“Plantei uma árvore, tenho um filho e escrevi um livro: sou uma pessoa realizada” …A sério?

PorDina Salústio,22 jun 2020 7:38

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Hoje queríamos prestar homenagem às pessoas solidárias e competentes que nos fazem parte do seu mundo e fazem este país acreditar que vamos ficar bem.

Porque é junho, convencionalmente mês das crianças, lembro o período de vida chamado a “idade dos porquês” entre os três e seis anos, mais ou menos, em que as crianças, praticamente, nos arrasam com perguntas tentando compreender como as coisas acontecem. Tantos porquês que muitas vezes, desprevenidos, nós os adultos, acabamos por dar umas respostas tranquilamente obtusas e elas, por uma razão ou outra, mas principalmente porque têm mais argumentos, mudam de tática e abandonam o interrogatório direto.

Posto isto, neste junho, eu queria dizer aos jovens que duvidar, questionar e interrogar não só são método de aprendizagem como são elementos que possibilitam adquirir mais confiança pessoal, um pensamento mais lógico e mais certezas e que devem fazer parte de toda uma vida.

Podíamos aproveitar para falar em dúvida metódica, mas não estamos em tempo de certezas absolutas e ficamos satisfeitos em dizer que a argumentação é um fator absolutamente excitante nas relações sociais.

… Depois é só olhar extasiados para os jovens, ouvindo-os a debater assuntos com segurança, na maior parte das vezes, tentando conquistar a confiança…

E é confiantes que muitos escritores afirmam: “Estou realizado: já escrevi um livro (às vezes mais do que um), plantei uma árvore (às vezes um tomateiro) e tenho um filho (não se especifica se esse filho é filha, mas vale, embora se recomende individualizar a progenitura). Esta fala também pertence a algumas escritoras, porque ao fim ao cabo é uma frase clássica e nós mulheres temos a tendência para incluir todos os pressupostos nos ganhos conquistados.

Seguindo a escrita pergunto:

– O que sabemos nós sobre o finito para afirmarmos que estamos realizados, apenas por concluirmos um pacote de tarefas que satisfaz os nossos sonhos e ambições, às vezes a nossa vaidade ou o nosso enorme tédio? O que sabemos de “realização” se um miserável e invisível vírus é suficiente para pôr todo este nosso vasto mundo às avessas? Para nos pôr cheios de medo, quase oblíquos? Para nos pôr infinitamente inseguros?

O título com que desafio a leitura a mim não me convence. E mais: acho-a um pouco desavisada e sectária. Claro que estou, propositadamente, usando uma linguagem “quase” excessiva porque quero provocar a curiosidade dos jovens. Mas, se não, vejamos: O que é isso de “se sentir realizado”? E as pessoas que estão pouco se importando com a literatura, ou que não querem escrever um livro ou mesmo um simples panfleto, aquelas que não têm tempo para escrever como enquadrá-las no título?

E os outros que não puderam aprender, que não tiveram um livro, um professor, uma escola, que não entraram nas estatísticas dos alfabetizados, como ficam nessa história?

Uma avó, a minha avó que nunca escreveu sequer uma carta para os filhos que emigraram, que nunca leu um jornal, um livro, a sua Bíblia para a qual olhava folha a folha, letra a letra até que satisfeita fechava-a e dava por findas as rezas da noite, em quê é que ela ficou inferior por não saber ler? Em quê é que ficou diminuída, se foi a pessoa com quem nós todos, os netos e as netas, aprendemos tudo que era possível aprender? Que interessa ela não ter aprendido a ler se era a pessoa com quem nós queríamos estar? Em quê ela ficou menor se as pessoas do lugar a procuravam para um aconselhamento, uma dúvida, uma ajuda? E se as histórias que ela nos contou ficaram gravadas como as viagens mais belas que fizemos, porque havia de se sentir frustrada por não ter escrito coisa nenhuma?

Sobre as pessoas que não têm filhos e são à luz do título recambiadas para “os não realizados”, como não achar o som desta frase absolutamente arrogante? Como não pensar nas pessoas que não podem ter filhos? E as outras que optaram por não os ter, como ficam nessa premissa? Será que por isso serão menos maravilhosas, menos amigas, menos gente, companheiras e confidentes que as outras? Como lhes retirar mérito porque não têm uma filha ou um filho? Porque essas pessoas terão que ser consideradas diminuídas e vistas como não realizadas?

É difícil encontrarmos pessoas que não tenham plantado uma árvore. Acho que todas as crianças em algum momento da sua vida, no mínimo, algumas em sonho, tentaram colocar uma semente na terra esperando que no dia seguinte desse folhas e frutos. Um pé de salsa transforma-se de dia para a noite numa árvore frondosa. Não é dramático não plantar árvores, embora toda a gente que consultei tenha falado no enorme orgulho e alegria que foi e tem sido participar nas sessões de plantação de árvores, em sessões de cidadania, pelo nosso país fora. Mas mesmo que por alguma razão não o tenham feito, onde está o fracasso?

Neste século moderno e desafiante, em grande parte injusto, é verdade, mas com tanta informação e oportunidade de partilha, se calhar é preciso haver mais cuidado com as respostas que vamos dando aos nossos jovens e com os conhecimentos que repetimos, para não se cair no ridículo e contaminar os outros.

A sociedade é formada por inúmeras e variadas componentes. É perigoso, se não desastrado, priorizar umas em relação a outras. O que será ser realizado?

Hoje queríamos prestar homenagem às pessoas solidárias e competentes que nos fazem parte do seu mundo e fazem este país acreditar que vamos ficar bem. Força profissionais da saúde.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 968 de 17 de Junho de 2020. 

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Autoria:Dina Salústio,22 jun 2020 7:38

Editado porSara Almeida  em  22 jun 2020 15:25

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