No trecho da Carta ao Rei D. João V, de 18 de novembro de 1724, disponível na íntegra no livro “A Situação da Ilha de Santiago no 1º Quartel do Século XVIII” (2004), de Daniel Pereira, ele afirma:
“Eis aqui a República desta ilha; Acha-se para o governo dela no espiritual, Bispo, Provisor, Vigário-Geral, e os mais oficiais eclesiásticos; no temporal, Ouvidor Geral, dois Juízes, dez ou doze Escrivães, Distribuidor[es], dois Meirinhos, muitos guardas, Tesoureiros; e Procuradores; Governador Tenente Geral, muitos Comissários Gerais da Cavalaria, muitos Coronéis, muitos Capitães mores, e Sargentos mores, um sem número de Capitães Tenentes, Alferes de Infantaria e Cavalaria, Condestáveis, Artilheiros, todos cabeças, ou porque o são ou porque o querem ser, donde nasce uma monstruosidade de um corpo com tantas cabeças ou tantas cabeças sem corpo”.
Segundo Senna Barcelos, em consequência das suas desaventuras foi assassinato a mando do Governador. Na fuga aos seus algozes, o Ouvidor, ferido, recolheu ao Convento São Francisco onde foi apanhado e morto no início da escada. Dessa trágica passagem histórica fica a evidência que o dinamismo social nas ilhas gerou uma forma peculiar de lidar com o poder, a autoridade e o trabalho coletivo: o protagonismo egocêntrico sobrepõe-se ao protagonismo coletivo, emperrando as possibilidades de coordenação eficiente, dado que todos os envolvidos no processo laboral são, acima de tudo, «cabeças».
Pese esse traço estruturante da cabo-verdianidade, a aposta na gestão sociopolítica com base no paradigma da liderança tem sido uma constante no decurso dos séculos XV-XXI. Atende-se ao desafio da gestão da vida social com a organização do poder centralizada em alguns indivíduos, enquanto preparados para se assumirem como «baluartes da verdade», «fontes de inspiração moral» e «luzeiros de uma estética de existência para as massas».
Portanto, somos herdeiros de ethos de trabalho divergentes. Se ao nível individual cada um é uma «cabeça», ao nível institucional vigora a autocracia. Na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) essa divergência tem-se acentuado à medida que a diferenciação social do trabalho no seu seio se complexifica.
Na fase da sua instalação apostou-se na liderança e nas macroestruturas. A insatisfação patente nas eleições internas de 2014 revelou o desgaste provocado pelo modelo de gestão com pouca participação dos docentes nos processos de tomada de decisão. Então, mais de metade do universo votante apostou no projeto da Professora Doutora Judite Nascimento, que prometera a autonomização dos sectores universitários. Porém, os seus mandatos como Reitora, (2014 – 2018) – (2018 - ao presente), traduziram-se na aposta e no reforço da pessoalização da gestão académica, reduzindo o paradigma de liderança ao modelo «eu quero, posso e mando».
Em termos institucionais, comparativamente aos mandatos reitorais anteriores, esse modelo de gestão académica assegurou o esvaziamento funcional da Administração-Geral e o esvaziamento do poder de decisão das unidades orgânicas. Somam-se os incumprimentos estatutários, como a não provisão da direção da Cátedra Amílcar Cabral, vaga desde Maio de 2018, e o funcionamento do Conselho da Universidade, de 2018 à data, sem um representante para os estudantes. Em termos das relações interpessoais, promove a subserviência de docentes e funcionários, e fortalece-se com o padrão de relações marcado pela deslealdade entre os pares, que assume a forma do «salve-se quem for mais esperto».
A crise do SARS-CoV-2 ofereceu a esse modelo a oportunidade de, mais uma vez, ignorar os normativos jurídicos. A opção pelas «aulas online», atribuiu, sem negociação e formalização de acordo, funções que não estão estatutariamente estabelecidas aos docentes. Ainda, contrariamente ao exemplo dado por um instituto de ensino superior do nosso meio, que auscultou os seus estudantes através de um inquérito por questionário antes de decidir não adotar a modalidade das aulas a distância, a administração reitoral da Uni-CV remeteu aos seus estudantes os encargos e as consequências de acompanharem essas aulas. Ironicamente, não deixou de aconselhar o uso racionalizado das megas que os próprios estudantes custeiam.
Mas, vale dizer que o foco nas «aulas online», a propaganda assistencialista assumida pelos seus Serviços de Ação Social, e a recente onda de projeções e investigações individualizadas sobre o COVID 19, desviam as atenções de outras questões sensíveis.
Uma questão básica é: porquê a Uni-CV, com cursos de Ciências Biológicas, Engenharia Química-Biológica, Enfermagem, Medicina e Química, não está a altura de auxiliar as autoridades nacionais de saúde facultando-lhes espaço, meios e técnicos altamente qualificados para, por exemplo, a realização de testes do vírus SARS-CoV-2, de modo a acelerar o processo de resposta às demandas públicas, ou ainda, reforçar a acreditação científica e social das ações que tem sido realizadas pelas instituições de saúde pública, com as quais tem protocolos assinados?
O Plano de Contingência montado projeta virtualmente o dinamismo da Uni-CV como instituição de ensino em contexto de crise, e esconde as fragilidades que limitam a investigação científica e o subaproveitamento social dos seus profissionais. As apreciações críticas ao estudo de projeção da propagação do novo corona vírus, realizado pelo Engenheiro José Augusto Fernandes, podiam ter sido colocadas pelo Centro de Investigação Aplicada em Matemática. Mas tal Centro não existe. Os Biólogos Virologistas Doutores, Biomédicos Doutores, Enfermeiros Doutores, Médicos, e Químicos Doutores, que trabalham na Uni-CV, poderiam estar colaborando com as Instituições de Saúde Pública disponibilizando as suas valências e os laboratórios do Centro de Investigação Biomédica. Mas tal centro, também, não existe.
O SARS-CoV-2 evidenciou ao Estado/Nação que a planificação, a organização e a coordenação das ações coletivas exigem uma efetiva aposta nas micros-estruturas e nos microprocessos. Já não é bastante a solução das lideranças quando o desafio é a gestão da complexidade. Ainda, evidenciou que, no seio da Uni-CV, é perentório transformar as unidades orgânicas em microestruturas autónomas, e consolidar as investigações científicas como um microprocessos ligados às especificidades das micros-estruturas a que são afetas.
Caberá aos atores administrativos facilitar, mediar, e responsabilizar, com rigor, os envolvidos pelo cumprimento dos objetivos traçados, discutidos e implementados por cada microestrutura, e não mais serem «os baluartes da verdade institucional», «os melhores filhos da casa» ou «os exclusivos produtores do sentido de ser Uni-CV».
Esta instituição, que carrega nas costas as esperanças de todos os sectores da sociedade cabo-verdiana, chegou a este tempo sombrio e incerto vergada à falta de visão, à falta de estratégia e ao protagonismo egocêntrico. Eis outra contingência, mais antiga que o SARS-CoV-2, que requer também um Plano.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020.