O acto foi um grande acontecimento na medida em que confirmou a centralidade do princípio de respeito pela dignidade humana na relação entre o Estado e os cidadãos como bem estabelece a Constituição de 1992. Ficou claro que havendo situações como as das prisões e torturas de 1977 e 1981 em que cidadãos ficaram completamente indefesos perante o poder do Estado, sofrendo danos físicos, psicológicos e morais no processo, é de elementar justiça que no mínimo recebam reparação do Estado. A responsabilidade civil e objectiva do Estado assim o exige e, por isso mesmo, não colhe trazer para o debate a determinação dos culpados como passo prévio para se decidir a reparação. O Brasil, por exemplo, tem uma lei de amnistia dos agentes da ditadura, mas nem por isso tal facto constitui impedimento para o Estado fazer reparações financeiras aos que sofreram torturas e outros danos durante o regime dos militares.
O debate parlamentar que antecedeu a aprovação da proposta de lei deixou-se levar pelos caminhos mais primários do discurso político. A bancada do PAICV pôs-se na posição impensável num parlamento democrático de defender o regime de partido único, os seus actos e os seus dirigentes. Logo depois já estava a acusar as vítimas de tortura de terem sido agentes contra a independência e a dizer que a haver maus tratos os culpados encontravam-se entre os futuros dirigentes do MpD. Ao longo da discussão do diploma várias outras tácticas foram utilizadas para desvalorizar a matéria. Além de desacreditar as vítimas, ainda se tentou em intervenções sucessivas banalizar o sucedido em 1977 e 1981 aludindo a tortura no regime democrático, questionando o porquê do foco nos acontecimentos de S. Vicente e S. Antão e aliciando pessoas a requerer pensão do Estado por razões espúrias. No ambiente criado, não houve possibilidade real de debate, mas assistiu-se a mais um desses exercícios patéticos de ilusionismo que não resistem minimamente ao crivo dos factos históricos.
As prisões em S. Vicente e S. Antão destacam-se de todos os abusos verificados durante os anos da ditadura por envolver de uma só vez dezenas de pessoas, na generalidade gente transversalmente conhecida e respeitada na sociedade. Incluíam comerciantes, negociantes de bordo, proprietários agrícolas, mecânicos e empregados comerciais. De acordo com Aristides Pereira, no livro de José Vicente Lopes (Minha vida, Nossa história, pág. 248), foi praticamente por uma decisão sua é que as prisões não abrangeram o Dr. Baltasar Lopes da Silva. Pelos alvos escolhidos pode-se perfeitamente inferir que o móbil do então regime seria atingir figuras proeminentes locais numa lógica de consolidação de poder. O que não é muito diferente do que regimes similares fizeram no passado servindo-se também dos mesmos argumentos de uma suposta aliança de elementos da elite local com inimigos externos.
Também pelo âmbito da operação desencadeada nos dois momentos estava-se a testar e a demonstrar o aparato repressivo que desde a independência vinha sendo montado suportado pela legislação que permitia prender durante cinco meses sem culpa formada (decreto-lei 96/76) e um Tribunal Militar (decreto-lei 122/77) que podia julgar civis. Só em Maio de 1990 é que se começou a desmantelar o sistema com a revogação da lei do Boato e do decreto-lei 96/76. Ninguém e muito menos os representantes da nação em sede de discussão de proposta de lei podem negar que esse aparato existiu ou dizer que desconhecem para que fim foi criado. Está presente com os seus objectivos e estrutura nos Boletins Oficiais de 1975-90 e a forma como também actuou na Brava em 1979, na Praia em 1980, em S.Vicente em 1987 está suficientemente reportada nos jornais, revistas e outras publicações do regime. Uma preparação séria para o debate deveria ter implicado pelo menos uma visita aos arquivos da Assembleia Nacional para conhecer o período contemplado no diploma.
Pela mesma linha não se pode dizer, para desculpabilizar o regime, que as prisões, sevícias e torturas eram exemplos de excesso das autoridades. Não, era a ditadura a mostrar a sua verdadeira face. De facto excessos acontecem nas democracias e são reparáveis através de recursos e de acções judiciais de responsabilização do Estado. E é assim porque a democracia liberal funciona num quadro legal constitucional em que os direitos fundamentais constituem um limite ao poder do Estado e é dever do Estado protegê-los através dos mecanismos de separação de poderes e da garantia da independência dos tribunais. Não é o que se passa nas ditaduras, dai que tenha tanta importância a proposta de lei de reparação dos danos sofridos pelas prisões e torturas do partido único. Era a única via para se realizar alguma justiça.
A reacção à lei veio porém mostrar que ainda se procura instrumentalizar a independência nacional para dividir e atingir objectivos políticos como se fazia no tempo do partido único em que a república se legitimava com a causa da independência. Seguindo essa linha, ontem como hoje, há quem ache que pode acusar os outros de ser do contra ao mesmo tempo que se considera acima de qualquer crítica na forma como exerceu ou vê o exercício do poder. Mas com isso o que se consegue é manter a sociedade polarizada e impedida de beneficiar da dinâmica gerada pelo pluralismo de ideias e pelo exercício da cidadania em ambiente de civilidade e confiança. Há pois que assumir em pleno a II República que com Constituição de 92 tem nos seus alicerces o respeito pela dignidade humana, e reconhece a inviolabilidade dos direitos como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça. Nas vésperas do 44º aniversário do Cabo Verde independente, a independência não deve ser matéria de disputa política e nem pode ser motivo de desunião.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 918 de 3 de Julho de 2019.