O Amor, o Machismo e a Traição do Estado

PorAdilson F.Carvalho Semedo,15 fev 2020 9:54

Nas ilhas de Cabo Verde, durante séculos, o machismo configurou um quadro normativo, simbólico e ideológico, que deu forma e substância à construção dos ideais de homem, de mulher e de relações íntimas legítimas, matizadas por propósitos de classe, de raça e da religião hegemónica.

A sua funcionalidade dependia da configuração que os seus valores garantiam à conjugalidade e à família, e do entrave à corrupção destes valores, manifestada geralmente na abusiva liberdade usufruída pelos homens brancos e/ou providos de recursos materiais. Contudo, nas frinchas dessa estrutura social, as relações íntimas foram suscetíveis de engendrar estratégias potencializadoras dos interesses das mulheres, fazendo com que aquelas relações tenham sido desejadas, buscadas e manipuladas.

Se através delas a negra escravizada podia conseguir proteção ante os riscos da fome e da venda, alimentar a esperança da alforria, bem como a de gerar filhos mulatos, portanto maiores oportunidades de mobilidade social, é também provável que a mulher branca (deportada e/ou desprovida de recursos económicos) se tenha potenciado no mercado matrimonial, muitas vezes carente da valoração simbólica que a cor da sua pele poderia proporcionar às fortunas mais escurecidas.

Assim, no povoamento e formação da sociedade em Cabo Verde, a dominação masculina garantiu a compatibilização de interesses institucionais com determinadas expectativas dos segmentos presentes. Mas também gerou condicionalismos estruturais que permitiram ao amor erigir-se no ethos cabo-verdiano sob a lógica da necessidade, seja como estratégia de sobrevivência, seja como garante de mobilidade social ou da manutenção do status quo, e não apenas sob a lógica da amizade, cingida à interpenetração «pura» da afeição recebida e da retribuída.

A partir de 1975, a paulatina intromissão do Estado de Cabo Verde nas questões íntimas minou a centralidade do masculino e da sua contraparte biológica, o macho, o que se compreende se pensarmos, concordando com Andrea Lobo e Francisco Miguel, que o nosso histórico sistema de estruturação da intimidade privilegiou a filiação em detrimento da conjugalidade. A partir do período em que o Estado regulamenta a questão da filhação e se consolida como o substituto das redes de solidariedade intrafamiliares no que se refere ao «governos dos menores», a conjugalidade emerge como o problema jurídico central e demarcado dos, outrora chamados, «casos morais».

Entretanto, se subjacente à conjugalidade estão as relações íntimas ou “sistemas sociais dos quais se espera e dos quais os participantes esperam que se leve em consideração os pontos de vista e as necessidades dos intervenientes”, e o amor, enquanto “interiorização da relação subjetivamente sistematizada com o mundo do outro”, como propõe Niklas Luhmann, podemos inferir que uma realidade social marcada por vulnerabilidades, como a nossa, faz da interiorização das necessidades que a sobrevivência, o reconhecimento social ou a realização pessoal impõem ao ser amado, a derradeira prova para aquele que diz amar.

Quer isso dizer que, assim como no passado, também na atualidade, as desigualdades sociais e individuais são catalisadores e intensificadores do amor e das relações que gera. Ora, na sua aventura pela esfera da intimidade, os aparelhos do Estado de Cabo Verde não se imiscuem nas condições e possibilidade do encontro físico e emotivo dos adultos. Este posicionamento tem-lhes permitido orientar a sua ação para o feminino, gerando discursivamente uma «histórica condição de vítima», e para o masculino, minando os fundamentos de comportamentos historicamente enraizados, por meio de restrições jurídicas e da promoção da sua regeneração.

Vale dizer, as gramáticas da democracia popular e da liberal tornaram anacrónicos os fundamentos raciais, de classes ou morais/religiosos no enquadramento do encontro dos corpos, sem que tivessem gerado segurança suficiente para a assumpção pública da funcionalidade política e económica do amor. Assim, considerando a complexificação das demandas sociais, o foco estatal em disfuncionalidades objetivas, como a violência baseada no género, já não é bastante.

A melhor evidência disso chega-nos da emergência da questão da homossexualidade nas ilhas, cuja descriminalização penal em 2004 gerou condições para que o Estado seja desafiado a alargar o âmbito político e jurídico da regulação da intimidade, como a necessidade de homens e mulheres se precaverem financeiramente no decurso das suas relações heteroafetivas ou homoafetivas.

Em suma, o governo das «coisas íntimas» do Estado de Cabo Verde disfarça a necessidade de assumpção de uma biopolítica que visa toda a população e foca a sua atenção em dispositivos disciplinares que visam um sujeito específico: o homem/macho. Com muita conveniência, o Estado moderno em Cabo Verde dispensa tanto o sistema de dominação masculina como traí o homem/macho, quando a ele delega o ónus da responsabilidade de todas as desgraças históricas que se abateram sobre a mulher e sobre a família.

É certo que o machismo cumpria funções que presentemente são anacrónicas. Sem um suporte da sociedade, esse fundamento institucionalizado de práticas sociais vive a deriva, de cabeça baixa e sujeito ao escárnio e ao maldizer. A sua desgraça, entretanto, deveria ser ocasião para questionarmos que fundamento institucional cumpre, na atualidade, as funções que cumpriu, com todas as suas deficiências, na organização das relações íntimas e do amor na história da sociedade cabo-verdiana.

Afinal, estas relações sociais, enquanto geradas por e geradoras de significação social e estruturadas por e estruturantes de expetativas, necessitam de uma ordem que ultrapasse as inclinações individuais. Não sendo assim, a tendência para a anomia na intimidade tenderá a intensificar-se, aspeto este escamoteado na nossa economia política da intimidade, seja pelos aparelhos do Estado, seja pelos ativistas de género, quando atribuem as recorrentes violências no campo da intimidade às remanescências machistas.

Dá-lhes menos trabalho que assim seja dito e pensado do que considerar que estas violências são reflexo do caos gerado pela instalação de regras que promovem o isolamento e a predação, ao invés da cooperação, em todos os micros espaços da nossa realidade social e/ou que o amor funciona, para a maioria da população, como a última esperança de se alcançar benesses materiais e simbólicas que a sociedade promete mas nem sempre fornece meios para a realização.

Desgraçado socialmente, feito cego, surdo e mudo, o machismo, hoje, é o bode expiatório perfeito. Ao homem/macho só resta aceitar que o machismo foi um «sol enganador» que girou em torno dele. Mas convém realçar que o modelo de homem ideal que se preconiza para o cabo-verdiano segundo os padrões ocidentais, na nossa hodierna política de género, é igualmente outro «sol enganador».

Para lá de uma coisa e outra, o amor, na nossa sociedade, é «um fogo» que arde à vista de todos. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Adilson F.Carvalho Semedo,15 fev 2020 9:54

Editado porFretson Rocha  em  15 fev 2020 9:54

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