Confesso que tenho alguma dificuldade em responder prontamente quando me perguntam de onde sou. Invejo as pessoas que podem responder que são “nascide e criode” num tal sítio. Não há confusão nenhuma, os antepassados, o umbigo, a infância, os companheiros de escola, às vezes até do liceu, tudo no mesmo lugar, deve ser um descanso.
Eu cá infelizmente não tenho essa sorte. Se é verdade que Santo Antão é a terra dos todos os meus antepassados, pelo menos até à quinta geração, salpicado com um ou outro avô do Sal ou da Boa Vista e até da Brava, e lá estão todas as histórias gloriosas da família e algumas terrinhas também, não é menos verdade que o umbigo está enterrado na Praia e o badio foi a primeira língua que mamei.
Mas toda a minha infância, com as constantes transferências do meu Pai (nada menos do que dezasseis), foi passada num ir e vir entre a Praia e São Vicente e, a partir dos meus dez anos Mindelo passou a ser, finalmente, a minha terra e daqui ninguém mais me tirou. Passar alguns dias sem ver o sol a pôr-se no Monte Cara ou sem dar um mergulho na Lajinha é um verdadeiro tormento. Hoje em dia quando vou à Praia, sempre em serviço, tenho a maior pressa em voltar e sinceramente, sem qualquer sombra de bairrismo, não acho nada aprazível estar numa cidade onde não se pode andar a pé nem passear na Praça, à noite, ou encontrar todo o mundo numa esplanada.
Mas então porque é que sinto essa vaga nostalgia sempre que passo pelo Ténis ou oiço um bater de batuque ou o som de búzios da tabanca? E então revejo-me com uns quatro anos, sentada no degrau do portão da nossa casa na rua da Madragoa, olhando apavorada para a esquina tentando vislumbrar o vulto aterrador de Nhô Dôn, guarda-nocturno da SAGA, que usava um enorme capote e um cacete na mão e tinha a missão de ficar ali parado, atrás da Igreja, até eu acabar de comer a sopa. E a casa da minha avó, ali mesmo em frente ao BNU, precisamente onde é hoje o Ministério das Finanças.
Tinha uma enorme escadaria de pedra e um quintal imenso, onde havia uma videira que dava uvas e tudo, e pés de azedinha mas, principalmente, um caramanchão de jasmim com um cheiro que nunca me saiu da cabeça. E havia ainda a cozinha longe da casa grande, negra, com uma janela que dava para a Várzea. Ali se cozinhava todo o santo dia uma panelona de cachupa e outras comidas de caldeira, sendo que o leite-creme e outras guloseimas que a minha avó fazia pessoalmente, eram feitos num fogão primus na sala de jantar.
Teoricamente éramos proibidos de ir para a cozinha do quintal porque o fogão era a lenha e a janela dava para um precipício, mas quantas vezes me debruçava para ver subir a tabanca da Várzea, em fila indiana e soprando búzios, ou para espreitar cheia de medo os funerais que passavam lá em baixo em direcção ao cemitério. E quantas brincadeiras na escadaria de pedra, quando a meninada se sentava para ver “teatro”, e o meu primo Jorge, muito pequenino, com um joelho dobrado, um braço estendido e outro ao peito, declamava “a mi, nha tabaquêro, nem ku zoedjo na tchon” de Jorge Pedro Barbosa...E ouvíamos histórias à porta de casa, de bruxas que metiam alfinetes na cabeça de princesas e nhô lobo cu chibinho e feiticeiras que voavam com rabo comprido.
E sempre, infalivelmente, a presença das adoradas Tété e Né, nossas criadas badias de toda a infância, nossos anjos da guarda, fiéis protectoras que literalmente davam o corpo ao manifesto fosse para se porem à frente da minha mãe quando ela aparecia de chinelo na mão, ou para entrar em vias de facto com outras criadas na praça, quando os meus irmãos se metiam nalguma briga. O que aliás, acontecia com frequência diária com o Zé Pedro (hoje Jopam): ele tinha mesmo um inseparável amiguinho do peito que ia todos os dias buscá-lo “pa nu bá briga” e ficava tranquilamente à espera que ele acabasse de comer para iniciarem a luta.
Mas bonito mesmo era vê-las defendendo-nos com unhas e dentes, arranjando desculpas por maior que fosse a asneira feita, e quando a minha mãe puxava do lato chamado “ruspeto”, uma tira de cabedal achatada em cima e roliça em baixo metiam-se à frente, cobrindo-nos o máximo possível e apanhando as suas boas varadas nas pernas, felizes por nos terem protegido da sova.
Vejo a Tété, baixinha, de pernas arqueadas, e a Né, mais alta e retinta, sempre impecavelmente asseadas, de avental branco, brincos de ouro e lenço adamascado à cabeça, amarrado à moda de badia di fora. E, fosse na Praia ou em São Vicente, porque elas também faziam parte da mobília e do ir e vir, havia as sessões de batuque no quintal, a Né com o seu pano amarrado na cadeira, cantarolando o “Balentim” e a Tété fazendo tchabeta com uma trouxa entre as pernas, e eu atrás, tentando desesperadamente e sem nenhum sucesso aprender a “dá cu torno” coisa que, infelizmente e para minha grande frustração, nunca consegui fazer até hoje.
Mas mesmo assim adoro o batuque e o funaná e ainda que, para minha grande fúria e por mais que fale um badio impecável, as vendedeiras no mercado da Praia teimem em chamar-me...francesa (??), tenho muito orgulho da minha costela de badia e sei que a devo, muito especialmente, às fieis e inesquecíveis Tété cu Né.
A Angélica da Silva Brito, e Irene Gomes da Silva, já falecidas, dedico esta crónica.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 966 de 03 de Junho de 2020.