A primeira pedra para a sua construção foi lançada a 10 de Março de 1874, tendo-se concluído a obra em 1878. Inicialmente, era só um rés-do-chão, constituído por quatro pavilhões, para venda de peixe, carne, verduras, etc. Em 1897, o mercado teve o seu primeiro telheiro. Durante os anos 1930-33, foi remodelado e ampliado, ganhando mais um piso, e a sua configuração actual. A 15 de Outubro 1980, já muito degradado, e considerado um perigo público, foi encerrado.
Cerca de 15 anos depois, reconstruído, o mercado foi inaugurado a 5 de Julho de 1994, tendo sido reaberto ao público no dia seguinte. Cóia d’ Djidjá, vendedeira decana do mercado, não tem as datas, do encerramento e da reabertura, na cabeça, mas sim na ponta da língua.
Entrei para o mercado pelas mãos da minha avó, Djidjá, a 18 de Abril de 1955. Sim, Djidjá era minha avó, e não minha mãe, contrariamente ao que todo o mundo pensa. Ela me criou, desde os meus 15 dias. Minha mãe emigrou para Angola, fiquei com cinco anos. Ela faleceu aí, com 28 anos de idade. Eu cresci no mercado, que sempre foi o meu local de trabalho. Não podia, pois, esquecer a tristeza do dia em que tive que o deixar, nem a alegria do dia do meu regresso. Por isso não preciso pensar. Ademais, os meus filhos dizem que tenho memória de elefante, diz Cóia.
O mercado foi praticamente todo demolido, do telhado ao piso, tendo escapado apenas a parte central do alçado principal (Norte) que dá para a Rua d’Lisboa. Manteve a traça original, mas tornou-se num edifício moderno, ganhou cobertura nova, do madeiramento às telhas, piso de mosaicos cerâmicos, azulejos nas paredes, painéis de azulejos decorativos, instalação eléctrica, equipamentos novos em inox, etc. Resumindo, um edifício moderno e funcional, limpo, local de visita obrigatória de turistas, e motivo de orgulho dos mindelenses.
Nos anos 60 e 70, pela sua centralidade, Plurin era, para além de local de compra e venda, o local ideal para o encontro de pessoas, desempenhando, durante os dias da semana, o papel que a Praça Nova desempenhava aos Domingos. Donas-de-casa, empregadas domésticas, comerciantes e negociantes das ilhas, negociantes da baía, “embarcadistas” de férias na terra (nesse tempo a gente não utilizava o termo “emigrante” – se bem que, embarcadista não fosse propriamente emigrante), tripulantes de navios em escala no porto, encontravam-se todos aí. Quem quisesse ver alguém, encontrar-se com alguém, ou, simplesmente, ser visto, ia a Plurin. Por isso, todos iam ao mercado sempre bem vestidos, quase como que indo a uma festa (e festa, ao tempo, não era a toda a hora). Eu ficava aí em cima, atrás da pedra, espiando as mulheres bonitas, esticando o pescocinho, para lhes ver os pés, quando se afastassem. Para mim, mulher bonita tinha que ter pés bonitos. Só cara bonita não bastava.
Estranhei, quando entrei para Plurin, com a minha mãe, em 1968, uma pedra (banca) diferente, no lado direito do corredor central, quase no centro do mercado, com uma armação de madeira, que se elevava em todo o seu perímetro, enfeitada com balões, sacos de plástico, e outros produtos para venda. O dono era um português baixinho, de óculos, com um estilo diferente de vendedor, muito conversador, para não dizer, barulhento, tipo Azeitona, da Casa Metrópole, embora ele não tivesse a voz de trovão deste. Mais um motivo de estranheza, é que chamavam ao homem de “Padre” Cunha. Padre a vender na Plurin?! Bem, na verdade, ele já não era padre. Fora padre. Luís Henrique da Cunha Júnior, de seu nome completo, como me contou “Tonéka kabêl brónk”, ou “Tonéka d’Padre Cunha”, seu filho, que vive em Lameirão. Natural de Leiria, Portugal, viera como sacerdote para São Miguel, em Santigo. Talvez não seguro dos votos, foi obrigado a deixar o sacerdócio. Também deixou um filho em Santiago, e se mudou para S. Vicente, onde se instalou como vendedor no mercado de verduras.
Anos mais tarde, em Portugal, vendo a actuação dos feirantes, compreendi o estilo diferente de vendedor de Padre Cunha. Ele era um autêntico feirante. Também compreendi o comportamento das “mandrongas”, esposas dos polícias e marujos, que moravam aí na Capitania Velha (réplica da Torre de Belém). As vendedeiras do mercado não as “quadravam”, porque elas regateavam, e comiam na rua. Gente fina, funcionárias e donas-de-casa, naturais e metropolitanas, não discutiam preço. Por isso, os produtos eram-lhes reservados e, em alguns casos, até mandados entregar a casa. Isso tornou-se tanto mais importante quanto, nos primeiros anos do pós-independência, faltava quase tudo, e havia bicha de tudo, inclusive bicha de “cirê”. Cirê é um produto feito de folhas de tabaco, torradas e moídas, e “trôse” de bananeira, seco, desfiado e pilado no pilão. Tudo misturado e temperado, com manteiga e outros ingredientes, era levado a cozer em lume brando, acrescentando-se-lhe um pouco de grogue, no final. É um tipo de masco que era usado essencialmente por mulheres da classe pobre – os suecos também usam cirê, que vendem em latinhas parecidas com as latas de graxa. A minha tia-avó por afinidade, Nha Rosa Cirê, de Funde d’Jonzóna, na Ribeira Bote, foi afamada produtora de cirê. Voltando atrás, comer na rua, nem eu o fazia, enquanto criança, quanto mais uma Senhora. Na verdade, coitadas das mandrongas, apenas voltavam para casa mordiscando uma pontinha de pão, que se iam furtando nos respectivos cestos de compras. Afinal, na terra delas, comer na rua era coisa banal. Mas, para nós, gente de terra pequena, isso era considerado “mal educão”, ainda mais para adulto, Senhora, ainda por cima. Quanto a regatear, nas feiras e mercados em Portugal, regatear era obrigatório. Quando fui para Santiago, em 1978, também estranhei que no mercado do Plateau se regateasse, e se vendesse aos montinhos, e não na balança, como no Plurin de Mindelo. O mercado do Plateau funcionava como uma autêntica bolsa de valores, com os preços a variar em função, da oferta que, por sua vez, variava em função das horas do dia, e dos dias da semana. Muitas vezes, nem era necessário regatear porque, à mínima hesitação da freguesa, a vendedeira se prontificava a acrescentar a devida “kompustura”. Nessas coisas de cultura, a nossa é sempre melhor do que a do outro.
As vendedeiras de Plurin mais antigas, de que me recordo, do tempo Padre Cunha eram, Djidjá, Minda, Nha Bia Rodrigues, Nha Biba, Nha Bebê Cabral, Nha Mari d’ Aninha (Mari Pritinha) Nha Ofema, Nha Antónia de Vis, que ficava pegada com a pedra de Padre Cunha, Cukinha (Bikuk), Nha Dade de Binice (pouco tempo depois emigrou para Portugal), Nha Mari Cristina, Nha Cnutcha, Nha Miria d’ Albotche, Nha Rosinha d’Auta, Nha Titina Mota, Nha Maria José, Nha Devinca, Laia (uma senhora sem filhos, da Bela Vista, viciada em cinema) e Nha Chica d’Nim, que ficavam pagada à pedra da minha mãe, Isabel Ludovina, a minha tia, Bia d’Ludovina, Nha Rosinha d’Tixóne (de Canalin de Ntone Djudjin), Nha Juninha d’Zita e sua irmã, Nha Páscoa. Homens, havia, em menor número. Para além de Padre Cunha, Nho Gustim, Nho Sabino, mais tarde Tatóxe (irmão de Nha Dede), Nho Firmino, Nho Jom, marido de Nha Cnutcha, e alguns outros, não muitos. Nho Firmino, Nho Ntône Cipriano (pai de Nha Bia d’Jon d’Lúcia, da Ribeira Bote), Nha Candinha d’Muxim Merkóne, (mãe de Mário Pop), Carlos de Diamantino, vendiam em lojas que ficam nas laterais do mercado. A loja de Nha Candinha depois passou a ser o talho de Jom Boi. Nho Sabino e Nho Gustin vendiam inicialmente nos espaços das lojas do 1º andar, mas com a desactivação deste, passaram para o rés-do-chão, ainda uns bons pares de anos antes do encerramento do mercado.
Esqueci-me do nome do Senhor que vendia mel, numa pedra que ficava logo à saída, do lado da Farmácia Nena. E não devia esquecer. Uma garrafa de mel, que ele tampara apertado, não lhe deixando espaço de “respiração”, explodiu, de manhã logo cedo, e um estilhaço quase me vazava o olho esquerdo. Felizmente, foram só uns pontos no sobrolho. Forçoso não esquecer o Sr Daniel, Nhela, que depois passou a vender em sociedade com a minha mãe. E eu podia continuar a comer sempre do melhor. Nada com “buquinha”, nada de “vóp”. Recordo-me de muito mais gente, mas seria fastidioso nomear todos.
Desse tempo, a vendedeira com maior longevidade no mercado, afora Cóia, foi Minda, Nh’Almerinda Cabral, que vendeu aí no mercado até aos 91 anos de idade. As duas fazem parte do rol restrito das vendedeiras antigas, que regressaram ao mercado, após a sua reconstrução. Minda podia ainda ter continuado por mais uns anos, não fosse os filhos a terem vencido na sua luta de resistência em deixar Plurin. Minda faleceu alguns anos atrás, ainda rija, vítima de um ataque cardíaco.
Logo à entrada, do lado Sul do mercado, que dá para a Câmara Municipal, como que a dar-nos as boas vindas, ficavam, do lado esquerdo, Nha Rita d’Salamansa, que vendia deliciosos bolinhos de mel, e do lado direito, lado a lado, Nha Djodja d’Bintim e Nha Chica e seu filho Nhela, que vendiam pão.
Na entrada Norte, pela Rua d’Lisboa, por baixo das escadas, havia duas lojinhas, onde trabalhavam a Dona Judite, e uma sua irmã, cujo nome não me ocorre. Se não me engano, as lojas pertenciam a Ti Bête (Sr Alberto Vasconcelos, da Escola de Condução Vasconcelos). A Dona Judite era uma jovem Senhora, bonita, com uma cabeleira farta, negra e luzidia, como as gordas uvas pretas do Fogo. A loja da irmã vendia rendas e souvenirs. A da Dona Judite era uma “Livraria”, que vendia, comprava e trocava, novos e usados, romances, caprichos, revistas de rendas e bordadas e livrinhos de banda desenhada. Era a mais concorrida.
Com a “Livraria” da Dona Judite, cedo adquiri o agradável gosto pela leitura. Quando não tinha tarefas, ocupava o meu tempo aí no mercado com leitura. Os livros de quadradinhos eram a perdição de muitos adolescentes, que se tornavam autênticos viciados. Nas aulas, metiam os livrinhos no meio dos cadernos e iam lendo, em vez de prestar atenção à explicação dos professores. Em casa faziam o mesmo, enquanto os pais pensavam que eles estudavam. Um pouco, como se faz hoje, com os telemóveis. A princípio, eu só lia livros de banda desenhada. Não conseguia entender, que prazer as pessoas podiam encontrar em grossos livros, que só tinha letras. Mas, aos poucos, comecei a ler uns livrinhos pequeninos, pequenos romances com 6 ilustrações, da colecção “Seis Balas”. Finalmente apreciador de romances, livros que só tinham letras, só lia banda desenhada como “digestivo”. Contrariamente aos “viciados”, a leitura desses livros deu-me vantagem na escola, pelo aumento do vocabulário, da expressão escrita, e da cultura geral. Ainda hoje, aprecio banda desenha.
Para além das vendedeiras (e vendedores, em número reduzido, como referido), dependiam do mercado, em maior ou menor grau, as carregadeiras, os meninos-pirata, os rapazinhos vendedores de sorvete, em malas térmicas redondas que levavam pelo braço, vendedores de porta, para venda ocasional de uma galinha, de um brinco, ou de qualquer outra coisa que se precisasse vender pontualmente, para suprir uma dificuldade. As crianças, incluindo eu, vendiam à porta produtos das pedras, para evitar prejuízos, quando havia abundância. Mas as vendas à porta do mercado eram proibidas; faziam-se às escondidas dos fiscais. O mercado era muito ordeado. Depois da independência é que as coisas baldaram. Havia uma Senhora grandona, que usava umas saias-avental, tipo jardineira, que vendia numas caixas de linha de renda, umas bonecas de pano, que ela mesma confeccionava, com os cabelos de linha, penteados em duas grossas tranças, como ela. Modernamente, a minha amiga Ana Sofia copiou-lhe o ofício, e chama de Sofanguças, Kriulinhas, Txutxukinhas, e outros nominhos bonitos, às suas bonequinhas de pano. Coisas de gente moderna, que sabe de marketing!
As carregadeiras faziam parte da logística de transporte do mercado. Faziam o transporte dos cachos de bananas, dos sacos, balaios e caixotes de mercadorias descarregados dos carros, à porta do mercado, directamente para a sua cabeça, e os transportavam para as pedras. Recebiam um valor X para cada unidade, dependendo do volume e do peso de cada. Mas também, iam buscar um saco de milho à SAGA, um saco de feijão, ou qualquer outra compra nas casas comerciais da cidade. Nessa altura, já havia um número razoável de jovitas na praça, mas ainda havia essa classe de trabalhadores. Para pequenas quantidades, era mais económico recorrer-se a uma carregadeira do que a uma jovita. Muitas casas comerciais, tinham a sua “frota” particular de carregadeiras que, para além de transportar as compras e de fazer entregas de pequenas quantidades, asseguravam o transfer das mercadorias importadas, das viaturas para arrumação nos armazéns. Aliás, por falar em “Jovita”, foram as carregadeiras que puseram o nome de uma delas à primeira carrinha de caixa aberta da praça, como nos conta Zizin Figueira, numa das suas deliciosas crónicas, em crioulo, no extinto jornal on-line “Liberal”. Jovita era uma jovem carregadeira, poderosa, muito empreendedora, que açambarcava para si uma grande quantidade de carga, no cais da Alfândega, fazendo uma concorrência agressiva às colegas do ofício. Quando um comerciante da praça, Ricardo Tristão, importou a primeira carrinha de caixa aberta, da marca Peugeot, para o transporte de mercadorias, as carregadeiras, revoltadas com o comerciante que lhes tirava o pão, por vingança, para além de lhe descomporem de nomes desagradáveis, lhe puseram à carrinha o nome da outra carregadeira “espiçada”, Jovita, nome que passou a identificar todas as carrinhas de caixa aberta, até aos dias de hoje.
As carregadeiras de Plurin eram, que me lembre, Rosa d’ Mã Cavala, Mari Grande, Cesarina, e Batcha. Batcha era homem. Coisa esquisita para esse tempo, homem carregar à cabeça, como mulher, em equipa de mulheres. Mas ninguém ligava. Na casa Siminhas também havia um carregador que carregava à cabeça: “Cmade Ónça”. Os homens carregavam era puxando zorra. Não me consigo lembrar de ter visto zorra. Se calhar, nos anos 60 já não existiam.
Batcha era branco, de cabelo fino escorrido, tipo Jesus. Tivesse tido trato, poderia passar por estrangeiro. Batcha fugiu à tradição de “o branco protege o mulato”. Não encontrou branco ou mulato da terra que o protegesse, e se tornou carregador, companheiro de mulheres, com trajeitos de mulher. Mas, aparentemente, só isso. Se calhar, era da convivência.
Rosa d’Mã Cavala era uma mulher preta, grandona, voz de trovão, que carregava sozinha um saco de 90 quilos, sem necessidade de parelha. Mari Grande tinha a estatura física de Rosa, mas era uma paz d’alma.
Não se pode falar da história de Plurin sem falar dos “meninos-pirata”, pesadelo das vendedeiras. Eles estavam para as vendedeiras, como os pardais e os corvos estavam para os lavradores, em tempos d’as-águas. Viviam, também, de “Txoká na Plurin”. Mas isso já é outra estória.
Mindelo, 16/07/2020
(Separata do post “Rua d’Lisboa, História & Estórias”)
Ref. bibliográfica: Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo.