Nem Pessoa, nem Eça

PorEurídice Monteiro,28 fev 2019 6:41

​Fernando Pessoa encontra-se envolto numa grande polémica, pelo que se sabe, muito por causa da aventada intenção unilateral de Portugal, ou inicialmente sem oposição aparente, em consagrar esse poeta português como patrono de uma adaptação lusitana do programa europeu Erasmus, desta feita para o intercâmbio dos estudantes universitários no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que está sob a presidência rotativa de Cabo Verde.

Para uns, Fernando Pessoa era racista e defensor da escravatura. Esse tipo de acusação, ou denúncia, começou com o posicionamento crítico de Luzia Moniz, Presidente da Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana, num texto de opinião intitulado “CPLP escolhe escravocrata racista para projecto juvenil”, publicado no Jornal de Angola, na sequência da sua apresentação pública na Assembleia da República de Portugal, durante a cerimónia de abertura do ano da CPLP para a Juventude, perante deputados portugueses e governantes dos Estados que integram hoje a CPLP, mas também activistas, intelectuais e académicos afrodescendentes, brasileiros, portugueses e de diferentes países africanos. Luzia Moniz assegurou: «Não sei se Pessoa é ou não bom poeta. Isso pouco interessa para o caso. A minha inquietação é o uso da CPLP para branquear o pensamento de um acérrimo defensor do mais hediondo crime contra a Humanidade: a escravatura.» Para além do Jornal de Angola, o Expresso das Ilhas de Cabo Verde e vários jornais portugueses fizerem eco da declaração oral e do texto de Luzia Moniz, tendo as redes sociais amplificado o seu impacto junto da opinião pública transnacional.

Como tem sido apontado por vários críticos, um documento disponível no portal do Arquivo Pessoa, intitulado “O imperialismo de expansão tem um sentido normal” (http://arquivopessoa.net/textos/1013), confirma deveras que, aos 28 anos de idade, Fernando Pessoa escreveu o seguinte: «A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo...» Estas ideias têm sido relativizadas ao contexto da época em que viveu Pessoa. Daí que, para outros, tal acusação de imperialismo e racismo que pesa contra o poeta português não tem fundamento.

Na opinião da investigadora Teresa Rita Lopes, «as pessoas esquecem que quando atribuem frases ao poeta estão a tirá-las de uma das suas personagens [heterónimos], porque toda a obra do Pessoa é uma obra de teatro. Pessoa desdobrou-se em personagens que, naturalmente, se contrariam umas às outras.» Segundo esta investigadora, «o que acontece é que Pessoa inventou um personagem chamado António Mora, que também era pagão como Ricardo Reis, e para alguém assim a escravatura era algo natural.»

Por sua vez, o investigador José Barreto avançou que «como desde os anos 1980 se tem vindo a publicar muitas centenas de coisas que Pessoa nunca pensou publicar, muitos leitores simplesmente não distinguem entre o que ele deu ou pretendia dar à estampa e o que atirou simplesmente para a mala em que guardava tudo o que escrevia, mesmo certas parvoíces (acontece a todos) que rabiscava em papelinhos, eventualmente com uns copitos já bebidos. Pessoa não atirava nada fora: podia era escrever outros papelinhos a dizer o contrário do que tinha dito nos primeiros. Acontecia-lhe isso muito frequentemente.» Na esteira disso, José Barreto afirmou que existem «vários escritos», quase sempre «fragmentários e meros pequenos esboços de coisas que nunca levou avante» em que Pessoa defende a «escravatura». Barreto considerou, no entanto, queisso acontece «numa espécie de exercício dialéctico ou retórico íntimo, às vezes irritado, sempre provocatório.»

Richard Zenith, escritor, tradutor e crítico literário americano-português, vencedor do Prémio Pessoa em 2012, não negou a ideia de que «Fernando Pessoa era imperialista e defensor de classes e da escravatura na sua república platónica ideal», mas mostrou que o poeta não aderiu «às ideias racistas de Ernst Haeckel e outros, que acreditavam na inferioridade genética de certas raças, nomeadamente a raça negra.» Zenith assegurou que Fernando Pessoa «escreveu aquelas coisas citadas» e que isso «desqualifica o seu nome para ser associado a iniciativas da CPLP. O seu pensamento evoluiu, felizmente, e em 1935 não teria subscrito àquelas afirmações..., mas também não chegou a renunciá-las. Aliás, pode nem se ter recordado de as ter escrito. Escreveu-as, porém, e compreendo e concordo com a revolta das pessoas cuja dignidade feriu.»

E agora, Eça?

Depois desta polémica em torno de certos fragmentos do pensamento do poeta Fernando Pessoa, aventase outros nomes, como o de Eça de Queirós. Eça, também não me parece que seja o nome mais conveniente, embora tenha sido um bom romancista, lido ainda nos dias de hoje. O nome de Eça de Queirós poderá ser facilmente contestado, tal como foi o de Fernando Pessoa, pelas mesmas razões, na medida em que muitos dos seus personagens fictícios veicularam ideias racistas, esclavagistas e imperialistas (em Os Maias, A ilustre casa de Ramires, Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas, etc.); no que à África diz respeito, a crónica e a narrativa ficcional de Eça não foram nem de longe nem de perto um mar de rosas, pois o continente era visto ora como inferno para os degredados ou lugar onde se podia fazer dinheiro fácil pela via da escravidão dos negros, ora como a última possibilidade de paraíso para os entediados na metrópole decadente do século XIX, visto que Portugal já tinha perdido o Brasil e tinha sido afrontado com o Ultimatum Inglês.

Se afinal Fernando Pessoa, através de um dos seus heterónimos, foi defensor da escravatura, já Eça de Queirós – para além dos seus personagens no domínio da narrativa de ficção – foi, enquanto cronista, um dos mais destacados ressentidos com a decadência do império português, a tal ponto de ter sido apologista da venda das colónias para salvar Portugal na sequência da abolição da escravatura e do Ultimatum Inglês. Dizia, em Uma Campanha Alegre, o seguinte: «As relações de Portugal com as suas colónias são originais. Elas não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um único melhoramento: é uma sublime luta – de abstenção!... Quando muito, às vezes, a Metrópole remete às colónias, um governador: agradecidas, as colónias mandam à mãe pátria – uma banana. E perante este grande movimento de interesses e de trocas, Lisboa exclama: Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente, somos um povo de navegadores!» Recorda-se ainda deste derradeiro lamento e apelo do escritor novecentista: «Para que temos colónias? E ai de nós que as não teremos muito tempo!... Para evitar esse dia de humiliação, sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX – e vendamos as colónias.»

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.

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Autoria:Eurídice Monteiro,28 fev 2019 6:41

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  28 fev 2019 6:41

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