Em relação a praticamente todas as questões suscitadas pelos deputados do PAICV, o Tribunal Constitucional não declarou as inconstitucionalidades alegadas pelos recorrentes. Apenas quanto ao segundo segmento do artigo III do SOFA - relativo à imunidade de jurisdição penal do pessoal dos Estados Unidos em missão no território de Cabo Verde – o Tribunal proferiu uma declaração de inconstitucionalidade “sem redução do texto”.
Na sua generalidade, os órgãos de comunicação social, privados e públicos, interpretaram tal declaração de inconstitucionalidade como rejeição da imunidade de jurisdição penal concedida à parte americana e consequente proibição de os EUA julgarem o seu pessoal militar ou conexo por crimes cometidos durante a sua permanência em missão no território nacional cabo-verdiano.
Com o mesmo entendimento, o PAICV congratulou-se com o Acórdão. E o ex-Primeiro Ministro dos Governos do PAICV, Dr. José Maria Neves igualmente o fez, realçando que durante oito anos havia bloqueado as negociações do SOFA precisamente por considerar inconstitucional a imunidade de jurisdição penal exigida pela parte americana.
Agências de notícias internacionais, bebendo na comunicação social cabo-verdiana e nos pronunciamentos referidos, espalharam pelo mundo a mesma versão. E, seguramente, fizeram soar campainhas em algumas chancelarias.
Exceção foi o jornal online O PAÌS, que desde o início noticiou o Acórdão como totalmente desfavorável às pretensões dos referidos deputados. Mais tarde justificou-se, alegando ter tirado a sua conclusão depois de analisar detidamente o Acórdão e de consultar vários juristas.
Depois veio o Governo também congratular-se com o Acórdão, frisando que não pôs em causa a vigência do SOFA nos precisos termos em que foi assinado e sem necessidade de qualquer alteração do seu texto.
Essa disparidade de apreciações do Acórdão causou alguma estupefação e confusão na sociedade cabo-verdiana, quer aqui, nas ilhas, quer também na grande e vibrante comunidade cabo-verdiana radicada nos Estados Unidos.
Quem tem razão? Quid júris? O que resulta efetivamente do Acórdão?
O objetivo deste artigo é ajudar a compreender o que, na realidade dos factos e do direito, foi decidido pelo Tribunal Constitucional, através de uma espécie de guião de interpretação do Acórdão, com enfoque especial na sua fundamentação expressa.
Vale, antes de mais, dizer que os acórdãos do Tribunal Constitucional têm sido geralmente bem fundamentados e constituem, seguramente, uma rica e consistente mais-valia na construção e consolidação do Estado de direito democrático em Cabo Verde, pela profundidade das suas análises e pela racionalidade e coerência sistémicas das suas decisões, quase sempre ancoradas numa interpretação correta, profunda e madura das normas, princípios e valores constitucionais. Na minha apreciação Cabo Verde está bem servido e deve orgulhar-se do seu Tribunal Constitucional, que tem honrado a nossa Constituição.
Isso aconteceu, seguramente, também no Acórdão sobre o SOFA.
Entrando no pretendido guião, considero que é essencial para responder às interrogações feitas atrás, não se ficar apenas pela mera leitura do resumo final das decisões tomadas. Torna-se necessário embrenharmo-nos na fundamentação dessas decisões. E estarmos atentos à especificidade técnico-jurídica de certos conceitos, em especial do conceito de “declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto” (negrito meu).
E, nesse quadro, quanto à questão da imunidade de jurisdição penal, ora em causa, o essencial está nos seguintes pontos da secção II das “Questões a responder pelo Tribunal” subsecção B, das “Questões de fundo”:
B.6 (pag. 38), onde o Tribunal refere que Cabo Verde teve SOFA com a NATO e tem com Espanha e Inglaterra, onde a imunidade de jurisdição penal foi concedida;
B.10 (pag 39), onde o Tribunal enfatiza que a ordem jurídica nacional (Código Penal e Código de Processo Penal) prevê a possibilidade de afastar a jurisdição penal nacional;
B.11 (idem) onde o Tribunal textualmente enfatiza: “O facto de CV celebrar acordos em que reconhece imunidades de jurisdição, não é nada de extraordinário, tendo em conta toda a evolução que aconteceu no mundo”;
B.13 (pag 40) onde o Tribunal alega que, da disposição do número 2 do artigo III do SOFA, “se nota que existe um interesse especial dos Estados Unidos em punir crimes e outros atos ilícitos do seu pessoal em Cabo Verde, pelo que daí decorre uma certa funcionalidade desse poder de jurisdição pessoal circunscrito ao seu pessoal”;
B.14 (idem) onde o Tribunal diz que “da disposição textual” da segunda parte ou segmento do nr. 2 do artigo III (em que Cabo Verde “autoriza os EUA a exercer jurisdição penal sobre o pessoal dos EUA durante a sua permanência no território da República de Cabo Verde”) “se podem colher duas interpretações distintas: a primeira e que tal autorização de jurisdição significa que os EUA poderão instalar em CV instituições judiciais do tipo marcial; a segunda é que estará excluída a possibilidade de se instalar no território nacional instituições do tipo”;
B.15 (pag 41) onde o Tribunal afirma que há“uma diminuição essencial dos poderes do soberano, designadamente do poder de julgar e do poder de executar o direito”quando o preceito em causa autoriza os EUA a exercer jurisdição penal em relação ao seu pessoal no território nacional “com o entendimento de que se pretende instalar instituições judiciais marciais no território cabo-verdiano”;
B.18 (idem) onde o Tribunal diz que “perante o entendimento de que o artigo sindicado permite necessariamente a presença no território nacional de instituições de justiça marciais dos Estados Unidos, afastando os ‘órgãos jurisdicionais de Cabo Verde do julgamento de determinadas questões fundamentais” considera que “se está perante uma violação do princípio da tipicidade dos órgãos de soberania”; e
B. 21 (pag.42), onde o Tribunal refere que o facto de autorizar, por acordo, os EUA jurisdição penal sobre o seu pessoal militar e conexo presente em missão no território de Cabo Verde “com o entendimento de que aquele país pode estabelecer instituições judiciais marciais” pode pôr em causa a organização judiciaria de Cabo Verde e o poder do Estado de julgar certos crimes que são praticados no seu território.
Em síntese, a argumentação do Acórdão que se deixa resumido mostra, sem equívoco, que:
a concessão por acordo de imunidade de jurisdição penal aos EUA sobre o seu pessoal militar ou conexo em missão no território cabo-verdiano, na sua essência, não é inconstitucional e nem sequer extraordinário;
mas no texto do número 2 do artigo III do SOFA essa imunidade é concedida, ‘e passível de dois entendimentos, sentidos e interpretações:
o preceito será inconstitucional se assumido com o entendimento de que inclui a permissão para a presença de tribunais marciais americanos em território nacional cabo-verdiano;
o preceito não será inconstitucional já se assumido com o entendimento de que tal presença não é permitida. Ambos os entendimentos são possíveis face ao texto do número 2 do artigo III do SOFA.
É exatamente esse o sentido da declaração de inconstitucionalidade “sem redução do texto”.
Trata-se de uma técnica de interpretação constitucional importada do direito alemão, muito usada pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil com base em lei expressa e que o Tribunal fez bem em utilizar neste caso, em ordem a estabelecer com segurança e razoabilidade os limites de segurança que se impõem em matéria tão sensível.
A expressão “sem redução do texto” significa que a declaração de inconstitucionalidade em causa não deve determinar qualquer alteração do texto do acordo, que se mantém em vigor nos seus precisos termos, salvo se, em concreto, lhe for dado o entendimento ou sentido expressamente declarado inconstitucional.
Participei nas negociações do SOFA em 2017, até à versão final assinada. E posso garantir que, em nenhum momento, esteve nas intenções e entendimento das partes cabo-verdiana e americana a ideia de os EUA poderem instalar tribunal marcial americano em território nacional cabo-verdiano para julgar pessoal militar ou conexo americano em missão nesse território. Tal nunca foi solicitado nem concedido. Portanto nunca vai acontecer! E assim, o SOFA, devidamente aprovado e ratificado está em vigor, plenamente, nos precisos termos em que foi assinado pelas partes.
Até porque não é materialmente necessário: os EUA não precisam de instalar tribunal marcial em Cabo Verde para julgar pessoal seu por crime aqui cometido enquanto em missão. A jurisdição penal concedida significa que os EUA podem julgar tal crime segundo as suas leis e pelos seus tribunais, no território americano. Por que razão iriam os EUA querer julgar esse pessoal em território de Cabo Verde?
Considero, pois, que a razão quanto ao alcance do Acórdão sobre o SOFA está do lado do jornal O PAÍS e do Governo, que tem razões para estar satisfeito com esse marco nas relações entre Cabo Verde e os EUA.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.