Santa Maria

PorSónia Morais,7 jul 2020 6:46

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Sou boa em fazer surpresas. Já fiz uma ao pessoal de Lisboa, quando os meus filhos ainda lá estavam, que deixou todos de queixo caído. Desta vez resolvi ir surpreender o filhote que se mudou de armas e bagagens para o Sal, desde que ingressou na ASA, há cinco meses. Estava eu na Praia, em serviço, telefonei-lhe: filhote, estou no mercado, tenho um portador mais logo para o Sal, queres alguma coisa? Sim, manda linguiças, muitas, feijão sapatinha e morangos.

Lá fui eu para o aeroporto devidamente aviada, antegozando a cara de parvo que ia encontrar. No caminho ia pensando nessa quase sina dos homens da minha família mais directa, que têm passado no Sal parte da sua vida profissional, em início de carreira.

Assim foi com o meu Pai que ali esteve algum tempo, antes de eu nascer, primeiro solteiro, mais tarde com mulher e dois filhos pequenos, e que sempre contava o quanto gostou de viver em Santa Maria. Minha Mãe, quando ouvia na rádio a voz do Ildo Lobo dizia, invariavelmente, gosto deste, canta bem, mas o pai cantava melhor. E contava dos bailes de viola e bico, à luz de candeeiros e ao som da voz lindíssima e potente de Antoninho Lobo, cantando sem descanso até de madrugada. Imagino a minúscula vila de Santa Maria onde, literalmente, a única coisa que havia para fazer era tomar banhos de mar, na imensidão daquela praia maravilhosa, de uma limpidez e cor turquesa únicas, e passear no pontão, vendo chegar os botes de pesca carregados de peixe.

Mais tarde, foi o meu irmão Jopam que lá passou um bom par de anos, na década de 80, anos felizes, digo eu, cheios de peripécias e muito convívio. Eu tive a oportunidade de estar com eles por diversas vezes, quando ia ao Sal em serviço da Shell, quando a Shell era a Shell, ou em serviço da ELECTRA, e não havia fim-de-semana sem uma boa pescaria, daquelas em que a Tchutcha e a Carlita se afastavam um pouco e logo surgiam com o balde cheio de belas plombetas que a Tchutcha amanhava e deitava na frigideira, ainda vivas e a saltar. Impossível comer peixe mais fresco que esse. Só falta dizer que as iscas eram de lagosta!

Santa Maria não seria então muito diferente do tempo dos meus Pais, mas já tinha o Hotel Morabeza, que nessa altura tinha passado do casarão de madeira do velho Vankier, tinha um ou dois pavilhões de quartos, a piscina, o restaurante e a discoteca, que já então faziam desse sítio algo único, diferente de tudo, era como se não estivéssemos em Cabo Verde. Os clientes eram basicamente sul-africanos brancos, da South African Airways, o que reforçava mais a imagem de “estrangeiro” que se tinha do local. Adorava a discoteca, onde me punha muitas vezes a dançar, sozinha, ao som dos Bee Gees, uma das minhas bandas preferidas de sempre. Ah, canadja, sodade de nha juventude!

Chego ao Sal, dou com a cara de parvo do Tulass, aqui está a encomenda, ficou de tal forma surpreso que nem conseguiu reagir, já me fizeste isto uma vez, voltei a cair que nem um patinho. Mas ficou todo feliz, já a fazer programas, logo à noite vamos ao Caldera Preta ouvir o Dudu Araújo, amanhã temos a Expotur na Vila Verde, mas antes damos uma volta à ilha e, no domingo, passamos o dia em Santa Maria. E assim foi, cumprimos o programa, visita às salinas de Pedra de Lume incluída, afinal é uma das maravilhas de Cabo Verde, embora até hoje não entenda porque ganhou na categoria de baía sendo a cratera de um vulcão.

À entrada da gruta há uma portaria onde se vendem bilhetes para turistas, o meu filho e a namorada passam e oiço o guarda dizer: Quel lá (eu) tem que pagá! N tem que pagá porquê? Bocê explicáme, pergunto eu. O homem olha-me espantado, bocê desculpáme, N ca reconhecê bocê por causa des óculos escuro. Pois, pois, óculos escuros e chapéu, lá estou eu a passar por europeia de novo. Continuamos a volta à ilha, Palmeira, com as suas ruazinhas muito arranjadinhas, Bracona, Terra Boa. Tudo mais ou menos igual.

Ao fim da tarde rumamos para o Sul, depois de uma rápida passagem por Vila Verde, uma verdadeira cidade quando um dia estiver toda habitada. Passamos pelos hotéis, lentamente, vão-me apresentando as novidades, Riu Funaná, Riu não sei quantos, Meliá. Vamos parar aqui e tomar qualquer coisa, dizem que o bar é muito bonito. À entrada somos barrados pelo porteiro, pulseira, pergunta ele, não temos, vamos ao bar. O pobre mandjaco hesitou um bocado, coçou a cabeça e mandou-nos entrar, apontando para o balcão. Ao balcão a cena repete-se, o recepcionista chama a chefe, nada feito, só com pulseira.

O Tulass começa a perder a paciência, exige uma razão para tal atitude, a moça balbucia vagamente qualquer bojarda relacionada com segurança, hahaha, saímos de casa todos produzidos para a night, perfumadas e de bico pintado, e afinal estamos com ar suspeito, penso eu. O Tulass continua as negociações, pede o livro de reclamações, a moça fica assustada e eu sinto pena dela.

Vamos embora, viemos para nos divertirmos, não para stressar, nunca mais entro nesses hotéis. O Tulass concorda mas vai avisando à moça, qualquer dia volto cá e vou querer esse livro de reclamações de qualquer maneira, avisa o teu chefe. São esses os malefícios do all-inclusive. Se há quem não tem culpa são os pobres funcionários cabo-verdianos, não são eles que fazem nem que aceitam essas regras absurdas.

Finalmente entramos em Santa Maria, tudo diferente, as ruas cheias de gente, bares, esplanadas, discotecas, restaurantes porta sim porta sim, uma fauna a condizer à entrada de cada local. Ouve-se música ao vivo vinda de vários lados, vamos a um bar com esplanada ouvir Tiolino e banda e comer hambúrgueres. Deliciosos, por sinal, dos melhores que já comi. Muitos turistas a tentar dançar mazurca, principalmente mulheres, algumas cenas degradantes de prostituição masculina, tudo como se faz lá fora. Damos mais umas voltas, encontramos muitos amigos do Tulass e da Carla, muita animação, conversas, risos. Não me lembro de tanta animação nocturna desde o tempo das Docas dunvez.

No dia seguinte voltamos, à hora do almoço, e vamos directamente comer num self-service, à beira-mar. Comida a peso, mais barato do que na Praia ou São Vicente, estou pasma, o Sal antigamente era a ilha mais cara de Cabo Verde, realmente nada melhor do que a concorrência. Almoçamos ao som de um exímio cavaquinho logo seguido de um pequeno show de, nada mais nada menos que… Princesito em pessoa. Sou fã. Consta que Mirri Lobo, que lá estava a almoçar, iria também cantar mas isso já não posso dizer porque finalmente fomos dar o desejado mergulho no mar, esse mar inigualável, de cor turquesa e de tal forma transparente que custa a acreditar.

Não há dúvidas que curtir a praia de Santa Maria é uma experiência única, essa é uma maravilha de Cabo Verde absolutamente incontestável. Eu quase que já me tinha esquecido da delícia que é essa areia branca e macia que não suja nem se agarra à pele, os meninos dando rabujadas no desquebrar das ondas de espuma branca, como me lembro dos nossos, em pequenos, principalmente o João Carlos que entrava na água e ficava horas, literalmente, nesse vaivém saindo depois com os olhos vermelhos e os cabelos entupidos de areia e a barriga toda esfolada. Seguia-se o lanche, em que aquelas quatro criaturinhas comiam um pacote de Nestum por refeição!

Depois do banho e de um bom papo com os muitos amigos que fomos encontrando, ainda houve tempo para ir assistir a um desfile de modas, ali mesmo na esplanada bem ao lado da antiga casa do Jopam, (que saudades dessa casa) com direito a modelos tão especiais como a nossa miss Cabo Verde e miss CEDEAO e outras lindas crioulas cheias de estilo e sensualidade. Meu filho esqueceu-se dos óculos no carro, ainda bem diz a Carla. Cau mau… Estamos animadíssimos mas lembrem-se que tenho um voo para apanhar, digo eu. Rumamos para Espargos e eu para o aeroporto.

Fim de viagem. Fui fazer uma surpresa ao Tulass, afinal a surpreendida sou eu. Definitivamente Santa Maria é outro país, não é Cabo Verde. Já não consigo imaginar a minha Mãe Albertina toda feliz a rodopiar nos braços de João Morais, num baile de viola e bico, á luz de candeeiros e ao som da voz única de Antoninho Lobo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020. 

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Autoria:Sónia Morais,7 jul 2020 6:46

Editado porAndre Amaral  em  21 abr 2021 23:21

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