Em Novembro de 1986, por ocasião do cinquentenário da Claridade, revista de arte e letras (S. Vicente, 1936-1960), apresentei no Simpósio Internacional sobre a Cultura e a Literatura Cabo-verdianas uma comunicação intitulada “A Cidade do Mindelo na Ficção de António Aurélio Gonçalves”, como uma tripla homenagem: (i) ao Ficcionista, que eleva a sua cidade natal à ficção como espaço exclusivo da sua novelística; (ii) à Claridade, revista nascida aqui na cidade do Mindelo; e (iii) à Gente do Mindelo, cujo problema das relações humanas constitui pano de fundo da novelística gonçalviana. Considero hoje ter sido isso uma grande ousadia, pela responsabilidade que acarretava, só possível devido à minha juventude e falta de experiência.
Dois meses antes, o estudioso Félix Monteiro, numa das minhas visitas à sua residência na Praia, tinha-me oferecido uma brochura de António Aurélio Gonçalves, que era, nem mais nem menos, que este Aspectos da ironia de Eça De Queiroz (Lisboa, 1937), eventualmente como forma de me ajudar na preparação do meu tema para o Simpósio do Mindelo.
Segundo Arnaldo França, no “Prefácio” ao Noite de Vento (Praia, 1985), o jovem António Aurélio Gonçalves seguiu para Lisboa, em 1917, em continuação dos estudos, tendo ali permanecido por vinte e dois anos, voltando à sua terra-natal só nos inícios de 1939.
“A capital portuguesa proporcionou-lhe uma vida literária de certa intensidade (...) quer em ambientes acentuadamente lusitanos, como ressalva do pequeno caderno de notas e impressões (...) e da convivência firmada com intelectuais de nomeada na época, entre outros Castelo Branco Chaves, Castro Soromenho e Álvaro Salema e contactos de tertúlia com elementos do Grupo da Seara Nova, quer no meio de africanos radicados em Lisboa, responsáveis pelos periódicos A Mocidade Africana e Humanidade” (pp. 11-12).
Foi durante esse período que, segundo Arnaldo França, Aurélio Gonçalves publicou o ensaio Aspectos da Ironia de Eça de Queiroz, tendo-lhe acrescentado, anos depois, algumas breves páginas.
Nas Conferências Democráticas de 1871, Eça de Queirós, definiu o Realismo como:
“É a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. – Por outro lado, o Realismo é uma reacção contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; – o Realismo é a anatomia do carácter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade”.
A partir disso, Eça esboça um inquérito vindo a desembocar num ciclo de romances de crítica social, de intuito reformista, que se inicia por O Crime do Padre Amaro, e se pode considerar fechado com Os Maias, passando por O Primo Basílio e A Relíquia, cabendo à ironia um papel de arma de ataque. Alguém já dissera que “O riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta de uma instituição, e a instituição aluí-se; é a Bíblia que no-lo ensina sob a alegoria, geralmente estimada das trombetas de Josué em torno de Jericó” (p. 16)
É, pois, com o propósito de interpretar os temas, os tipos de abordagem e a ironia, que António Aurélio Gonçalves, baseando-se nesse ciclo romanesco, publica, em 1937, o ensaio sobre o qual me foi proposto falar – Aspectos da ironia de Eça de Queiroz – numa sua revisitação.
Aspectos da Ironia Queirosiana
A ironia é uma figura de linguagem em que o sentido literal (denotativo) é muito distante ou mesmo o oposto do que se tem a intenção de significar. Dito de uma outra forma, ela é um processo de interpretação baseado na inferência, com fins lúdicos, satíricos, críticos, ou outros, e resulta de um constraste entre elevadas expectativas e uma realidade decepcionante.
Os aspectos da ironia elegidos por Eça de Queirós, com base no determinismo das doutrinas de Taine – referência importante para o Naturalismo que professava – sobre os quais o escritor António Aurélio Gonçalves se deteve, foram: (i) a hereditariedade (ii) a influência do meio; (iii) a educação; e (iv) o fatalismo, aspectos esses que o autor classifica de “frontaria de cepticismo” (p. 13).
Aurélio Gonçalves sintectiza isso em poucas penadas:
“Uma personagem apresenta-se-nos com traços próprios, e, subjacente, define-se ou adivinha-se uma herança psicológica. Existem nela tendências, que, de ordinário, lhe são transmitidas no sangue, declaradas em alguns casos, latentes outras vezes, ignoradas até do seu próprio possuidor. Não são corrigidas por uma educação racional e cautelosa. Aliás, no único caso em que a pressão educativa se exerce, é debalde, visto que, numa crise grave, a personalidade criada eclipsa-se, triunfando a natureza profunda do indivíduo, as inclinações que êle trouxera de nascença.
Um meio sempre o mesmo (...) pesa sôbre o herói, desequilibra-o, acentuando-lhe predisposições, às quais, em nome da moral, ou em virtude dos seus preconceitos, não consente uma livre manifestação” (p. 8).
Para demonstrar os seus argumentos, Aurélio Gonçalves percorre a galeria das figuras centrais de cada um desses romances.
Em O Crime do Padre Amaro, este é um sensual, ordenado sem vocação, que se insurge contra a lei da igreja que lhe impõe o celibato. Ao cabo de algumas peripécias, seduz uma rapariga e, a ocultas, faz dela a sua concubina.
Luísa, em O Primo Basílio, parece viver feliz na tranquilidade burguesa do seu lar, mas, no íntimo, é uma romanesca apetecendo-lhe uma vida mais agitada. Um sedutor, seu primo Basílio, oferece-lhe o ensejo para a aventura desejada. O sonho concretiza-se, mas é perseguida pela criada, que fica a saber do seu segredo e o explora com ferocidade e a sua vida transforma-se num lago de lama onde ela se afunda.
Teodorico Raposo de A Relíquia, é um devasso impenitente, que veste capa de santo na presença de uma tia, beata intransigente, a quem ele cobiça a herança, que hesita em instituí-lo seu herdeiro. Só deixará os bens à pessoa que lhe ofereça garantias de santidade. Para levá-la a decidir, sujeita-se a vexames, ilude-a com hipocrisia ardilosa e constante.
Carlos da Maia, em Os Maias, homem forte e elegante, médico, com gostos de artista, culto e viajante, diletante, aborrece-se em Lisboa. Enamora-se de uma mulher, bela como uma deusa, que passa por ele uma tarde.
Cada uma dessas histórias desse ciclo romanesco termina invariavelmente com o mesmo desfecho pessimista: o dissipar de um sonho intenso, num gesto irónico do destino.
Amaro, quando supõe resolvido o seu problema sexual, cuja obsessão o perseguia, a amante fica grávida, o que produz em ambos um abalo profundo, e, na sequência a rapariga morre;
Luísa, quando pensa que vai reencontrar a sua felicidade conjugal, cai fulminada à vista de uma carta retardada do amante, por acaso lida pelo marido;
Teodorico Raposo, no momento em vai entregar à tia devota a relíquia, que o vai fazer seu herdeiro universal, descobre que esta foi trocada por uma camisa de seda de uma prostituta;
Carlos da Maia, quando presume afastados todos os obstáculos que se opunham à sua união – rigidez do avô, existência de Castro Gomes, intrigas de Dâmaso Salcede – tem a revelação que Maria Eduarda é sua irmã. Esse seu crime de incesto mata de desgostos o avô.
Fica para uma outra abordagem a interiorização, a aplicação e a adequação desses aspectos da ironia queirosiana no conjunto da obra ficcionista de António Aurélio Gonçalves.
35 Anos sem Nhô Roque
Assinalam-se a 30 de Setembro (1901 – 1984), os trinta e cinco anos da literatura cabo-verdiana sem este grande ficcionista mindelense que foi António Aurélio Gonçalves, o nosso Nhô Roque, intelectual orgânico, porque activo e crítico nas mais diversas áreas – prefácios de livros, seminários de literatura no Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário, artigos em revistas como Ponto & Vírgula, conferências e a própria divulgação de conhecimento e de informação a quantos o procuravam em casa ou em qualquer lugar onde estivesse – praticamente até à sua morte.
Essa data deve ser de reflexão sobre o estado da arte da literatura cabo-verdiana, seu percurso, sua situação actual e suas perspectivas. A verdade é que Cabo Verde tem hoje dois Prémio Camões, o poeta Arménio Vieira e o ficcionista Germano Almeida, prémio ainda não potencializado, diga-se; alguns bons escritores, mais conhecidos e traduzidos lá fora, que entre nós, isso para não me referir à diáspora, onde ainda não conseguimos colocar os nosssos produtos culturais; e uma geração nova de escritores, procurando, por isso, afirmar-se de fora para dentro.
Quando a nova geração, a dos nossos filhos, cheia de potencialidades, é visual e de rapidez, e a velha, a nossa, está morrendo, ficam-me algumas angústias que quero aqui compartilhar em forma de questões: (i) se os nossos alunos do ensino básico e secundário e os nossos estudantes do ensino superior lêem e estudam a nossa literatura e os nossos autores; (ii) se existe uma política explícita, coerente e efectiva da promoção do livro e do escritor cabo-verdiano, no país, residente ou não, e no estrangeiro; (iii) se existe uma política de apoio à produção e edição gráfica; (iv) se temos um mercado de produção editorial, só para enunciar algumas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 919 de 10 de Julho de 2019.