Não é novidade que a questão dos animais errantes nas vias públicas constitui um problema de saúde pública. Não é novidade que para além de doenças que transmitem aos humanos (zoonoses), o crescimento descontrolado, principalmente da população canina, colide com o bem-estar das populações, pois traz por acréscimo o agravamento da poluição sonora (e todas as incomodidades a ela associada). Não é novidade que o assunto mexe com a autoestima da comunidade que é exposta a cenários degradantes como cães alimentando-se do lixo, cães com feridas abertas ou muito doentes, e ainda outros com sinais visíveis de maus tratos. Igualmente não é novidade que o problema dos cães errantes tem sido protelado pela classe política, enfiando cada um como pode, o problema para debaixo do tapete.
De acordo com o dicionário, governar, trata-se de um verbo transitivo que significa administrar; reger; dirigir; conduzir; regular o andamento de; ter autoridade sobre. Ora muito bem, a questão dos animais errantes, abandonados nas vias públicas tem sido objeto da governação? Se sim, desafio aos 72 deputados que assumiram o compromisso de servir o país a refletirem sobre as seguintes questões:
- qual o número de população canina errante em Cabo Verde e por ilha?
- que instrumentos legais têm sido produzidos para mitigar o problema?
- partindo do princípio de que é preciso recolher esses animais dos espaços públicos e providenciar instalações adequadas para os acolher, o que tem sido feito nesse sentido?
- existem campanhas contínuas de sensibilização/educação para a posse responsável de animais e a adoção dos animais abandonados?
- sendo o problema do crescimento descontrolado da população canina responsabilidade das Câmaras Municipais, quantas possuem veterinários?
- muitas atividades económicas proclamadas como “motores do desenvolvimento do país”, como a turística por exemplo, dependem diretamente da qualidade ambiental dos espaços públicos. É possível a conciliação do turismo com esse tipo de problemas ambientais?
Pois é, tudo indica que os animais não humanos, estando em todo o lado ainda não entraram no parlamento e nem na agenda de trabalhos, e isso é inacreditável.
É preciso saber que existem problemas que não se autorresolvem sem intervenção humana. Muito pelo contrário, agravam-se com o passar dos anos e o caso da população canina errante é um deles. Sem terem predadores e com uma capacidade de reprodução alucinante, caso medidas céleres não forem tomadas corremos o risco de assistir ao avolumar de dissabores com repercussões ambientais, sociais e económicas desastrosas.
Existem países em que problemas como o aumento da população canina e felina e o abandono de animais de estimação, não estão ultrapassados. Portugal há muito pouco tempo discutia de forma inflamada a questão do crescimento da população de cães e gatos procurando a melhor forma de resolver o problema. Criou-se em 1995 a Lei 92 – De proteção aos animais; a lei 27/2016 que concedera 2 anos para que as câmaras municipais se preparassem para a proibição dos abates nos animais nos canis municipais e a mais recente lei 8/ 2017 - que estabelece um estatuto jurídico dos animais reconhecendo-lhes a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade. Falamos de países onde nenhum político se atreveria a indicar as ruas como o melhor habitat dos animais errantes sem que a população fizesse “rolar a sua cabeça”.
Não se assustem que não pretendo comparar Cabo Verde com Portugal, pois seria um disparate de todo o tamanho e não cometeria uma falha tão pueril, estejam descansados. Mas o que vejo é um país com um problema e que atua de forma ativa no sentido de debelar a situação (cria um ordenamento jurídico que dê resposta a esse problema, investe em infraestruturas como canis municipais para acolher os animais, e discute energicamente as relações homens/ animais não humanos de forma a encontrar um caminho (solução) equilibrado, justo e sustentável para todos.
Não seria esse tipo de postura que chamaríamos de ato de governar?
Ainda um dia os nossos governantes haverão de explicar como se consegue falar em cidades sustentáveis, seguras, inclusivas e resilientes, desenvolvimentos urbanos sustentáveis, cidadania urbana e mais um chorrilho de novas denominações que por certo surgirão - pois para isso não se esgota a criatividade política - quando problemas ambientais grosseiros e indignos encontram-se ainda por resolver.
Até onde nos levará essa miopia política e discursos vazios de conteúdos? Onde estão todos quando deviam apontar caminhos com firmeza e lucidez?
Uma coisa é certa, os animais não humanos entrarão um dia no parlamento. Se não for no sentido figurado (políticos debatendo, legislando, fiscalizando sobre o assunto), será com a imposição da sua presença física (porque as ilhas começam a se tornar apertadas). E aí, quem sabe se os latidos, uivos, pulgas, carraças, e com sorte até algumas mordidelas nos oficiais traseiros de excelentíssimas figuras do Estado, se mostrem mais eficazes que as denúncias e alertas sociais feitas até então por nós, pobres animais… humanos.
Mestre em Cidadania Ambiental e participação