A política implica gestão de expectativas. Quando deixa de haver sonhos, perdese a noção do futuro. O tempo é consumido sem o amanhã. O passado que ficou é rememorado com nostalgia. Mas o futuro não compadece com a nostalgia. Nostalgia é a saudade de algo que ficou lá trás, no passado; saudade de algo que se perdeu, que acabou, que não volta mais. O futuro é guiado por sonhos. «O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro» (Fala de Tuahir, em Terra Sonâmbula, de Mia Couto). É isso o sonho. É o sonho que faz andar a estrada.
Não quer isto dizer que deva ser um sonho comum a toda a população, nem que deva existir um único caminho. É perigoso que haja um único caminho, que haja um sonhador absoluto, que haja monopolização do sonho. A liberdade é a garantia do direito de sonhar, de escolher os caminhos por onde se pretende seguir. É a capacidade de sonhar e é a coabitação de sonhos que fortalecem a esfera pública. Sem sonhos permanecemos reféns do passado e perdemos de vista o futuro. Parece que é isto que está a acontecer neste momento em Cabo Verde. Mas antes é preciso fazer distinção entre desejos e sonhos. Desejo é a vontade de possuir, de fazer ou de ver realizada alguma coisa; sonho é um ideal que dará sentido à acção. Pelo que se denota que há na nossa comunidade política um excesso de desejos e um vazio de sonhos. Quanto muito, há sonhos pequenos. Quando os sonhos são pequenos, os sacrifícios são menores e o alcance será pouco significante.
Vivemos num tempo conturbado. Não é isto uma visão apocalíptica. Mas a falta de conjectura sobre o futuro tem arruinado a imaginação política. O que virá num tempo posterior ao tempo presente deve ser o motor da história. As grandes movimentações políticas se fazem à base do que está por vir, não do passado que ficou lá trás. É possível Sonhar. É possível Fazer. É possível Ser. Quer isto dizer que Ser deva alcançar predominância sobre o Ter, desde que não implique a indigência.
A ausência de expectativa positiva leva ao caos, ao abismo, ao vácuo. É preciso urgentemente a reinvenção dos sonhos e é importante a capacidade de preservar a integridade diante das adversidades.
Não faltam exemplos de grandes sonhadores pelo mundo fora. Em cada momento histórico, foram os sonhos ou a falta de sonhos que nos guiaram para o bem ou para o mal. Quando em Agosto de 1963, no seu eloquente discurso Martin Luther King, Jr. tinha proclamado um sonho, era aquilo um ideal para uma acção. Dizia ele: «I have a dream that one day on the red hills of Georgia sons of former slaves and the sons of former slaveowners will be able to sit down together at the table of brotherhood.» Não era aquilo um mero desejo de ver os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos proprietários de escravos unidos pela fraternidade. Havia algo mais profundo. Era o sonho de que um dia os seus quatro filhos, assim como filhos de outras pessoas negras ou brancas, pudessem viver numa nação onde poderiam ser julgados não pela cor da sua pele, mas pelo seu carácter. Há um pano de fundo nisto tudo: a escravatura e a perpetuação dessa memória de humiliação racial. Este é um facto e, ao tempo, já urgia lutar para a sua superação.
E é por isso, por causa dessa história de humilhação e segregação, que Obama teve aclamação universal. Dizia ele: «There’s not a liberal America and a conservative America; there’s the United States of America. There’s not a black America and a white America and Latino America and Asian America; there’s the United States of America.» Obama inseriu a sua vida na história dos Estados Unidos da América não para reviver o passado, mas para mudar o futuro: «Hope! Hope in the face of difficulty! Hope in the face of uncertainty! The audacity of hope! In the end, that is God’s greatest gift to us, the bedrock of this nation. A belief in things not seen. A belief that there are better days ahead.» É essa crença de que há dias melhores pela frente, essa audácia da esperança, que fez os americanos acreditarem no «Yes, we can». Esperança! Esperança face à dificuldade! Esperança diante da incerteza! A audácia da esperança!
Não se trata de pregar no deserto. Há que ter em atenção a pureza do sonho e o mensageiro que são partes integrantes da bússola que conduz à mudança. Eis o dilema do nosso tempo. Há recursos, mas há vazios de sonhos. A política hoje depende mais da força do dinheiro do que da fantasia dos sonhos. É preciso reinventar a roda, é preciso olear de novo.
O populismo que graça nos dias de hoje é justamente fruto da falta e falência dos sonhos. Os sonhos que não se cumpriram, os sonhos comprados na feira da ladra, os sonhos falseados. Na falta de sonhos e de acção, muitos preferem seguir por extremos. O populismo é produto da inércia política e do oportunismo perante as dificuldades. Há um ambiente político propício para o incremento do populismo na política nacional. Ninguém votará pelo simples acto de votar. Muitos preferirão o voto protesto, o voto no que de mais primário e trivial existir. É isto a consequência do rumo que as coisas têm seguido até a este porto em que chegamos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020.