Os dois códigos pretendem substituir o Código das Empresas Comerciais, aprovado pelo Decreto-legislativo nº 3/99 de 29 de Março, entretanto revogado, o qual havia integrado várias matérias do Código Comercial, então em vigor, aprovado por Carta de Lei de 28 de Julho de 1888, com a diversa legislação avulsa, sobre as sociedades por quotas e anónimas e outra, aprovada entre 1901 e 1973, portanto, ainda do período colonial.
Com o novo Código Comercial e com o Código das Sociedades Comerciais, para além de se autonomizar, numa legislação específica, a matéria respeitante às sociedades comerciais, foi dado um golpe fatal ao centenário Código Comercial de 1888, conhecido na gíria portuguesa por código de Veiga Beirão (apelido do autor do projeto que foi aprovado no Parlamento português, sobre o Código Comercial, em 1888), o qual tinha sido aplicado em Cabo Verde pelo Decreto de 20 de Fevereiro de 1894. É de referir que o Código de Veiga Beirão continua em vigor, em Portugal, desde 1888, tendo sido, contudo, derrogado diversas vezes por diplomas avulsos reguladores de variadas matérias, no âmbito do Direito Comercial, um dos quais, o Código das Sociedades Comerciais de 1986, que já sofreu, ele mesmo, diversas alterações.
De frisar que, o revogado Código das Empresas Comerciais de Cabo Verde apresentava-se dividido em três Livros: Livro I-Empresa, Livro II-Sociedades Comerciais e Livro III-Disposições penais e de mera ordenação social.
O Livro I e outras matérias reguladas até agora pelo Código Comercial de 1988, após sua revisão e modernização e com a integração da matéria dos contratos especiais, que incluem novos tipos contratuais, passaram a integrar o novo Código Comercial.
Os Livros II e III, com algumas modernizações e com a integração do diploma que define o regime jurídico das sociedades gestoras de participações sociais, foram autonomizados no Código das Sociedades Comerciais.
Código Comercial
Na sequência da revogação do Código das Empresas Comerciais, o novo Código Comercial, para além de manter o conteúdo do Livro I daquele código, passa a abranger outras matérias do antigo Código Comercial, e introduz alguma matéria nova, mormente a dos contratos especiais, fazendo acompanhar os contratos comerciais usuais de outros contratos, ditos atípicos, que passam a ser regulados em sede do direito comercial.
O novo Código Comercial trata, agora, da lei comercial em geral, no seu Livro I, incluindo o seu âmbito e objeto e a noção do que é empresa comercial e do que não é considerado empresa comercial (Título I), e trata a matéria da concorrência entre empresários comerciais (Título II), onde aborda a problemática da propriedade industrial, que remete à regulação por lei especial, sem prejuízo das convenções internacionais que vinculam o país.
Os contratos comerciais são tratados no Livro II do novo Código Comercial, incluindo, em Títulos sucessivos, do Título II ao Título XX, os contratos comerciais, usuais, de compra e venda, de mandato, de empréstimo, de penhor, de depósito, de escambo ou troca, de locação, de reporte e de conta corrente; os contratos de cooperação (de consórcio, de associação em participação e o agrupamento complementar de empresas); os contratos de distribuição (de agência, de concessão comercial, de franquia, de mediação, de comissão, de fornecimento e de consignação); os contratos publicitários (de publicidade, de difusão publicitária, de criação publicitária e de patrocínio); os contratos de hospedagem; os contratos de transporte (de pessoas e de bens, marítimo e aéreo); os contratos de expedição; e os contratos de seguro, os contratos bancários, os contratos financeiros e os contratos eletrónicos, dos quais se limita a dar uma noção dos mesmos, remetendo sua regulação para lei especial.
A bolsa e os títulos (títulos de valor e títulos de crédito), bem como os cartões em geral, mormente os cartões de débito e de crédito, são tratados nos Livros III e IV do novo Código Comercial, embora de forma muito incipiente, sendo que a regulação da matéria de bolsa e títulos é também remetida para lei especial.
Portanto, temos um novo Código Comercial que trata das matérias tradicionais, de forma extensiva, e que, relativamente às matérias novas, e tidas por mais complexas ou atípicas, remete para as leis especiais, que as vêm regulando, ou que virão a regulá-las mais exaustivamente, no futuro.
Das alterações, nas matérias tradicionais, não queremos deixar de referir àquelas que nos pareceram de relevância particular, por assumirem as mudanças na economia e na sociedade, de alguns anos a esta parte, incluindo as derivadas da globalização e do progresso tecnológico, particularmente:
O suporte papel e a assinatura podem ser substituídos, doravante, por documento eletrónico e assinatura eletrónica, conforme legislação própria, e as manifestações de vontade nos factos, atos e negócios jurídico-comerciais podem traduzir-se em transmissões de dados e informações eletrónicas (Artigo 8º).
No que toca à escrituração comercial, tratada na Seção VI do Capítulo II, Título I do Livro I, o empresário comercial continua obrigado a organizar e manter atualizada uma escrituração comercial, que dê a conhecer fácil, clara e precisamente as suas operações e a situação patrimonial decorrente das mesmas, e que permita elaborar balanços e inventários periódicos (Artigo 44º).
Deixou-se de referir aos livros obrigatórios de inventário e balanços, diário e razão, e ficou ao livre arbítrio do empresário a organização da escrituração, bem como o seu suporte físico, o número e o tipo de registos, devendo no entanto cumprir as normas legais sobre a matéria (Artigo 46º).
As atas das reuniões e as deliberações e decisões dos órgãos sociais continuam obrigatórias, mas podem ser redigidas em suporte livremente escolhido, comunicado no ato de registo da sociedade (Artigo 49º).
Fica permitido a microfilmagem e transferência para suporte eletrónico da escrituração comercial, que substituem, para todos os efeitos, os originais (Artigo 50º).
O arquivo da correspondência e da escrituração e documentação comercial continuam obrigatórios, devendo ser conservados nos prazos previstos na lei fiscal ou legislação pertinente (Artigo 51º).
A escrituração comercial continua a fazer prova entre os empresários comerciais, por factos relativos às suas empresas, e a escrituração comercial continua a ter um carater sigiloso e secreto, exceto nos casos de acesso permitido por lei (Artigos 53º e 52º).
Continua estabelecida a obrigatoriedade de elaboração de contas anuais ou de exercício, de acordo com a lei e que seja fidedigna, mas, aponta-se claramente para o respeito do Sistema de Normalização Contabilística e de Relato Financeiro (SNCRF) e das normas das instituições internacionais em matéria de contabilidade e auditoria. Nomeadamente, são estabelecidos princípios e normas de contabilidade geralmente aceites, a serem observados na valorimetria dos elementos integrantes das contas anuais, citando, continuidade de exploração, permanência dos métodos, prudência valorativa, acréscimo ou especialização dos exercícios, não compensação de saldos, e custo histórico. É dado ênfase especial ao princípio de prudência valorativa, e admite-se a derrogação de princípios, devidamente fundamentado no anexo, e explicando a influência sobre o património, a situação financeira e os resultados (Artigos 56º, 57º e 59º).
Finalmente, são admitidos regimes contabilísticos específicos, opcionais, para alguns empresários, se previsto por lei (Artigo 60º).
Código das Sociedades Comerciais
No que diz respeito à regulamentação das sociedades comerciais, o revogado Código das Empresas Comerciais tratava o assunto, já o dissemos, no seu Livro II-Sociedades Comerciais, cujo Título I referia à parte geral ou comum a todas as sociedades, incluindo a abordagem das matérias relativas à personalidade e capacidade da sociedade; ao contrato social e suas alterações; às deliberações dos sócios e à apreciação anual da situação da sociedade; à responsabilidade civil pela constituição, administração e fiscalização da sociedade; e à fusão, cisão, transformação, dissolução e liquidação das sociedades; para além de incluir os aspetos ligados à publicitação dos atos sociais, à fiscalização pelo Ministério Público e às prescrições.
A regulamentação das formas societárias específicas e tradicionais (sociedades em nome coletivo, sociedades por quotas, sociedades anónimas, sociedades em comandita e sociedades cooperativas) estava incluída nos Títulos II a VI, e a problemática das sociedades coligadas (sociedades em relação de simples participação, sociedades em relação de participações recíprocas, sociedades em relação de domínio e sociedades em relação de grupo), com sede em Cabo Verde, era tratada no Título VII do extinto Código das Empresas Comerciais.
Entretanto, o Código das Sociedades Comerciais, ora aprovado, mantém no seu Título I uma parte geral e comum a todas as formas societárias, nos Títulos II a IV regula as sociedades por quotas, as sociedades anónimas e as sociedades cooperativas, respetivamente, e trata nos Títulos V e VI das sociedades coligadas e das sociedades gestoras de participação social, respetivamente, sendo que o Título VII ficou reservado às disposições penais e de mera ordenação social, mas, agora centrado no tratamento do ilícito criminal societário.
O Código das Sociedades Comerciais procura não alterar, substancialmente, o texto das matérias que regula, e que já eram reguladas no Código das Empresas Comerciais. No entanto, algumas novidades, de vulto, saltam à vista, nomeadamente:
Constata-se a extinção das formas societárias arcaicas, e já em desuso, mormente das sociedades em nome coletivo e das sociedades em comandita, pois que foram expurgadas do Código das Sociedades Comerciais.
O Código das Sociedades Comerciais, no nº 1 do artigo 222º, sobre a fiscalização das sociedades por quotas, estabelece que o contrato social pode prever a existência de um conselho fiscal, que tem de incluir um auditor certificado, ou um fiscal único, que tem de ser um auditor certificado. O artigo 330º do Código das Empresas Comerciais já previa essa possibilidade. A novidade surge no nº 2 do citado artigo 222º, o qual estabelece que as sociedades por quotas, que não tiverem um órgão de fiscalização, devem designar um auditor certificado para proceder à revisão legal de contas, desde que o volume de negócios seja superior a 10.000.000$00 (dez milhões de escudos) e/ou o número de trabalhadores empregados seja superior a dez.
Neste caso, pensamos que o montante peca por defeito, possivelmente trata-se de uma gralha, talvez se quisesse escrever 100.000.000$00 (cem milhões de escudos) em vez de 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), pois, este último montante corresponde ao volume de negócios, máximo, para uma entidade ser classificada como pequena entidade, para efeitos de aplicação do artigo 5º do Decreto-Lei nº 5/2008, de 4 de Fevereiro, que aprova o Sistema de Normalização Contabilística e de Relato Financeiro (SNCRF), e também para uma empresa ser classificada como pequena empresa, no âmbito do Regime Especial das Micro e Pequenas Empresas (REMPE), aprovado pela Lei nº 70/VIII/2014, de 26 de Agosto.
O Código das Sociedades Comerciais, no âmbito da fiscalização das sociedades anónimas, introduz, no seu artigo 339º, os fiscais especiais, que podem ser designados pelo tribunal, a requerimento de acionistas minoritários, titulares de pelo menos 10% das ações.
Por outro lado, no nº 5 do artigo 342º introduz o conceito de sociedades anónimas de grande dimensão, aquelas com um volume de negócios superior a 200.000.000$00 (duzentos milhões de escudos) e um ativo líquido total superior a 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos). Constata-se uma gralha evidente no valor do volume de negócios em cifras, o texto do código refere a 200.000$00, mas, o que nos levanta dúvida é o montante estabelecido para o ativo líquido total, que, respeitando as proporções geralmente utilizadas, deveria ser, pensamos nós, de 150.000.000$00 (cento e cinquenta milhões de escudos) e não 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos). A seu tempo o legislador deverá esclarecer esta cifra.
Entretanto, na alínea a) do nº 1 do referido artigo 342º encontra-se estabelecido que nas sociedades anónimas de grande dimensão e nas sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à cotação na bolsa de valores a função de auditor certificado deve ser autónoma do conselho fiscal, e passa a ter competências, poderes e deveres específicos, os quais são descritos no artigo 343º, logo a seguir.
Ao abrigo da alínea b) do nº 1 do citado artigo 342º o conselho fiscal das grandes sociedades anónimas e das sociedades emitentes de valores mobiliários cotados na bolsa continua a integrar, pelo menos, um membro independente, com curso superior adequado ao exercício das suas funções e conhecimentos de auditoria e contabilidade (não necessariamente um auditor certificado), sendo que, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do mesmo artigo 342º o conselho fiscal vê ampliado as suas atribuições, que passam a abranger, agora, claramente, a fiscalização do processo de preparação e divulgação da informação financeira, a proposição à assembleia-geral da nomeação do auditor certificado, a fiscalização da auditoria aos documentos de prestação de contas e a fiscalização da independência do auditor certificado.
É também de realçar que o Código das Sociedades Comerciais veio a eliminar a “gralha”, constante do Código das Empresas Comerciais, que permitia a fiscalização das entradas de capital em bens, a fiscalização das sociedades por quotas e anónimas, e a fiscalização das transformações, fusões, cisões e de outros assuntos societários específicos por um “contabilista ou auditor certificado, conforme for conveniente”, para que sobre eles emitisse parecer.
É evidente que essas atribuições foram sempre do auditor certificado, aliás, como vem estabelecido no Estatuto da Ordem Profissional de Auditores e Contabilistas Certificados (OPACC), e como é das boas práticas, a nível internacional.
Em parte, compreende-se a “gralha” no Código das Empresas Comerciais, que foi publicado em Março de 1999, portanto, antes da publicação do Estatuto da OPACC, em Fevereiro de 2000. Possivelmente, o legislador do Código das Empresas Comerciais desconhecendo quais viriam a ser as funções específicas e gerais do contabilista certificado e quais seriam as funções cumulativas e reservadas ao auditor certificado, deixou o rascunho “contabilista ou auditor certificado, conforme for conveniente” para ser alterado oportunamente, o que não aconteceu. No entanto, é inconcebível que a “aberração” se mantivesse durante vinte anos, sem que nenhuma autoridade desse por isso.
Finalmente, apraz-nos fazer a seguinte observação. Dado que a nossa leitura do Código das Sociedades Comerciais foi mesmo breve, não podemos pronunciar-nos sobre a eventual necessidade, ou não, de uma página inicial com definições de algumas palavras ou expressões utilizadas no texto do código.
Contudo, pareceu-nos que algumas expressões não estão completamente definidas, tal como não o estavam no Código das Empresas Comerciais.
Por exemplo, a expressão “revisão legal de contas” o que abrange? Só auditoria, ou mais alguma coisa? O eventual problema talvez resida no facto de a legislação cabo-verdiana ser muitas vezes adaptada da legislação portuguesa, onde, no passado, se teve o cuidado de definir a abrangência de determinadas palavras ou expressões.
Particularmente, a OROC-Ordem dos Revisores Oficiais de Contas de Portugal, no seu Estatuto de 1979 (Decreto-lei nº 519-L2_79), referia à revisão legal de empresas e ao exame das contas com vista à sua certificação legal, sendo que a revisão legal de empresas era um conceito mais amplo que incluía também o exame das contas com vista à certificação legal.
Devido à tradição, a palavra revisão permanece em Portugal como sinónimo de auditoria, e a OROC ainda usa frequentemente a expressão revisão/auditoria, mas, estamos certos que qualquer dia abandonará a palavra revisão, no sentido de auditoria, e a palavra revisão assumirá, decerto, e somente, o significado que a IFAC-International Federation of Accountants lhe dá (revisão, tradução de “review”, que os portugueses ainda chamam, por vezes, de “revisão limitada”, e os franceses de “examen limité”).
Portanto, deixamos a seguinte questão: o conceito de revisão legal de contas, referido no nosso Código das Sociedades Comerciais quererá dizer somente auditoria, ou mais alguma coisa? E a expressão certificação legal de contas será somente o resultado do exame das contas (auditoria) ou será o culminar da revisão legal de contas? significando esta expressão somente auditoria, ou auditoria e mais alguma coisa? Cabe ao legislador, se assim entender, pronunciar-se sobre estas observações.
Seja como for, convém que haja uma uniformização de linguagem, com outras legislações em vigor no país e/ou com a terminologia adotada internacionalmente, ou pelo menos que seja escrito que tal palavra e tal expressão são equivalentes.
Por último, deixamos mais uma questão: não se viu a necessidade de o fiscal único ou um dos membros do conselho fiscal das sociedades cooperativas ser um auditor certificado?
Tendo em conta que as cooperativas podem ter dezenas, centenas ou milhares de sócios, acionistas ou associados (tais como os clubes de futebol, as sociedades anónimas desportivas e outros tipos de associações), por uma questão de interesse público, não seria conveniente que um auditor certificado integrasse o conselho fiscal das sociedades cooperativas, ou fosse o seu fiscal único?
E, já agora, não seria, também, conveniente que as legislações específicas das outras formas associativas, que referimos, incluíssem a obrigatoriedade da auditoria às contas, tal como já o é para algumas associações, mormente as associações profissionais?
Esperamos que a nossa contribuição seja útil, embora alicerçada numa leitura, por enquanto, ligeira do novo Código Comercial e do Código das Sociedades Comerciais de Cabo Verde.
Que outros façam a sua leitura e tragam também os seus subsídios, para benefício de toda a comunidade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 923 de 7 de Agosto de 2019.