Vivemos num tempo de grandes perplexidades. Dessas perplexidades têm surgido variadíssimos desafios sociais, económicos, políticos ou ambientais. De entre esses desafios, pode-se começar por observar de forma muito panorâmica ou mais incisiva a nossa paisagem social. Desde já, constata-se que, para além das desigualdades estruturais pré-existentes, um efeito particularmente visível da pandemia de Covid-19 prende-se com a rapidez, a profundidade e a imprevisibilidade desta crise que tem provocado o agravamento dos processos de exclusão social e a amplificação de situações de risco social nas nossas sociedades. Basta considerar que, nas sociedades africanas, em geral, e na realidade social caboverdiana, em particular, a maior parte da população activa vive e depende exclusivamente da chamada economia informal e não está verdadeiramente abrangida por nenhum esquema de segurança social.
Esta informalização do mercado de trabalho e a ausência de protecção social à larga maioria da população tendem a ser admitidas como sendo constituintes da realidade típica dos países subdesenvolvidos. Trata-se, portanto, de situações que poderiam ser chocantes noutros hemisférios, mas que ironicamente, por exemplo, cá nas ilhas não são encarradas como excepção, ou seja, não são desvios da regra geral ou do que é mais comum. São desvios de um tipo ideal, que é o funcionário público. Pelo contrário, a informalidade e a ausência de segurança social impõem-se como componentes de uma normalidade. Coisas banais. Corriqueiras. Trivialidades. Pirâmides onde a sociedade se assenta. Daí a naturalização do risco social e da sua permanente justificação com base na ideia da pequenez e pobreza do meio.
A banalidade e a normalidade dessa realidade na sociedade cabo-verdiana é o reflexo mais enigmático da experiência endémica de desigualdade estrutural e histórica na sociedade cabo-verdiana, que atinge os indivíduos, as famílias e as comunidades. No entanto, se no fundo atendermos ao facto de que a informalidade é uma realidade essencialmente feminina, teremos a devida noção do impacto real de uma pandemia como a de Covid-19 na vida das mulheres e das famílias mais pobres que são lideradas justamente por elas.
Entretanto, é a ideia de que não basta dizer que há mais mulheres no sector informal, nos empregos precários e mal pagos, no serviço doméstico, nos cuidados e serviços não pagos e no desemprego que nos leva também a pensar na dimensão e na profundidade desse problema social. Pois, para além dessa segregação laboral, é de reconhecer que são substancialmente as mulheres que suportam os encargos com a manutenção da maioria dos agregados familiares monoparentais e, nestas circunstâncias, em que os homens tendem a ser abstencionistas. Uma realidade dura e crua. Custa acreditar, mas ainda persiste. Urge pensar nisso e criar soluções para atenuar a sobrecarga que reincide das mulheres.
Significa que, em última instância, não havendo políticas de segurança social para atender a essa tipologia de família e se, com efeito, o Estado torna-se ausente na vida de largas camadas femininas, logo é conivente e cúmplice com a reprodução da desigualdade estrutural e histórica que perpetua esses desequilíbrios e riscos na sociedade insular. Aliás, o Estado é duplamente cúmplice. Por um lado, por causa desse deficiente sistema de segurança social. Por outro, numa economia em que é o Estado o principal empregador, havendo a continuidade dessa segregação sexual no acesso ao emprego formal e construção de alternativas de emprego feminino pela via do sector informal, logo significa que é a estrutura do poder estatal que cria critérios de inclusão que, no final das contas, são também critérios de exclusão, sendo que a inclusão e a exclusão acabam por vigorar com base numa matriz sexual do poder histórica e socialmente estabelecida. Por outras palavras, se há mais homens com emprego formal, sobretudo na administração pública e nas empresas com participação do Estado, e há mulheres maioritariamente no sector informal, o Estado tem a sua parte de responsabilidade na manutenção da rigidez desta ordem social. Não há como fugir da responsabilização do Estado. Basta observar e pensar na relação de poder na administração insular. É o Estado que deveria criar políticas públicas para corrigir as falhas que persistem e não relegar à sociedade, em geral, e às mulheres, em particular, esse dever social de suportar o fardo que a história relegou e a cultura fermentou. Urge pensar nestas questões quentes. Por que razão o Estado não vai mais além?
De facto, o que a pandemia de Covid-19 fez foi escancarar essa exclusão do sistema de segurança social como um problema e um desafio a vencer. Com efeito, no meio de tantas incertezas, há já uma certeza: Cabo Verde precisa de um Estado de bem-estar social. Quer isto dizer que, em Cabo Verde, o Estado não deve abster das suas responsabilidades no fomento à economia insular, nem deve desconsiderar o tecido social por si bastante vulnerável. É no equilíbrio desses dois pratos da balança que reside o maior desafio do desenvolvimento do país.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.