Desconfiei que ele não tivesse entendido bem as explicações da Casa do Cidadão, porque firmas em inglês é o que mais vejo criadas no BO. Decidido a tirar o assunto a limpo, dirigi-me no dia seguinte de manhã cedo à Casa do Cidadão e, qual não foi o meu espanto, confirmaram-me que o Conservador não aceita firmas (nomes de empresas) totalmente em inglês.
Fiquei incrédulo. Quando temos todo um discurso de internacionalização das empresas cabo-verdianas, de internacionalização da nossa economia, de estímulo à aprendizagem e ao domínio da língua inglesa; quando, para internacionalizar eventos locais adoptamos nomes como Cavala Fresk Feastival, Gamboa Games, São Nicolau Meetup Trekking e muitos outros, que muitas vezes nem sabemos pronunciar correctamente, o Conservador toma ao pé da letra a sua função, e não alinha com esses modernismos de firmas em inglês. Mas, inglês em S. Vicente não é modernismo. Firmas inglesas estão na origem do povoamento e do desenvolvimento da ilha, e o nosso crioulo era cheio de palavras com origem no inglês. Firmas em inglês não são, pois, novidade em Cabo Verde. Eu próprio trabalhei, uns 20 anos atrás, numa empresa criada pelo Estado, com a firma totalmente em inglês, a Cape Verde National Shipping Line – CS Line, SA. Actualmente, o Governo organiza eventos com nomes em inglês, como o Cabo Verde Ocean Week, tem um organismo de promoção do investimento externo com o nome em inglês, a Cabo Verde Trade Invest, etc.
Questiono a Funcionária, mas como é possível o Conservador não aceitar firmas em inglês, se o próprio Governo de Cabo Verde pouco tempo atrás criou a NEWCO (NEWCO, Sociedade Unipessoal, SA - uma empresa para gerir o passivo da TACV), usando a terminologia internacional em inglês? Como ele não aceita firmas em inglês, se acompanho as publicações no BO e vejo a quantidade de empresas com a firma em inglês, criadas na Praia? (Digo na Praia, porque em S. Vicente, de Julho de 2018 à presente, foram criadas apenas 4 empresas, nenhuma com a firma em inglês) Apresento a seguir uma pequena amostra, apenas com empresas criadas em 2019, com os estatutos publicados no BO II Série, não incluindo sucursais de empresas estrangeiras:
AXITO ADVANCE CONSULTING, LDA | BO Nº 33 MAR | PRAIA |
IPANA - INTERNATIONAL IMPORT-EXPORT, LDA | BO Nº 43 MAR | PRAIA |
MID ATLANTIC FIRST CONSULTING AND AVIATION SERVICES, LDA | BO Nº 47 MAR | B.VISTA |
AFRICA EMERGENCE GROUP (AEG) - CONSULTORIA E SERVIÇOS, LDA | BO Nº 53 ABR | PRAIA |
LUCKY GAMES, SOC. UNIPESSOAL, LDA | BO Nº 63 MAI | PRAIA |
RDC - RURAL DEVELOPMENT CONSULTING, SA | BO Nº 68 MAI | PRAIA |
KAKTUS BUSINESS DEVELOPMENT - SGPS, SA | BO Nº 68 MAI | PRAIA |
BEIJING CHANGCHENG DE CONSTRUÇÃO CO, LDA | BO Nº 81 JUN | PRAIA |
GCBIB FINANCE, SA | BO Nº 102 JUL | SAL |
CABO VERDE CALL CENTER - CVCC, SOC. UNIPESSOAL, LDA | BO Nº 118 AGO | PRAIA |
OCEAN PARK - HOTEL AND RESORTS, SA | BO Nº 138 SET | PRAIA |
RIMO - CONSULTING, LDA | BO Nº 147 OUT | PRAIA |
THE CHAMELEON - AML & CFT COMPLIANCE SOLUTIONS, SOC. UNIP. LDA | BO Nº 154 OUT | PRAIA |
Bem, não vale a pena brigar antecipadamente. Vou aconselhar o meu amigo a apresentar as três opções exigidas para o certificado de admissibilidade de firma. Depois, se for necessário brigar, ele briga. Acrescentei para a atendedora.
Encerrei a conversa dizendo, Não creio que o Conservador se permita inventar. Ele tem que se guiar pela lei. Vou ver o que dizem os novos Código Comercial e Código das Sociedades Comerciais, no tocante a firma das empresas.
O Código das Sociedades Comerciais que entrou em vigor a 21 de Outubro do corrente ano diz no seu Art. 13º - Requisitos da firma:
“As firmas das sociedades comerciais devem ser constituídas de acordo com os requisitos decorrentes das disposições deste Código, do Código Comercial e das demais legislações aplicáveis.”
O Código das Sociedades Comerciais não diz grande coisa a respeito, remetendo-nos assim o artº 13º para o Código Comercial, que trata detalhadamente da firma no Capítulo II, Secção V (Artº 25 a Artº 43). O Artº 28 do referido código diz o seguinte:
Língua oficial e língua estrangeira
1 | A firma é obrigatoriamente redigida numa língua oficial. | |
2 | No caso da firma ser redigida em mais do que uma língua e seja composta por expressões alusivas à actividade comercial desenvolvida, tem que haver um mínimo de correspondência entre as várias versões na parte relativa a tal actividade. | |
3 | Do disposto no nº 1 exceptua-se a utilização de palavras que não pertençam às línguas oficiais, quando: | |
a) | Entrem na composição de firmas já registadas; | |
b) | Correspondam a vocábulos comuns sem tradução adequada nas línguas oficiais, ou de uso generalizado; | |
c) | Correspondam, total ou parcialmente, a nomes ou firmas de sócios; | |
d) | Constituam marca cujo uso seja legítimo, nos termos das respectivas disposições legais; | |
e) | Resultem da fusão de palavras ou parte de palavras que pertençam a línguas admissíveis nos termos do presente artigo, directamente relacionadas com as actividades exercidas ou a exercer ou, ainda, retiradas dos restantes elementos da firma ou dos nomes dos sócios; | |
f) | Visem uma maior facilidade de penetração no mercado a que se dirijam as actividades exercidas ou a exercer. | |
4 | A adopção de firmas em qualquer outra língua só é admitida quando acompanhada da tradução oficial. |
Pela leitura do artigo acima se conclui que, afinal, o Conservador tem razão. O Código Comercial não permite que a firma seja numa língua diferente das “línguas oficiais”; nem em inglês, nem em francês, e nem em língua cabo-verdiana (afinal, a língua cabo-verdiana, o crioulo, não é uma língua oficial). O Código apenas admite o uso de “palavras” de outras línguas, nas condições estipuladas no nº 3 do Artº 28.
Mas então, se o Código Comercial não admite firmas totalmente em inglês, como é que existe em Cabo Verde um grande número de empresas com a firma inteiramente em inglês? Será que o anterior Código Comercial permitia isso, e com a sua modernização deixou-se de permitir? Porquê a mudança? Ter-se-á chegado à conclusão de que o uso do inglês é pernicioso? Vejamos o que dizia nesta matéria o anterior Código Comercial.
O Artº 85 (Uso da língua portuguesa) do Código Comercial revogado diz basicamente o mesmo que o Artº 28 do novo Código. A única diferença substancial é que o nº 1 do Artº 85 diz que “As firmas devem ser correctamente redigidas em língua cabo-verdiana ou portuguesa” quando o novo código diz, no seu nº 1, que “A firma é obrigatoriamente redigida numa língua oficial”.
Conclui-se assim que, com o novo Código Comercial, para além da continuação da proibição de línguas estrangeiras, também se proíbe a língua cabo-verdiana, uma vez que ela ainda não é “uma língua oficial”.
Colocam-se então as seguintes questões: se a lei comercial sempre proibiu firmas inteiramente em língua estrangeira, como se justifica a quantidade de empresas cabo-verdianas com a firma inteiramente em inglês, desde há muitos anos? Se, apesar de a lei não o permitir, os Conservadores o terem sempre aceitado, por que agora o Conservador não aceita a firma da empresa do meu amigo? Será que o Conservador doravante vai respeitar, ao pé da letra, o estipulado no Código Comercial, ou vai transigir em relação a uns e ser rigoroso em relação a outros, agindo assim de forma discricionária? Será que uns Conservadores são mais conservadores, e não aceitam estrangeirismos, como decorre da lei, e outros Conservadores são mais reformadores e, não respeitando o conservadorismo do Código Comercial, aceitam os nomes em língua estrangeira? Porquê o conservadorismo do legislador cabo-verdiano, se a tendência da globalização é para o uso quase generalizado do inglês no mundo dos negócios e no das novas tecnologias, seguido inclusive pelos poderes públicos?
Recorrendo ao direito comparado, atendendo à ligação histórica entre o direito cabo-verdiano e o direito português, fui ver o que diz nessa matéria o Código Comercial português.
A versão inicial do Artigo (Requisitos da firma) no Código Comercial português dizia, nos seus nºs 1 e 2, quase exactamente o mesmo que o Artigo 28 do nosso novo Código Comercial. O nº 1 dizia “Os dizeres das firmas de sociedades devem ser correctamente redigidos em língua portuguesa.”.
Pelo Decreto-Lei nº 262/86 de 02/09, foram revogados os artigos 19 a 28 do Código Comercial Português, passando a Firma a ser tratada apenas no Código das Sociedades Comerciais.
Com as alterações introduzidas ao Código das Sociedades Comerciais pelo Decreto-Lei nº 257/96, em vigor a partir de 1997-01-05, a anterior redacção do nº 1 do Artº 10 – Requisitos da firma, foi eliminada, deixando de haver na legislação portuguesa quaisquer referências à língua, na composição da firma.
Então pergunta-se: se nós procuramos a convergência normativa com a UE; se a legislação portuguesa, que é a mais próxima de nós, e que é a primeira a que recorremos em direito comparado, de há muito eliminou as exigências linguísticas na composição da firma; por que nós, na revisão e “modernização” do nosso Código Comercial, mantivemos essas exigências, apesar de nem sempre as respeitarmos?
Incongruências!
*Contabilista