— O facto de ser mãe, em Cabo Verde e noutras sociedades africanas, a mulher não se retira para o espaço doméstico. Pelo contrário, sai. Empreende, é rabidante, circula.
— Vêse! Percorrendo as ruas das nossas cidades, aqui ou num outro país africano, facilmente deparamos essa paisagem social composta por mulheres, jovens e menos jovens, em busca de uma vida melhor.
Encontrei estas transcrições ao vasculhar um calhamaço de anotações e apontamentos. Vêm mesmo a calhar nestes dias de diálogos e reflecções sobre situações da vida contemporânea aqui e noutras paragens.
— A sociedade cabo-verdiana tem esse recurso que é o empreendedorismo feminino, o potencial empresarial da mulher caboverdiana. É, provavelmente herdado, herdado das nossas origens africanas, continentais. Exactamente para conseguir o sustento, conseguir a mobilidade social dos filhos, etc. Era importante que os bancos trabalhassem com isso, que uma estratégia de desenvolvimento trabalhasse com isso. Esse potencial empresarial, a meu ver, é subavaliado.
— As economias africanas são tributárias do sector informal e Cabo Verde não foge à regra.
— Só que vamos procurar, muitas vezes, energias em empresas formais, masculinas na sua liderança, etc., que normalmente não têm a força mínima que têm as empresas informais. Portanto, eu vejo que uma grande aposta do Governo seria, por exemplo, um programa de formalização das empresas. Empresas que estão no mundo informal, que são capitaneadas por mulheres.
— Já estão de olho nisso há já algum tempo. Estão a perceber essa dinâmica e querem cada vez mais incluir o sector informal no sistema.
— Na nossa sociedade, a mulher é mais económica, faz cálculo económico. A mulher é mais previdente. Pensa no dia de amanhã, porque a responsabilidade dos filhos é dela. Pensa no dia de amanhã. Poupa. Investe. O homem não. O homem despende, gasta, usufrui, goza. É um diferencial competitivo que a mulher tem. E que a nossa sociedade, até agora, não aproveita devidamente, não aproveita devidamente. As mulheres são empreendedoras. As mulheres têm a dimensão do futuro... da prudência, e do futuro, que é extremamente interessante. Pode ser enriquecedor. Infelizmente, a nossa sociedade ainda considera a mulher, na economia, um actor de segundo nível. Então, isso inibe um pouco, o libertar das energias.
Anos depois, tive a oportunidade de visitar uma série de mercados populares da África ocidental e austral, na sequência de curtas e adoráveis viagens de pesquisa e intercâmbio académico no continente. Sem excepção, em todos os países, tanto homens como mulheres são da opinião de que o sector informal é uma arena de domínio feminino e que elas aproveitam justamente dessas oportunidades porque não encontram lugar na economia formal.
Eram talvez já perto das quatro horas da tarde quando entrámos no Osu, o grande mercado popular de Accra, na Ghana. A melhor forma de conhecer uma cidade ou um país é captar o espírito da comunidade. Seja numa área residencial, num café ou num mercado. Osu está para Ghana como Sucupira para Cabo Verde, Bandim para Guiné-Bissau, Roque Sonteiro para Angola, ou Chipamanique para Moçambique, etc. Isto para dizer que tudo de relevante ou pouco relevante que acontece no território nacional é de conhecimento geral no principal mercado do país, fazendo escola aí em Osu.
Numa das entradas de acesso ao labirintoso mercado de Osu encontrámos um jogobedjo de dama. Certamente algum sábio teria dito que dama é um tipo de jogo para femininas mãos, pois exige tanto de paciência como de perspicácia.
À porta do mercado, esse jogo de dama, ali, assim, dava nas vistas. Merecia alguma atenção, até porque era muita gente concentrada a jogar e a acompanhar o jogo. Os passeantes e visitantes do mercado não conseguiam ignorar esse cenário de batalha naval que exigia plena concentração dos praticantes. Os espectadores tentavam dar palpites em alguns casos, mas se coibiam de pronunciar palavra quando fosse caso de um lance mais sério.
Então não é que um dos colegas da nossa equipa investigadores teve a feliz ou infeliz ideia de puxar um banco e desafiar alguém a entrar em campo. Chegando a minha vez, evidentemente que não deixei os meus créditos em mãos alheias: Cabo Verde versus Kenya e, verdade seja dita, ganhámos por um a zero. Vitória merecida e devidamente celebrada.
Os velhos do Ghana ficaram incrédulos com essa vitória de uma crioula diante de um exímio jogador de dama queniano. Soubessem o quanto deste lado, desde a tenra idade se joga qualquer coisa e inclusive dama e outras modalidades de mesa, nem ousariam pestanejar.
O que vale é essa capacidade e habilidade de fairplay da nova geração africana, bem como alguma conivência dos mais velhos. Aceitar «um nobido» de uma mulher em pleno mercado de Osu não é pouca coisa, ainda mais num contexto em que parecia que os homens estavam praticamente todos sintonizados como se estivessem a apoiar o queniano meu adversário e as mulheres olhavam com receio e notava-se um certo alívio da parte delas a cada vez que eu «matava» ou «comia» mais uma peça do tabuleiro. A meu favor só havia uma miúda de olhos grandes que pela ansiedade me fazia lembrar do tempo da minha infância.
Respeito é algo que se conquista. Ganhei o jogo e saí de lá com a aclamação total. As mulheres ficaram mais alegres e tranquilas e os homens aceitaram que mulheres também podem ganhar e inclusive ganhar homens de barba rija. Enfim, a vida nos ensina que não há vencedores predestinados.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.