McFerrin, mestria inquieta numa voz que vagueia universos

PorPaulo Lobo Linhares,22 mar 2020 8:55

O maestro fez 70 anos. E tanto já nos deu…

No álbum de estreia, Bobby McFerrin abriu um pouco da cortina do que viria a ser o seu enorme cenário musical. No álbum cujo título tem o nome do músico, temas como “All feets can dance” ou “Hallucinations” mostravam a sua enorme maleabilidade e capacidade de improviso vocal. Estávamos certamente perante capacidades raras no uso do instrumento-voz. No tema “Peace” de Horace Silver anunciava as ligações a outros géneros musicais que se viriam a se constatar: o Jazz e a música Erudita.

Se dúvidas houvesse, são-nos dadas todas as certezas do que foi anunciado no primeiro álbum. Grava provavelmente o disco onde melhor mostra (ainda com uma doce de inocência) a sua capacidade vocal e criatividade. Em fracções de segundos passa de falsetes para sons mais graves quase que sem interrupções, num processo criativo impressionante. “The Voice” foi um álbum também marcante por ter sido a primeira vez que um cantor (também) de Jazz grava um álbum a solo sem qualquer tipo de acompanhamento ou “overdubbing”, para uma “label” de renome.

A crítica enaltece o músico. No álbum “Simple Pleseaurs” aparece então o enorme “top” – “Don’t Worry, Be Happy”. Mediatismo e prémios multiplicam-se.

Estava apresentado ao mundo, angariando admiradores. Um deles foi Chick Corea, com quem grava “Spain”. Neste álbum, uma das interpretações mais belas do tema que dá nome ao disco. Virá a cruzar-se de novo com Corea abordando Mozart (apesar da disciplina requerida na música clássica, aqui, como é fácil adivinhar, a interpretação dos dois músicos não segue os trâmites “disciplinares” da música erudita. Vagabundeiam sobre o universo de Mozart de forma livre e apaixonada.

Pois ainda no “período clássico” e de duetos, McFerrin junta-se ao violoncelista Yo Ma para gravarem “Hush”. Destaco o precioso tema “Flight of the Bumblebee” onde os músicos permitem-nos observar o incrível virtuosismo de McFerrin, onde a voz tem a capacidade de se colar ao violoncelo, e misturando-se seguem uma única linha. Absoluta referência.

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Se o clássico assediava McFerrin, no álbum “Paper Music” a fusão dos seus improvisos vocais com a música erudita chega ao mundo orquestral – a Saint Paul Chamber Orchestra. Neste disco, realce para o tema Pavane de Fauré – um estado de beleza musical tal, quase que onírico (…só comparável à versão de Bill Evans Trio no álbum com a Orquestra de Claus Ogerman, que também deixo aqui como proposta).

Logo a seguir, aproxima-se de novo ao Jazz/R&B em “Bang Zoom”. Aliás, estes passeios por territórios vários, são certamente uma das características que encantam muitos dos seus seguidores. Passeios, contudo, sempre suportados pela mestria da adaptação vocal e criatividade necessárias para que nada soe em vão.

Colaborou com Herbie Hancock, Horace Silver, Lennon, Dizzy Gallespie, Chick Corea, Richard Bona …interpretou Bach, Rimsky-Korsakov, Gunot, Mozart…musicou uma estória narrada por Jack Nicholson…etc. Lembro-me de um dos responsáveis musicais que trabalhou comigo na FNAC ter-me um dia dado a melhor definição para Mr. McFerrin: …”demasiado indisciplinado” para ser aceite pelo mundo clássico e demasiado inventivo para ser aceite pelos puristas do Jazz… para mim será sempre McFerrin – ousado e próprio.

Seria injusto não focar aqui um dos melhores momentos do músico – o álbum Circlesongs – viagem por ambientes musicais da África e do Oriente. Perfeitos “mantras onde viajamos ao som de McFerrin e ainda do Voicestra – orquestra de vozes que criou.

Ora, o eterno inquieto compositor, que na verdade já tinha até agora entrado pela música erudita e pelo Jazz, como acima referido, parecia procurar mais… desenvolver novas ideias para a voz humana e colocá-la em contextos diferentes. Assim, McFerrin cria em “VOCAbuLaries” uma verdadeira “fusão” musical de culturas, de gentes…onde a música abraça cada um dos povos do mundo. O Pop/Soul bem presente, mas os sons dominantes são vários: os do Médio Oriente e da Europa do Leste entrelaçados no tema “Wailers”, de África no tema “Baby” …para tudo terminar numa magnífica polifonia, qual corais gregorianos no tema “Brief Eternity”.

Num mundo onde cada vez mais precisamos de nos abraçar, agora cada vez mais difícil, façamos da música o veículo da união, mesmo que espiritual.

Daí, a escolha desta semana recair sobre este disco.

O mundo num disco…o abraço numa obra. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 18 de Março de 2020. 

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Autoria:Paulo Lobo Linhares,22 mar 2020 8:55

Editado porSara Almeida  em  24 mar 2020 9:26

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