Não há reformas sem sólida vontade política

PorHumberto Cardoso, Director,12 nov 2018 13:59

Os dados do Doing Business 2019 que colocam Cabo Verde na posição 131 entre 190 países não são encorajadores. Há anos que primeiros-ministros e ministros dos sucessivos governos vêm declarando o seu comprometimento na melhoria da competitividade do país e do ambiente de negócios.

Os resultados não têm sido expressivos. A exemplo do que outros países fizeram cria­ram-se task forces e unidades de competitividade para melho­rar os rankings de Cabo Verde. Infelizmente os esforços desen­volvidos não resultaram como esperado, contrariamente ao que aconteceu em países como o Ruanda, a Estónia, a Finlândia e a Índia. Em alguns desses países conseguiu-se que melhorassem mais de 50 pontos nos rankin­gs. Os mesmos cinquenta pon­tos que o primeiro-ministro Dr. Ulisses Correia e Silva vem insis­tindo que é o objectivo a ser al­cançado nos próximos dez anos mas até agora não se viu movi­mento significativo dos rankings nessa direcção. Pelo contrário.

As dificuldades com que o ac­tual governo se depara no pro­cesso de melhoria do ambiente de negócios não são muito di­ferentes das enfrentadas pelo governo anterior. São dificul­dades para as quais contribuem extraordinariamente a atitude, os procedimentos e o modo de agir da administração do Estado. Em 2015, depois de quase quin­ze anos no topo da direcção da administração pública enquan­to primeiro-ministro, o Dr. José Maria Neves queixou-se várias vezes de problemas no funciona­mento do Estado com impacto nos custos de contexto, no am­biente de negócios e na competi­tividade do país. Era evidente na época a sua frustração e quase impotência perante a postura da administração que ele próprio dizia que precisava ser mais im­parcial, mais universal e menos partidarizada. Ainda hoje é cla­ro que os problemas persistem e pelos resultados do Doing Busi­ness vê-se que o actual governo mostra a mesma incapacidade em alterar as coisas, mudar os comportamentos e introduzir procedimentos mais expeditos.

Razão talvez para se concluir que vontade política dos gover­nos não consegue sobrepor-se à cultura administrativa que impregna toda a máquina do Estado e impor-lhe uma outra orientação e uma outra atitude. De facto, tudo leva a crer que a cultura administrativa que não serve os cidadãos, não serve os negócios e não é efectiva na implementação das políticas governamentais sufragadas na urna, sobrevive a mudanças de governo e até se reproduz quan­do se lhe dá oportunidade como aconteceu a nível dos municí­pios. A administração munici­pal, supostamente mais próxima das pessoas, não é menos buro­crática, centralizadora e insensí­vel para com os utentes. E é de esperar que a persistir a actual cultura administrativa no país, dificilmente, no caso da criação das regiões, a nova administra­ção regional vai criar um novo paradigma de relação com cida­dãos, utentes e operadores eco­nómicos.

Na origem e posterior evolu­ção da postura da administração do Estado certamente que se po­derá descortinar os contributos da administração salazarista e do regime de partido único e os efeitos das tentativas de reforma verificadas nos 27 anos de de­mocracia. As marcas dessa longa história ainda hoje são visíveis, mas o factor que deverá ter con­tribuído para que, no essencial, se mantenha igual a si própria, é a persistência de uma economia de reciclagem de fluxos externos que põe o Estado no seu centro. A máquina estatal enquanto re­cipiente e distribuidora desses fluxos que dinamizam a econo­mia do país naturalmente que ajuda a criar e a reproduzir na sociedade dependências múlti­plas. Por essa via acaba por ser­vir certos interesses políticos e alimentar uma classe média liga­da ao Estado e um sector privado atento aos acessos, facilidades e oportunidades que lhe são ofe­recidas ou disponibilizadas. Em tal ambiente em que eufemisti­camente o Estado posiciona-se no “topo da cadeia alimentar” é mais que evidente que qualquer reforma dirigida para lhe retirar essa posição dificilmente terá bom resultado. Não é pois de es­tranhar que apesar de todos os esforços para encaminhar o Es­tado para o papel de facilitador e regulador, enquanto o prota­gonismo na sociedade se deslo­caria para os indivíduos, para os empreendedores e para o sector privado, nenhum governo con­seguiu tal desiderato. O paradig­ma mantém-se, e todos sabem disso. Agora há quem espere que a regionalização num passe de mágica faça as transformações que até aqui reformas passadas não conseguiram.

Trabalhar para a competiti­vidade, ceder protagonismo às pessoas e empresas e ter a admi­nistração pública a renovar-se como facilitador e estrutura sen­sível às necessidades das pessoa e da economia significaria uma viragem profunda na mentalida­de geral do país. Representaria um comprometimento sério e consequente com os objectivos de crescimento e emprego para além dos discursos oficiais que são feitos em boa medida com o intuito de manter as transferên­cias externas para o país. Prova­velmente em 2018, 43 anos após a independência não se estaria a organizar uma conferência em Paris com os parceiros para se efectivar “finalmente” uma nova fase, nas palavras do Mi­nistro das Finanças Olavo Cor­reia, na qual “queremos delegar ao sector privado um papel mais preponderante” , “por forma a que ao invés de continuarmos a aumentar o endividamento público, termos investimentos privados a financiar projectos estruturantes em Cabo Verde”. Também não se estaria a ali­mentar em nome do “desenvol­vimento harmonioso” das ilhas modelos de crescimento com base em factores endógenas re­legando para o segundo plano o esforço nacional para se inte­grar na economia mundial com atracção de capital, acompanha­do de tecnologia e mercado, e com o aumento e qualificação do fluxo turístico. Historicamente, prova-se que Cabo Verde apenas conseguiu prosperar quando de alguma forma a sua economia se articulou com vantagens na eco­nomia mundial.

Manter o olhar virado para dentro do país convenientemen­te serve a cultura administrati­va que ajuda a manter o Estado no topo da cadeia alimentar. Só pondo de lado o modelo que até agora deixou o país dependente das transferências externas é que se pode almejar criar estruturas produtivas de base na iniciativa privada capazes de propiciar o crescimento e os empregos que tanto precisamos. Para romper o círculo vicioso é fundamental que a vontade política do go­verno se faça sentir com deter­minação, foco e sabedoria para ultrapassar as barreiras que até agora deitaram por terra todas as reformas da administração e poder contribuir para que final­mente o país se torne competiti­vo e produtivo.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 884 de 07  de Novembro de 2018.

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,12 nov 2018 13:59

Editado porAndre Amaral  em  12 nov 2018 13:59

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