A nossa Constituição consagra no seu art.230º/1, que “A organização do Estado compreende a existência de autarquias locais”.
E logo no art.231º, diz o seguinte: “As autarquias locais são os municípios, podendo a lei estabelecer outras categorias autárquicas de grau superior ou inferior ao município”.
Repare como o legislador constitucional teve o requinte cuidado sobre a matéria do poder local a ponto de definir claramente as atribuições e organização das autarquias locais.
Diz ainda o art. 238º o seguinte: 1. “As atribuições e organização das autarquias, bem como a competência dos seus órgãos são reguladas por lei, com respeito pelo princípio da autonomia e da descentralização”.
2. “Os órgãos das autarquias podem delegar nas organizações comunitárias, tarefas administrativas, que não envolvam o exercício de poderes de autoridade”.
É sob a observância desse comando constitucional que apareceu o Estatuto dos Municípios, Lei nº 134/IV/95, que vai fazer 25 anos no próximo dia 03 de Julho.
Para suportar a minha opinião, transcrevo os artigos 9º e 10º do citado Estatuto.
Artigo 9º (descentralização), “O Município pode transferir para as fundações, associações de carater económico, social, cultural ou desportivo ou sociedades a prossecução de atribuições que lhe são próprias, sempre que se mostrar necessário para melhorar a eficácia e eficiência dos serviços públicos, salvo disposição legal expressa em contrario, reservando-se o direito de fiscalização e controle”.
Artigo 10º (Desconcentração), O município deve aproximar a administração das populações, organizando os serviços de maneira a que tenham capacidade de decisão a nível das freguesias, dos bairros, povoados e zonas.
A actividade administrativa pode ser prestada de duas formas, uma é a centralizada, pela qual o serviço é prestado pela administração direta, e a outra é a descentralizada, em que a prestação é deslocada para outras pessoas jurídicas.
Assim, a descentralização consiste na administração direta deslocar, distribuir ou transferir a prestação do serviço para a administração a indireta ou para o particular. Note-se que, a nova pessoa jurídica não ficará subordinada à administração direta, pois não há relação de hierarquia, mas esta manterá o controle e fiscalização sobre o serviço descentralizado. É o que estabelece o art. 9º do EM.
Já no que se refere à desconcentração é à distribuição do serviço dentro da mesma pessoa jurídica, no mesmo núcleo, razão pela qual será uma transferência com hierarquia, daí subordinada, disposição do art. 10º do EM.
A situação da crise que estamos a viver, resultante da pandemia da covid 19, chamou à minha atenção para a questão de regionalização a que se refere o art. 10º, já referido, pois constatei que se os municípios tivessem órgãos administrativos desconcentrados, isto é, mais próximos das populações, tudo seria mais fácil para resolver os candentes problemas sociais e económicos decorrentes da mesma situação. Por outro lado, evitaria tantas especulações e deficiências na aplicação das medidas adotadas por falta de conhecimentos reais das populações de determinadas zonas geográficas.
Isso para dizer que se efetivamente a filosofia e a vontade dos poderes públicos decorrem no sentido de aproximar a administração das populações, organizando os serviços de maneira a que tenham capacidade de decisão a nível das freguesias, dos bairros, povoados e zonas, urgente se torna a regionalização inframunicipal.
Repare que o dispositivo do art. 10º, do EM, é imperativo quando diz que o Município deve aproximar a administração das populações, no prossuposto de melhorar a eficácia e eficiência dos serviços públicos. Não obstante, decorridos quase 25 anos sobre a data da entrada em vigor da citada lei, nada se fez no que se refere a regionalização inframunicipal, consequentemente não se criou condições para aproximar a administração das populações.
Daí que é de imperiosa necessidade a regionalização inframunicipal, antes da supramunicipal, esta que para além de onerar com grandes custos o erário, possivelmente, será mais um job for de boys, sem quaisquer efeitos práticos para a vida das populações. Aliás, num encontro promovido pela Presidência da República sobre a regionalização teria dito a mesma coisa.
Uma outra questão que chamou à minha atenção é o estatuto especial da Cidade da Praia, consagrado na da Constituição da República, art. 10º, que diz: “1. A capital da República de Cabo Verde é a Cidade da Praia, na ilha de Santiago”.
2. “A Capital da República goza de estatuto administrativo especial, nos termos da lei.”
Esta pandemia da covid-19 vem demostrar o quanto é necessário e urgente adotar a Capital do País do seu estatuto especial. O tempo decorrido para aprovação da lei referida na Constituição, há mais de 20 anos, constitui, salvo opinião contrária, uma inconstitucionalidade por omissão. Pois, ocorre inconstitucionalidade por omissão quando deixam de ser praticados atos legislativos ou administrativos, exigidos pela Constituição, para permitir a plena aplicação da norma constitucional.
A falta da aprovação da lei do estatuto especial para a Cidade Capital do País, está a causar consequências gravosas para efetivação de direitos fundamentais, designadamente: o direito à saúde, à educação, à segurança, à habitação condigna, ao ambiente. Mas para que todos estes direitos sejam garantidos aos cidadãos desta acolhedora Cidade Capital de Cabo Verde, são necessários meios materiais e humanos que esta precisa, porque não os teem.
É inaceitável que se exige tudo desta Cidade Capital do País, sobretudo nos aspetos sociais e de segurança, sem dar nada a que tem o direito. Está-se outra vez a inverter as coisas, isto é, antes de pedir à Cidade da Praia o que ela tem para nos dar, devemos dizer o que nós temos para dar.
O que temos para dar à Cidade da Praia Capital do País é o seu Estatuto Especial.
Basta de divagações. Deve-se cumprir a Constituição da República.
O desafio está lançado. É um ato de cidadania.
Continua no próximo número.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.