as manifestações pelas ruas da capital. Na época houve muita discussão se a polícia tem ou não direito à greve. O assunto acabou esquecido depois das convenientes salvas de artilharia trocadas entre os partidos, todos à procura de ganhos de curto prazo, preferindo varrer os problemas para debaixo do tapete.

O anúncio pelo sindicato da polícia SINAPOL de uma greve de seis dias para a próxima semana a partir de 26 de Julho trouxe outra vez à ribalta a insatisfação, mal-estar e falta de motivação que parece persistir na polícia não obstante os muitos investimentos já feitos nestes dois anos do actual governo em meios de comunicação e de transporte e também em aumentos salariais e promoções. E a injecção de meios não parou aí; continua tanto em efectivos, como em novas instalações e armamento. Na semana passada foi anunciado que cerca de 90 mil contos provenientes do Fundo do Turismo foram gastos em coletes à prova de bala, armas de fogo e outros meios para a polícia. Tudo isso porém parece que nem melhora o ambiente no seio da polícia, nem contribui significativamente para aumentar a sua eficácia a ponto de diminuir significativamente a percepção de insegurança na população. Talvez os dois problemas, mal-estar e falta de eficácia, tenham a mesma raiz como sugerem os altos oficiais da polícia Manuel Alves e Alcides da Luz em críticas publicadas respectivamente no Facebook e no jornal online Mindelsite que apontam para a inexistência de reformas ou de uma direcção capaz de elevar a actuação da polícia ao nível de eficácia desejável para enfrentar os desafios de hoje. Para esses dois oficiais, um no activo e outro recentemente passado à reforma, se mudanças profundas não acontecerem o prognóstico em matéria de segurança para os próximos tempos poderá não ser positivo.

Garantir a segurança é dever do Estado. É a razão primeira porque se criou a instituição Estado. Por isso não pode haver dúvidas quem tem a responsabilidade de a assegurar para tranquilidade de todos os cidadãos. E não é uma responsabilidade compartilhada no sentido em que o Estado e os seus agentes fazem a sua parte e os indivíduos, as famílias, a igreja e outras organizações da sociedade contribuem com a outra parte ficando a responsabilidade última pela eventual insegurança perdida algures sem que ninguém a assuma frontalmente. A desejável colaboração de indivíduos e organizações na manutenção da ordem e tranquilidade também compete ao Estado promove-la através de acções como cultivar o civismo e o sentimento de pertença à comunidade, facilitar a participação cívica e política e incentivar o associativismo. Se há falhas aí, a colaboração dos indivíduos é fraca e o baixo capital social da comunidade manifesta-se na falta de confiança na relação entre as pessoas, na tentação de fazer justiça privada e na desconfiança em relação às instituições. Quando é assim não se pode ficar pela simples constatação dos factos. Há que assumir as responsabilidades e há que agir em conformidade.

Do investimento feito na segurança, esperam-se legitimamente resultados num quadro que se quer marcado por critérios de eficiência e eficácia. Interesses de indivíduos, de grupos ou mesmo de corporações não podem prevalecer sacrificando o serviço público que se quer e que justifique a utilização dos recursos que afinal são de todos os contribuintes. Compete ao governo garantir que assim seja. Há que pôr fim ao mal-estar na polícia e há que aumentar a motivação dos agentes. E certamente que a questão não pode reduzir-se simplesmente a reivindicações salariais. O Estado tem recursos limitados e razoavelmente não se pode esperar que, de imediato ou quase, se resolva todos problemas que se acumularam durante mais de uma década. Por outro lado, não se pode deixar as coisas como essencialmente estavam e esperar automaticamente que haja motivação se o mérito continua a não contar e interesses difusos a serem obstáculos à elevação do nível de eficácia da organização e à realização das ambições de carreira de muitos.

Uma questão que porém já devia ter sido resolvida é da do direito à greve. A hipótese de greve da polícia foi aventada já se passaram alguns anos e houve por isso tempo para as forças políticas se debruçarem sobre o assunto e agir de modo a que nunca viesse a acontecer. Nada se fez e a greve aconteceu no final de 2017. Passados sete meses, está-se na iminência de outra greve da polícia e as opiniões divergem se é legal ou não, que limites poderá ter a requisição civil dos agentes e quem, em última instância, garantirá a ordem no país se a única força de segurança se encontra em greve. O entendimento na generalidade das democracias consolidadas é que polícias não têm direito à greve. Essa é opinião do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de tribunais constitucionais de vários países incluindo o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Para o supremo brasileiro a polícia sendo “o braço armado do Estado para a segurança interna não pode exercer o direito de greve sem pôr em risco a função primeira do Estado em garantir a segurança, a ordem pública e a paz social”.

Em Cabo Verde, apesar de há já algum tempo o problema se ter manifestado não se sabe se algum parecer sobre o assunto foi solicitado ao Ministério Público ou se procurou saber das instâncias judiciais algum posicionamento sobre a matéria. Também não é do conhecimento público que tenha havido alguma iniciativa legislativa para suprir eventuais omissões na lei. A postura, parece, é de nada fazer, mas esperar que o pior não aconteça. Não é razoável e facto é que a inacção muitas vezes se paga caro.

Humberto Cardoso

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,23 jul 2018 10:09

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  15 abr 2019 23:22

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