Comemora-se este ano o bicentenário da revolução liberal, que teve início no dia 24 de agosto de 1820, na cidade do Porto, com um levantamento militar e a leitura de uma proclamação a favor da liberdade e da monarquia constitucional. Dia 11 de setembro, assistiu-se em Lisboa a uma movimentação semelhante, mas já com maior apoio popular. No final do mês, os dois movimentos uniram-se e criaram a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino que tinha o encargo de realizar eleições e organizar as Cortes Constituintes. O objetivo era criar uma Constituição que retirasse ao Rei o poder absoluto e permitisse aos cidadãos participar nas decisões governativas.
O impacto desta revolução, na forma como hoje pensamos e como politicamente nos organizamos, justifica comemorar a data e revisitar as consequências e os acontecimentos ocorridos nas ilhas. Foi uma época de grande agitação política e de mudanças significativas na vida política e cultural e foi na sequência da vitória das forças liberais que, em Cabo Verde, se assistiu à implementação do ensino laico e da imprensa livre e à criação de bibliotecas e Clubes de Leitura.
Neste artigo tentarei fazer a súmula dos acontecimentos que historiadores e investigadores têm analisado a partir da documentação resgatada dos arquivos, mas para os que se interessam mais pela vida quotidiana, pelos sentimentos e preconceitos das pessoas comuns, aconselho a leitura de dois romances: O Senhor das Ilhas, de Isabel Barreno e O Escravo de José Evaristo d’Almeida. É que a literatura tem esta extraordinária capacidade de relatar acontecimentos que marcaram a história e de, simultaneamente, lhes dar vida.
A Revolução
A Revolução Liberal de 1820, como todas as grandes mudanças ideológicas, não nasceu do nada. Herança remota da Revolução Francesa e mais recente do golpe falhado de Gomes Freire de Andrade, de 1817, e da revolução liberal ocorrida em Espanha, cerca de meio ano antes, foi sobretudo alimentada pela grande insatisfação popular que se vivia em Portugal. De facto, em pouco mais de dez anos, Portugal foi devastado por três invasões francesas, perdeu o Rei e a sua corte, que se refugiaram no Brasil, e praticamente vivia sob protetorado inglês.
Também em Cabo Verde havia motivos para descontamento e revolta em quase todas as camadas da população. Os grandes proprietários vivam descontentes com as interferências do reino que limitavam os poderes políticos dos homens da governação e o comércio com o exterior. Os rendeiros e os trabalhadores rurais viviam desesperados, completamente desprotegidos e vítimas de todas as arbitrariedades perpretadas pelos morgados. Na base da pirâmide social estavam os escravos que sofriam toda a espécie de injustiças e maus-tratos.
Quando a notícia chegou ao arquipélago, em novembro de 1820[1], os senhores das ilhas mantiveram-se num sensato e distante silêncio em relação ao que se passava no reino. Não só a incerteza quanto ao rumo dos acontecimentos era grande, como pareciam estar mais mobilizados e divididos pelas suas inimizades e interesses locais do que pela lealdade ao Rei ou simpatia pelas ideias liberais.
[1] Antes de chegar ao conhecimento do Governador terá chegado primeiro ao conhecimento do grande proprietário e comerciante Manuel António Martins, que tinha embarcações próprias.
A adesão ao movimento liberal na Boavista
Do reino chegaram notícias de uma cada vez maior adesão popular ao movimento e começam a circular periódicos pró-constituição. Os ânimos e o debate político vão aquecendo e prepara-se o terreno para a adesão de Cabo Verde à revolução liberal, o que finalmente aconteceu em 22 de março de 1821. Foi na Boavista e coube ao comandante da ilha, João Cabral da Cunha Godolfim, proclamar o texto (ainda embrionário) da constituição e promover a criação da Junta Provisória do Conselho da Boavista. Tinha o apoio de seu sogro, o poderoso Manuel António Martins, pelo que não foi difícil conseguir a adesão das ilhas do Barlavento. Do outro lado, estava o Governador António Pusich que condena a iniciativa de Godolfim e que, por lealdade a D. João VI, afirma que só aceitaria jurar a futura constituição depois de esta ser aprovada pelo Rei. Na realidade, mais do que as ideias, eram velhos ódios e antagonismos que separavam Martins e Pusich.
A Constitução que os liberais prometiam, parecia ser a resposta para todos os problemas e anseios do povo das ilhas. Iria garantir aos cidadãos direitos e liberdades como a igualdade entre todos, a liberdade de dispor das suas propriedades, de falar e escrever sem censura prévia, a abolição da tortura, dos castigos corporais e da confiscação de bens, e o direito a voto para todos os varões que soubessem ler e escrever. A nação portuguesa continuaria a ser constituída pela união de todos os portugueses de ambos os hemisférios e todos seriam considerados cidadãos de pleno direitoincluindo filhos legítimos, ilegítimos, de pais desconhecidos e escravos que, entretanto, alcançassem a carta de alforria.
Esta promessa de plena cidadania para todos, embora progressista à época, deixava de fora a maior parte da população pois excluía as mulheres e os analfabetos, mas ainda assim, este revolucionário e utópico texto constitucional criou entre os habitantes das ilhas uma imensidade de expectativas, mais ou menos realistas, e até algumas confusões, como relata o Governador Chapuzet.
A adesão em S. Tiago
Depois da proclamação na Boavista, os habitantes de S. Tiago começam também a movimentar-se. Os ânimos iam sendo agitados pelos liberais e pelos proprietários e comerciantes descontentes com o governo de Pusich, sem esquecer a agitação provocada pelo referido grupo de degredados sentenciados por pertencerem à maçonaria. A 1 de maio o governador é forçado, pelo comandante militar Manuel Alexandre de Medina e Vasconcelos e pela vereação da Câmara, a aderir ao movimento liberal e é obrigado a ler, na igreja matriz, as Bases da Constituição que todas as autoridades da ilha juram defender. Excluído da então criada Junta Provisória do Governo da Capitania, Pusich embarca para a ilha do Maio e pouco tempo depois abandona definitivamente Cabo Verde.
Enquanto não chegava o novo Governador, a Junta tentava implementar algumas reformas no que respeitava à reorganização dos serviços públicos e ao comércio da urzela, que sendo o principal rendimento das ilhas não entrava na receita, pois era património exclusivo dos monarcas desde D. João IV. Assim, e porque ficava no reino a maior parte dos lucros com a venda da urzela, não havia como pagar as despesas ordinárias nem responder a necessidades urgentes do arquipélago, como por exemplo a vinda de um batalhão de tropa regular para manter a ordem e defender a população do ataque de piratas, a construção de edifícios públicos ou até a simples contratação de um médico.
Estava também por resolver, o problema que muitos consideravam ser a principal causa para o atraso e decadência da atividade agrícola em Cabo Verde: o sistema de arrendamento que deixava o rendeiro inteiramente nas mãos dos senhores. Queixavam-se os rendeiros que não valia a pena fazerem melhoramentos nos terrenos nem introduzirem novos produtos mais lucrativos, pois o rendeiro que melhorar o terreno e nele estabelecer cultura de rendimento duradoiro mais avultado, pode ter a certeza de que o proprietário, no fim do ano, só consentirá em renovar o arrendamento mediante tão subida da renda, que será ele só quem há de colher utilidade dos benefícios realizados.(apud Silva,1995:98)
Não foi por isso surpreendente a insurreição de rendeiros, em janeiro de 1822, que teve como causa direta a decisão do morgado dos Mosquitos de Santa Maria - de que fazia parte a fazenda de Ribeira dos Engenhos - de expulsar os rendeiros com atrasos no pagamento das rendas. Bem organizados, mais de vinte rendeiros armados impediram a expulsão dos incumpridores, bem como a entrada do próprio morgado, o coronel Domingos Santos Monteiro, na suas propriedades. Os rendeiros queixavam-se da violência e vexames a que eram submetidos nos momentos de cobrança e recusavam-se a pagar as rendas pois diziam que a Consituição tinha abolido os vínculos. Estavam enganados, pois os vínculos não tinham sido abolidos, e ambas as partes apresentaram queixa à Junta Governativa que chegou a pronunciar-se sobre a necessidade de se tabelarem as rendas. Mas a revolta não podia passar impune nem transformar-me em aceso rastilho. O caso foi entregue ao ouvidor que abriu um processo. Identificados, os responsáveis foram presos.
Vivem-se tempos conturbados
Entretanto o rei D. João VI tinha regressado a Portugal em julho de 1821 e prometido jurar a Constituição que viesse a ser aprovada pelas Constituintes. Nessa altura, e por total falta de meios, ainda não se tinha realizado, nas ilhas, o ato eleitoral para eleger os dois deputados, que iriam representar, nas Cortes, as ilhas de Cabo Verde e a Guiné. Só cerca de meio ano depois, em março de 1822, chega a Portugal o deputado, José Lourenço da Silva. O deputado Manuel António Martins só chegará em julho desse ano e parece não ter tido um papel relevante nas Cortes, ao contrário do seu colega que de acordo com Maria de Lurdes Caldas, na sessão de 27 de março, foi contundente, direto e pragmático (…) apresentou um curto diagnóstico dos males de que padecia o arquipélago, passando depois a apresentar ao Congresso algumas exigências que deveriam ser apresentadas ao Governo, para pelo menos o executivo se informar, uma vez que, antes de legislar, havia que conhecer o objeto acerca do qual se legislava. (Caldas, II; 122-23).
O rei assina a constituição em 1 de outubro de 1822, mas em Portugal e em Cabo Verde continuam a viver-se tempos conturbados. Quando o governador Chapuzet chega à Praia, em 10 de fevereiro de 1823, encontra um clima social de grande tensão de que dá conta na primeira carta que escreve ao governo, doze dias depois.
O enorme descontentamento com a metrópole e as aspirações e expectativas criadas pela revolução liberal que continuavam por satisfazer, abriram caminho ao aparecimento de ideias separatistas e ao projeto de união com o Brasil. Se, por um lado, a pobreza das ilhas impedia sonhos nacionalistas e independentistas, por outro, a independência do Brasil, em 1822, fez surgir o sonho de ligação a um outro estado em condições de igualdade, sem submissão ou exploração. Segundo Barcelos, este movimento era apoiado por insignificantes moradores da ilha de S. Tiago, que deram alguns passos para isso, chamando o povo às armas, e como os principais da ilha não anuíssem também o povo não anuiu (Barcelos,II:249). Os cabecilhas do movimento foram entretanto presos e deportados para as ilhas do Fogo e Brava.
Mas Chapuzet não teve apenas de enfrentar esta grande turbulência política, teve também de enfrentar uma crise de fome (1824-26) e porque os cofres estavam vazios e do reino não vinha auxílio, decidiu que, para fazer frente à crise, iria utilizar os rendimentos da venda da urzela que, relembro, pertenciam à coroa. De acordo com Sena Barcelos, no momento em que assinava a autorização para esse efeito, teria declarado que estava a assinar o decreto de sua demissão. O que de facto aconteceu.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 978 de 26 de Agosto de 2020.