“À memória dos Caboverdianos marítimos, aqueles que, ao Serviço das Nações Unidas, ao serviço da liberdade, corajosamente, perderam a vida durante a 2.ª Grande Guerra Mundial.
Como testemunho de profunda saudade.”
– Frank Xavier da Cruz (B. Léza), 1950
O escritor Manuel Lopes explica que Mindelo “veio ao mundo sobre as quilhas da navegação internacional, nasceu, por assim dizer, cosmopolita, porque nasceu parasita do porto, e até hoje [1959] sempre dependeu dele”.
Influência dos Ingleses em São Vicente
A forte presença dos ingleses na ilha, nos mais diversos sectores de actividade económica, da área do shipping, da telegrafia e do comércio em geral, foram determinantes na formação dos hábitos e costumes do homem sanvicentino, moldando-o. Ao mesmo tempo que o influencia e desenvolve nele a necessidade e a apetência por tudo quanto representa o Outro, enquanto modelo de progresso e desenvolvimento, com destaque para o british.
Teixeira de Sousa, no seu romance Capitão de Mar e Terra (1984), cujo pano de fundo da história se situa nos anos 30 e 40 do século passado, criou uma personagem, Walter – necessariamente um nome inglês, no original “uolta” – que, a páginas tantas e apesar da origem do seu nome, ironiza essa mania de se copiar tudo dos ingleses, dizendo o seguinte:
“Os Ingleses puseram aqui o seu padrão de vida, que toda a gente adoptou para se guindar socialmente. Desde o gim ao tabaco amarelo, ao críquete, ao smoking, ao golfe, ao footing, há todo um conjunto de hábitos e preferências que o Mindelense superestima por provir do Reino Unido. Até se caga à inglesa, em latas com areia no fundo e areia ao lado”.
A referência à presença dos british na ilha do Porto Grande, com umas boas centenas deles e delas, por cerca de 120 anos, e de outros que, entretanto, por lá passaram, é a deixa para se ir streitoei ao tema, melhor, ao livro Razão da Amizade Caboverdiana pela Inglaterra de Frank Xavier da Cruz, B. Léza.
O livro, publicado pelo Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, em 1950, um “resumo histórico da posição psicológica do caboverdeano, perante a influência inglesa”, conta com uma Carta-Prefácio do Professor Dr. Adriano Duarte Silva, Deputado de Cabo Verde, e tem a seguinte estrutura: “Hitler”, morna composta em Dezembro de 1940, dedicada ao proeminente Primeiro Ministro Sir. Winston Churchill, seguida da correspondência recebida da B.B.C. de Londres; palestra “Razão da Amizade Caboverdiana pela Inglaterra”; e Quadro demonstrativo da influência da língua britânica no dialecto crioulo (Frases, locuções e verbos adulterados pela língua caboverdiana).
Morna Hitler câ tâ ganhâ guerra
A morna “Hitler câ tâ ganhâ guerra”, em crioulo e em inglês, foi composta em 1940 por B. Léza quando os exércitos apavoravam os povos da Europa com as vitórias ininterruptas e os “espíritos fracos” consideravam a vitória do Eixo como certa.
Esta morna, segundo seu autor, vulgarizou-se extraordinariamente tendo sido cantada por toda a gente em Cabo Verde como fé profética. Durante mais de dois anos se cantou e dançou-se esta morna, não só em Cabo Verde, mas em qualquer canto do mundo onde vivesse um cabo-verdiano.
Crioulo
Hitler cá tá ganhá guerra, ni nada!
Guerra ê di nos Aliado
Águia Négra é vencida
Ná campo di batalha.
Nô confiâ na Britishe
Nô pô fé ná sê valor
Dér Fiúra ‘stá vencido
Cô tudo sê horror
Churchill ê um barra di aço
Qui cá tâ derretê!
Na mar, na terra e na ár
El tem qui vencê.
Inglês
Hitler shall never win the war! Never!
The victory is for our Allied!
The Black Eagle shall be ruined.
On the battle field.
Let us trust on the British,
Let us have faith on their value
Der-Fuhrer is vanquished
With all his horror
Churchill is a steel bar
Which will never be reduced
On de sea, on earth, in the air
He will obtain triumph.
A morna “Hitler câ tâ ganhâ guerra”, cantada por Titina Rodrigues (versão em crioulo) e Nancy Vieira (versão em inglês), está gravada no CD “Música de Intervenção Cabo-verdiana” (2003) editado por Rui Machado.
“Conta-se que jovens Cabo-Verdianos entoavam excertos da versão inglesa da canção (provocatoriamente) quando marinheiros alemães se passeavam por Mindelo. Cabo Verde, como colónia Portuguesa era território neutro. Até que um dia um oficial alemão quis conhecer o autor da dita morna. Chegado a casa de B. Léza, perguntou-lhe como é que ele estava tão seguro de que os Germânicos perderiam a guerra. Perante a firmeza do compositor, ameaçou-o de que voltaria para lhe cortar a cabeça quando ganhassem a guerra”. Lê-se no livreto de apresentação do CD.
Razão da Amizade Caboverdiana pela Inglaterra
“A word is enough for a wise man”. E B. Léza era sabido…
Frank da Cruz procura definir, em síntese, as diferentes razões que geraram a nossa amizade pela Inglaterra recebendo a infiltração psicológica britânica como factor de progresso, admiração e culto de respeito:
– Antes de 1818, navios mistos, galeras e barcas inglesas e holandesas procuraram o porto da ilha de São Vicente para fazer aguada e dar repouso às tripulações;
– Entre 1818 e 1820, o Governo Britânico, procurando um porto de escala no Atlântico Sul para os seus navios, enviou algumas missões de estudo que descobriram o Porto Grande como o vértice desejado das suas carreiras entre os quatro continentes;
– Em 1850 o Governo da Metrópole autorizava por Portaria régia que a Royal Mail estabelecesse, isento de direitos, um depósito de carvão para o fornecimento dos seus vapores. Nesse mesmo ano era permitido ao Cônsul Inglês, Mr. John Rendall, instalar também livre de direitos, um depósito de carvão de pedra para o abastecimento dos vapores da carreira Europa-América do Sul;
– No decorrer de 1851 Thomas Miller instala outro depósito de hulha e, poucos anos depois, instalaram-se a Patent Full e Visger & Nephew. Em 1860 estas Companhias ligaram-se à Miller, com o nome comercial de Miller & Nephew CY;
– Seguiram-se outras Companhias e São Vicente progrediu notavelmente e começaram a desenvolver-se todas as ilhas do arquipélago, evidentemente impulsionadas por ela. Este sintoma de progresso determinou a emigração das outras ilhas para São Vicente, que necessitava de mais braços para os trabalhos, tanto a bordo, como em terra. Começou-se, assim, a aprender com os ingleses a trabalhar nas oficinas de carpintaria, nas ferrarias, nos estaleiros navais, na serralharia mecânica, no carvão e em todos os ramos de actividades;
– A ligação de São Vicente com os principais pontos comerciais do globo, a divulgação do porto e da sua posição estratégica, chamaram maior atenção dos ingleses que decidiram pelo lançamento dos cabos submarinos da Western Telegraph Company [o nosso Têlêgrafe]. Empregaram-se mais umas centenas de operários e a cidade alargou-se com a execução de novas obras obedecendo uma base de nova estética citadina;
– Poucos anos depois, 1897-1898, surge a guerra do Transval que abre a nossa terra à entrada de muitos navios britânicos que se servem do Porto Grande como entroncamento entre a Inglaterra e Cape-Town;
– O aumento da colónia britânica levou à criação dos primeiros clubes desportivos onde se praticavam todos os jogos desportivos, incluindo o hockey, o rugby, o five, o waterpolo, o remo, a vela, a natação e as corridas de cross-country. Com o nosso génio de aprender, dentro de pouco tempo surgiam as nossas primeiras associações;
– Depois da primeira grande guerra (1914-18) as Companhias Millers & Corys e a Shell instalaram importantes depósitos de óleos combustíveis que concorreram para salvar e reanimar a vida do Porto Grande, então em franca fase de decadência, por causa da crise mundial provocada pela derrocada do carvão;
– ...
Até 1971, altura em que se fechou o Têlêgrafe, a cultura inglesa influiu no espírito, no carácter e na psicologia dos sanvicentinos.
Frases, locuções e verbos adulterados pela língua cabo-verdiana
O quadro demonstrativo da influência da língua britânica no crioulo contém três entradas: vocábulo crioulo, significado, origem etimológica. Assim,
Vocabulário Crioulo | Significado | Origem Etimológica |
Ariópe Belachuto Cátche Djampá, Djampe Faiaman Streiteoei Salóngue | Levanta-te, depressa Fato macaco, fato de ganga Apanhar no ar, pular ou plutar Saltar, salto Fogueiro, homem de fogo Directamente, imediatamente, caminho recto Adeus! Até à vista! | Hurry up Boiler suitis To catch To jump, jump Fire-man Straight away Soo long |
É de se lamentar que as sucessivas administrações municipais da ilha de São Vicente não se tenham diligenciado em valorizar e recuperar esses laços procurando estabelecer geminações e parcerias de cooperação, sobretudo com as cidades de Newcastle e Cardiff, portos de onde provinham o carvão para o abastecimento dos barcos que aportavam ao Porto Grande.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 895 de 23 de Janeiro de 2019.