O pau e a cenoura

PorHumberto Cardoso, Director,10 jun 2019 6:11

Amanhã 6 de Junho deverá ser assinado com o Banco Mundial o acordo de ajuda orçamental de 40 milhões de dólares, como foi anunciado pelo próprio primeiro-ministro durante o último debate no parlamento.

Apesar de não ter ficado claro qual a modalidade de dispensa da ajuda, se seria anual ou o montante dividir-se-ia por 4 ou 5 anos, parece que o importante no anúncio é a decisão da retoma da ajuda. Para o PM significa um reconhecimento do esforço do governo em melhorar a economia nacional. Em 2016, no princípio do mandato do actual governo, o Banco Mundial ao suspender a ajuda directa ao orçamento condicionou a sua retoma à melhoria da situação financeira da TACV. Em Maio de 2017 o governo retirou a TACV dos transportes aéreos doméstico e regional e entregou a exploração desses mercados à Binter. Não foi suficientemente para o Banco Mundial. Continuou a insistir que teria que haver uma solução para a TACV internacional que eliminasse riscos orçamentais futuros. Até lá não haveria ajuda. Finalmente em fins de Fevereiro último com a compra de 51% da TACV pela islandesa Lotfteidir parece que o BM já se dá por satisfeito e volta à ajuda.

O que aconteceu visto assim retroactivamente faz lembrar a utilização da técnica do “pau e da cenoura” para conseguir resultados em que a virtude está do lado de quem os usa e os custos são assumidos por quem foi apanhado em falta. A verdade porém não é tão simples. As instituições de Bretton Woods, entre as quais o FMI e o BM, não desconheciam que no período imediatamente anterior se agravara a dívida do país, aumentara o défice orçamental e a economia praticamente se tinha estagnado durante anos seguidos. Nos seus relatórios recomendavam a aceleração de reformas estruturais designadamente da TACV, mas, como dissera a ex-ministra das Finanças à imprensa em 2013, continuavam a reconhecer que a dívida era sustentável a longo prazo. Com a mudança de governo a verificar-se em 2016 as referidas instituições endureceram a sua posição e já exigiam a “liquidação” da TACV. O governo, posto contra a parede, certamente que não foi nas melhores condições que teve que proceder à reestruturação da transportadora aérea e claramente a sua posição negocial sofreu com isso. As soluções encontradas são custosas e padecem de insuficiências várias, mas pelo menos a sangria de fundos públicos foi em grande medida estancada. O serviço de transporte aéreo que porém se espera ter num país arquipélago e relativamente isolado do mundo ainda está aquém do desejável.

Paul Romer, o Prémio Nobel da Economia que foi durante alguns anos economista chefe do Banco Mundial confessou num artigo no jornal Financial Times que falhou em tentar reformar essa instituição. Ele diz que que o banco tem uma missão diplomática mas que diplomacia exige ambiguidade e o que o BM faz para manter conformidade na frente diplomática não é compatível com pesquisas científicas necessárias para a identificação dos problemas e a proposta de soluções. Quer dizer que há que tomar com saudável cepticismo algumas das reformas que propõem. Segundo Romer, poderão ter sido afectadas por “complexas sensibilidades políticas”. Aliás, nenhum país se desenvolveu com as soluções do BM que não poucas vezes mudam conforme uma ou outra corrente económica se torna proeminente. Comentando a actual “paixão” do BM pela inclusão financeira usando tecnologia (fintech) alguém no Financial Times de 24 de Abril lembrou o obvio – que sem rendimento não há inclusão financeira, e sem emprego não há rendimento. Tecnologia por si própria não resolve o problema do desenvolvimento como se fosse algo mágico.

Ter capacidade própria, consistência e convicção é pois fundamental na busca do melhor caminho para chegar ao desenvolvimento . Para isso toda a ajuda deve ser bem-vinda mas ela nunca pode significar ficar na posição em que o diálogo entre parceiros é substituído por incentivos do tipo “pau e cenoura”. Nesse sentido é imprescindível que se aja de forma estratégica para diminuir a dependência tanto em termos de recursos como também de visão, capacidade de produzir e implementar políticas públicas. Infelizmente as décadas de política de reciclagem da ajuda externa consolidaram no país uma cultura de dependência. Em vez de seguir políticas próprias, demasiadas vezes vai-se atrás de projectos propostos por parceiros internacionais porque são a fonte de financiamento. Não se prepara devidamente para expor e defender as opções próprias e definir as prioridades do país. Em nome do desenvolvimento a reciclagem da ajuda tende a tornar-se num fim em si mesmo. O que fundamentalmente passa a importar é o fluxo de recursos criado pelos projectos sem que os resultados ou a sustentabilidade futura dos mesmos estejam no centro da atenção. A preocupação maior é que a um projecto siga um outro num movimento que se quer permanente.

No processo, além dos custos associados à falta de uma visão integradora com acções encadeadas e dirigidas para objectivos bem definidos, acrescentam-se ainda a ineficiência na utilização dos recursos. Tal acontece às vezes por descaso, porque são doados, outras vezes, porque não alavancam recursos existentes e ainda outras vezes porque são desviados em troca de favores políticos e similares. O orçamento do Estado que deve ser financiado fundamentalmente por receitas conseguidas com a contribuição de todos os cidadãos também devia merecer atenção para melhor se poder avaliar o seu impacto e a qualidade das despesas. Infelizmente o que se verifica em demasiadas ocasiões é que parafraseando o Presidente da República muitas das despesas do Estado revelam-se desnecessárias, desadequadas e desproporcionais. A falta de racionalidade na utilização dos recursos e o desperdício evidente que se faz em viagens, eventos e em iniciativas improdutivas dificilmente vão permitir que chegue um dia em que se possa libertar-se da ajuda orçamental de outros países e instituições internacionais. Quer dizer que os custos inerentes, imediatos e a prazo, vão manter-se mesmo quando trazem algum bem.

Regozijar-se com a retoma da ajuda do Banco Mundial só deveria ter razão de ser se fizesse lembrar as dúbias razões que em primeiro lugar levaram à sua suspensão, os sacrifícios feitos depois e os custos assumidos por causa da posição de fragilidade com que se teve de encarar certas situações para voltar ao agrado do BM. Mas não só lembrar. Importa é agir para que a exposição do país às vontades dos outros seja cada vez menor e o país esteja melhor posicionado para prosseguir o seu próprio caminho e cumprir a sua visão de futuro com parcerias menos condicionantes e mais potenciadoras das capacidades e recursos do país.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 914 de 5 de Junho de 2019. 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,10 jun 2019 6:11

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 mar 2020 23:20

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