Aduaneiros célebres

PorAntónio Ludgero Correia,4 fev 2020 6:01

“O gosto só pode ser educado pela contemplação não do que é razoavelmente bom, mas daquilo que é puramente excelente. Só revisando os melhores trabalhos que já fiz é que posso estabelecer um padrão para o futuro.” Johann W. von Goethe

Por ocasião de mais um Dia Mundial das Alfândegas (comemorado todos os anos no dia 26 de janeiro), apetece, desta feita, fazer justiça a um punhado de aduaneiros que se celebrizaram seja pelo tanto que fizeram pela administração que integraram e dignificaram, seja ainda pelo contributo dado em outras áreas do saber.

Sói dizer-se que o cumprimento das obrigações fiscais é um dever cívico que os cidadãos devem assumir “de boa”, que é como quem diz, com um sorriso nos lábios. Mas a tarefa de quem escolheu como ofício garantir que todos cumpram com tais obrigações, sorrindo ou rangendo os dentes, não é pêra doce. É que, em boa verdade, a mais prosaica das definições de imposto – SUBTRAÇÃO UNILATERAL DE RIQUEZA, SEM DIREITO A QUALQUER CONTRAPARTIDA E SEM SER UMA PENALIDADE – está mais próxima do sentir do contribuinte, razão por que o fisco precisa ir aos bolsos do contribuinte com a combinação certa de firmeza e subtileza. Resulta daí, pois, que a Administração Fiscal exulte quando consegue desenvolver um corpo de agentes com o humanismo necessário para garantir uma interface com os contribuintes sem grandes atritos por aí além.

Não estranhará, pois, que homens como Arnaldo França e Jorge Vera-Cruz Barbosa – ícones da cultura cabo-verdiana – tenham sido tão bem aceites não só pela sociedade como pelos seus pares nas organizações onde pontificaram: “vendiam” aos contribuintes uma organi­za­ção que não se preocupava apenas com números e san­ções e influenciaram uma cultura organizacional que ajudou a humanizar o papel reservado aos agentes do fisco operando no front office.

E isso é fundamental, porque, para vincar a cultura das organizações, vilões e heróis são duas representações incontornáveis: estes (os heróis, bem entendido) constituem paradigma da melhor forma de ser, de estar e de agir, devendo ser erigidos em exemplo a ser seguido, comportamento a ser emulado; e aqueles (os vilões) são o exemplo vivo dos comportamentos a evitar, quiçá, a combater, e em relação aos quais o pessoal recrutado deve manter distância.

Por isso mesmo, os exemplos destacados a seguir não se limitam àqueles que por obras valerosas foram da lei morte se libertando (os heróis imortais), incluindo, também, aqueles que, pelo seu saber, capacidade técnica e humanismo, fizeram dos departamentos de ação fiscal instrumentos modernos de intervenção junto dos contribuintes, otimizando a relação destes com o fisco.

No primeiro grupo incluem-se os veteranos PEDRO DE SOUSA LOBO e BARBOSA DE MATOS, sem dúvida os maiores obreiros da Alfândega moderna;

ANTÓNIO OMAR LIMA, o artífice da Alfândega contemporânea;

ALFREDO VEIGA, HONORATO BENRÓS, FRANCISCO CORREIA, ADRIANO BRAZÃO e ROSENDO PIRES FERREIRA pelo contributo dado na organização e que os tornou notados até no ambiente externo ao fisco.

Da geração dos novíssimos destacam-se personalidades como OLÍVIO BORGES e DANIEL LOBO, pelo papel preponderante que assumiram na informatização dos proce­dimentos aduaneiros. Aliás, Borges estendeu sua ação a países da nossa sub-região e não só (integrou a equipa que informatizou as novas Alfândegas de Timor-Leste).

O desempenho de Arnaldo França e Honorato Benrós chamou a atenção das mais altas instâncias do Governo da colónia, tendo chegado mesmo a integrar o Gabinete do Governador e a dirigir importantíssimas Agências governamentais;

Barbosa de Matos e Sousa Lobo regulamentaram o Estatuto Orgânico das Alfândegas do Ultramar (EOAU) e produziram instruções de serviço que, ainda hoje, orientam a ação do controlo interno e da inspeção dos serviços, sendo que Sousa Lobo foi chamado amiúde para substituir titulares de órgãos importantíssimos da província. Na carreira, Lobo chegou a ser Inspetor-chefe dos serviços aduaneiros de Angola (nos tempos do Portugal do Minho a Timor);

António Omar Lima retrabalhou os instrumentos existentes e lançou as bases para as Alfândegas do século XXI. Quem, como eu, conviveu de perto com o processo de modernização da instituição aduaneira, não pode deixar de, nesta oportunidade, fazer o público reconhecimento da qualidade de tal agente;

Arnaldo França, Omar Lima, Alfredo Veiga e Rosendo Pires Ferreira, com o advento da independência, foram cha­ma­dos a assumir cargos ex­ternos ao fisco, tendo saí­do muitíssimo bem da in­cum­­bência: França chega a Ministro das Finanças; Lima chega a Ministro dos Transportes; Veiga assume a função de Juiz da maior comarca do país e, mais tarde, de Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário no Sene­gal; Pires Ferreira assume destacadas funções no Minis­tério da Defesa e, mais tarde, no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

E a história da Secção da Praia do Liceu de Gil Eanes – precursora do Liceu Nacional de Adriano Moreira - deve muito a Arnaldo França, Alfredo Veiga e Honorato Benrós. Foi graças a eles que a Secção vingou, rezando a história que a maioria das disciplinas foi assumida por eles, tendo Alfredo Veiga ministrado, em um mesmo ano letivo, disciplinas tão díspares como Português, Francês, Ciências Geográfico-Naturais e Matemática. Haja disponibilidade. Haja competência!

Em um campo tão austero como a dos Assuntos Fiscais, faz espécie constatar que há tanta e tão boa gente que é aceite – e de forma tão alargada – pela Alta Administração do país, pelos operadores económicos, pelos colegas e pela sociedade: Arnaldo França e Jorge Vera-Cruz Barbosa destacaram-se de tal forma, no campo literário, que integram hoje a galeria dos Imortais da Academia Cabo-verdiana de Letras; e Daniel Lobo vem sendo destaque na música, como compositor e intérprete.

Tenho, por mim, que os aduaneiros célebres aqui destacados – em uma listagem que não é, nem pretende ser, exaustiva – fazem jus à convicção que me acompanha na vida de que FIRMEZA E SUBTILEZA não são incompatíveis, constituindo, antes, uma combinação formidável para quem tenha como métier lidar com a subtração unilateral de riqueza, sem configurar o pagamento de um serviço ou a penalidade por uma infração.

Portanto, exemplos a seguir não faltam. Conquanto estes célebres aduaneiros tenham deixado a fasquia bastante alta, ainda assim, the show must go on e há que assumir o desafio.

Fica, pois, lançado o repto aos mais jovens, afinal os garantes do futuro. Da administração fiscal, da cultura, do país, do planeta Terra. Bon courage.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:António Ludgero Correia,4 fev 2020 6:01

Editado porSara Almeida  em  29 out 2020 23:20

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