Caboverdiano e a liberdade

PorEurídice Monteiro,1 out 2019 6:16

É a percepção sobre esta busca desenfreada de benefícios materiais pela via dos partidos que desvirtua sobremaneira a actividade política. Não se trata de um fenómeno novo. O preocupante é que esse utilitarismo tende cada vez mais a se reforçar, ao invés de se dissipar.

É sabido que, aprovada na sequência da transição democrática, a chamada Constituição de 1992 entrou em vigor no dia 25 de Setembro daquele ano, data essa escolhida recentemente para se celebrar o Dia Nacional dos Direitos Humanos em Cabo Verde. Espera-se que seja uma ocasião especial para uma reflexão alargada e diversificada sobre a permanente luta pela liberdade neste pequeno país, uma luta sempre necessária, pois a democracia é uma construção e exige o envolvimento de todos os membros integrantes da comunidade política. 

É atribuída a Winston Churchill a máxima segundo a qual «a democracia é o pior de todos os sistemas políticos, com excepção de todos os outros.» Apesar de essa asserção ser portadora de um profundo cepticismo, pelo menos até ao dia de hoje ainda não se conseguiu provar o contrário. Contudo, é certo que são inúmeras as imperfeições da prática democrática. 

É facto que a democracia liberal representativa, insti­tuída em Cabo Verde na década de noventa, baseia-se essencialmente nos princípios gémeos de liberdade e igual­dade. Quanto ao princípio da liberdade, advoga-se que não há liberdade sem Constituição. O constitucionalismo pres­s­upõe-se que, com efeito, tudo deva ser regido pela Constituição, sendo que as leis devam ter como objectivo a liberdade. 

Entretanto, as promessas não cumpridas da democracia têm gerado muitas insa­tis­fa­ções. No caso de Cabo Verde, o senso comum ilustra que a democracia que existe está longe do que se deseja. Isto não é segredo para ninguém. Há já uns dias, conheci o Sr. Joaquim Barreto, um dos cidadãos mais atentos deste país, conforme atestam os amigos e a vizinhança. Homem dos seus cinquenta e tal anos bem-feitos, ele é considerado um crítico nato da política e da sociedade, do país e do mundo.

– Eu vi o partido da independência partir e vi o movimento para democracia chegar. Um e outro sempre governaram para os seus. Quem não está no poder ou não tem ninguém, lá fica a ver um partido e outro chegarem e partirem. Só desfruta quem for do partido. Não interessa qual partido. O importante é estar num partido; num momento ou noutro, a vida vai melhorar. Para quem vive longe da esfera do poder dos partidos, tudo permanece sempre igual. Certa vez, disseram-me na cara: tu és bom cidadão mas, como não te defines de qual lado estás, nem se tivermos um bom emprego não conseguimos oferecer-te; fulano, que é do partido, tem um filho no curso que já tem o futuro garantido ainda antes de terminar a formação. Eu já nem me preocupo. Nasci pobre e vou morrer pobre. Mas, não devo nada a ninguém. Durmo o meu sono todas as noites. Já eles não conseguem viver sem o poder. Onde é que estão os ex-ministros do partido da independência? Deviam estar a combater na oposição. Mas, não. Sumiram. Estão num bom posto internacional em Angola, Portugal, Timor, Etiópia, Bissau, Abuja; e os que ficaram no país estão na prateleira de alguma instituição do Estado. No dia em que o partido deles vencer de novo as eleições, irão regressar em grande. O mesmo aconteceu com o partido que ora governa. Estão todos de volta e todos lutam por um lugar à sombra. Os jovens em Cabo Verde sabem que a política é a via rápida para se ter um bom carro, uma boa casa, muitas mulheres, férias. Quem é que não gostaria de estar na política? Todos querem estar na política por uma única razão: se você estiver na política, mais cedo do que tarde terá direito a tudo; se você não estiver metido na política, nunca terá nada na vida. É isso que os jovens estão a aprender, vendo para o exemplo daqueles que vivem da política, que lutam com unhas e dentes para bons cargos. 

– Mas, Sr. Joaquim, não há outra saída? 

– Quer dizer, há, até que há. Sem a política, é a pobreza ou a emigração. 

Se, de uma forma ou de outra, esta opinião do Sr. Joaquim tiver acolhimento, então é preciso debater com urgência o significado da liberdade política para uma sociedade insular como a nossa. Já dizia Montesquieu, no seu clássico O Espírito das Leis (1748), que «a liberdade política num cidadão é uma tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem da sua segurança; e para que se tenha essa liberdade é preciso que o Governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão.» 

Nas circunstâncias descritas no reflexivo diálogo com o Sr. Joaquim Barreto, a liberdade política que está constitucionalmente consagrada ficaria beliscada pela insegurança e instabilidade em que as pessoas parecem viver, sendo vulgarmente aceite a ideia de que, não obstante o esfoço de cada um, as pessoas não têm as mesmas hipóteses de se elevar (ou seja, subir na vida, como é designado na gíria popular). É a percepção sobre esta busca desenfreada de benefícios materiais pela via dos partidos que desvirtua sobremaneira a actividade política. Não se trata de um fenómeno novo. O preocupante é que esse utilitarismo tende cada vez mais a se reforçar, ao invés de se dissipar. Permaneceremos ainda num nível pouco acima do grau zero enquanto assim for, até o dia em que a liberdade seja a nossa essência.

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Autoria:Eurídice Monteiro,1 out 2019 6:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  17 jun 2020 23:20

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