Podia citar alguns dos mais proeminentes descendentes da família Medina e Vasconcelos e que cargos exerceram?
Bom, o elenco é grande e, claro, vou esquecer-me de imensos. Alguns de que me recordo são, por exemplo, os dois últimos presidentes da República de Cabo Verde – Pedro Verona Pires e Jorge Carlos Fonseca –; dois ministros das Colónias da I República – José Barbosa e Carlos Eugénio de Vasconcelos –; Leão Tavares Rosado do Sacramento Monteiro, governador de Cabo Verde e secretário de Estado; o embaixador José Nozolini Pinto Osório da Silva Leão; Henrique de Medina Carreira, ministro das Finanças e presidente do Conselho Nacional do Plano; Fernando Faria de Oliveira, ministro e presidente da Caixa Geral de Depósitos; Álvaro Duque da Fonseca, figura da resistência ao Estado Novo. Deixando a esfera política, temos Joaquim Vieira Botelho da Costa e António de Paula Brito, autores de estudos acerca do Crioulo de Cabo Verde, que se corresponderam com notabilidades nacionais e internacionais na área dos estudos dialectológicos; Rodrigo de Sá Nogueira, filólogo de renome e catedrático de Letras (quantos de nós estudaram pelo seu Dicionário de Verbos Portugueses Conjugados?); os historiadores António Carreira e João Medina; o pedologista Joaquim Vieira Botelho da Costa; Mário Monteiro de Macedo, chefe da Repartição dos Correios e Telégrafos do Ministério das Colónias, que representou o País em tantos eventos científicos internacionais; D. Tomás Barbosa da Silva Nunes, bispo auxiliar de Lisboa; José Avelino de Pina Delgado, juiz conselheiro do Tribunal Constitucional de Cabo Verde; Daniel Medina, presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras; Viriato Pereira de Macedo, senador de Massachusetts. A esta lista pode juntar, para além dos poetas que enumerei, o dramaturgo Aníbal Avelino Henriques, o escritor (e médico) Henrique Teixeira de Sousa, os igualmente médicos César e Dinis Gomes Barbosa, Miguel e Maria Elisa do Sacramento Monteiro, Américo Dinis da Gama. Como vê por esta breve síntese, não é difícil encontrar membros da família que se tenham destacado nos mais variados domínios. Disse há pouco que Bissau e Bolama foram um empreendimento familiar. E que dizer da República em Cabo Verde? Não foi ela “implantada” pelos Medina e Vasconcelos, sobretudo pelos Monteiro de Macedo e pelos José Barbosa, todos primos de um dos homens do 31 de Janeiro de 1891? Não foi José Barbosa uma das grandes figuras da Primeira República Portuguesa, um dos seus principais publicistas e jornalistas? E que dizer de Abílio Monteiro de Macedo, figura controversa a vários títulos, mas a quem, indiscutivelmente, o município da Praia muito deve, tal como a história da imprensa no arquipélago? Um dos dois primeiros deputados por Cabo Verde às Cortes foi um elemento da família – José Lourenço da Silva –, a que se seguiram outros. E recordo-me igualmente de algumas mulheres, numa época em que a proeminência feminina não era propriamente estimulada: Ana Júlia Botelho da Costa de Macedo, artista plástica numa ilha sem essa tradição, que tinha um atelier de pintura em casa; Margarida de Macedo Salazar Carreira, atleta, recordista ibérica, primeira mulher portuguesa a filiar-se num clube desportivo; e uma figura notável da ilha do Fogo – Irene de Vasconcelos Barbosa Vicente –, que não ficou confinada ao reduto doméstico e, autodidacta, chegou a professora do ensino secundário, numa altura, em que não era qualquer um que podia sê-lo.
Afirmou numa entrevista que estudar a família Medina e Vasconcelos é inevitavelmente estudar Cabo Verde. Como assim?
Para além da história da família, os livros tratam, como disse, a história de Cabo Verde e da Guiné. Uma vez que, sem os contextos, dificilmente alcançamos o sentido das acções, dei especial relevo ao enquadramento social, político e judicial dos diferentes palcos em que se movia a família. O contexto demográfico e económico que enquadrava as relações sociais, as dinâmicas geradas pela rede alargada da parentela, o compadrio, o caciquismo, os efeitos da concentração dos cargos e do poder, tudo procurei ter em conta. Naturalmente que, fazendo então Cabo Verde parte de Portugal, os acontecimentos que se iam desenrolando no Reino, sobretudo os acontecimentos políticos, não podiam deixar de ter impacto nestes espaços ultramarinos. Como sabe, foi uma época de grandes convulsões – a Revolução Liberal, a Guerra Civil, com o seu cortejo de degredados e deportados, alguns dos quais enviados para as ilhas. Período igualmente intenso, provavelmente só o que se seguiu à mudança do regime monárquico para o republicano. Na Praia, viveu-se tão acaloradamente o fim do Antigo Regime e sobretudo as lutas entre facções liberais, que o governador Joaquim Pereira Marinho dizia que deixara Lisboa por estar cansado destas pelejas, mas que, afinal, as encontrara mais acesas nas ilhas do que no Terreiro do Paço. Acabou por não ser difícil articular o quotidiano familiar com a escala maior da história do arquipélago e de Portugal, uma vez que muitos membros da família estiveram envolvidos, frequentemente com grande protagonismo, em todos estes acontecimentos. Ao contrário do que se pensa, a família esteve pouco confinada à ilha do Fogo. Desde muito cedo vários dos seus elementos fixaram residência na ilha de Maio e na Praia e, mais tarde, noutras ilhas. E não só os militares da família e respectivas mulheres e filhos. A partir do último quartel do século XIX, grande parte do médio e do alto funcionalismo da capital da Província é ou Medina e Vasconcelos ou Vieira de Vasconcelos. Na Guiné, então, podemos mesmo falar em monopólio da administração pública por parte dos Medina e Vasconcelos e ramos aparentados. Mesmo o cargo de governador – que já tinha sido várias vezes ocupado por homens da família, mas, geralmente, a título interino –, com a nomeação de Francisco de Paula Gomes Barbosa, acabou por ficar na família. É uma altura em que também se assiste à migração de vários núcleos familiares para a Europa, onde a descendência frequenta a universidade, segue a carreira das Armas e vai integrando, pela rede de sociabilidade, os estratos sociais superiores do Reino. Henrique Vieira de Vasconcelos será o exemplo mais acabado desta projecção: advogado e escritor decadentista, retratado pelo amigo Columbano, era presença assídua em quase todos os salões monárquicos lisboetas. Já depois de 1910, vê-lo-emos deputado por Cabo Verde pelo Partido Democrático, diplomata e director-geral. Claro que, à semelhança do que acontece com qualquer história – familiar, local, nacional continental ou global – nesta obra, o peso dos tradicionalmente silenciados – as mulheres, os escravos e as crianças – é muito menor. Acredite que, à excepção dos registos paroquiais de baptismo e óbito, terei encontrado, em toda a documentação compulsada, meia-dúzia de referências a crianças da família? E digo meia-dúzia é temendo pecar por excesso. Lá mais para o fim do século, começarão a emergir, sobretudo nos registos escolares. Nesta altura, contudo, os escravos, essencialmente por via da importância da sua força de trabalho, acabam por marcar mais presença na documentação do que as crianças das elites. Encontramo-los nos cadastros oficiais, quando protagonizam ou são suspeitos de protagonizar actos de rebelião, quando são alvo de disputa nas heranças, ou, menos frequentemente, quando as relações com os seus proprietários extravasavam a mera funcionalidade. Quanto às mulheres, é igualmente difícil encontrá-las. Não era só a moral da época, mormente a moral sexual, que as circunscrevia ao espaço doméstico; eram igualmente os imperativos da gestação, do parto, do pós-parto, do cuidar da vasta prole. Se enviuvavam precocemente, interrompia-se a sequência de gravidezes; mas, se se voltavam a casar – e os segundos e terceiros casamentos eram muitíssimo frequentes – regressava o confinamento aos umbrais da casa. A vida que se observa, escuta e sente nos documentos é essencialmente a vida adulta, a vida dos que têm estatuto livre e a vida masculina. Aliás, mesmo os homens da família estão desigualmente presentes nesta história. E não apenas pela estratificação económica que se observava no interior do grupo (frequentemente acentuada) e que condicionou muitas vezes o futuro da descendência. Há nomes e/ou ramos que fazem uma aparição regular na documentação coeva e muitos outros que surgem muito mais pontualmente. Claro que os primeiros ocupam necessariamente mais espaço nos três volumes do que os segundos. Entre eles, destacam-se os que desempenham cargos na administração municipal, os que seguiram a carreira militar, os mais envolvidos nas funções de intermediação com o exterior, os que aparecem nas recepções aos governadores, nas quermesses e outros eventos de benemerência, nas listas dos principais contribuintes, em questões ligadas à sua actividade comercial ou nos processos judiciais.
Afirma que a ilha do Fogo é uma sociedade muito característica, diferente das outras. Em que aspectos?
O que digo é que me parece – e não só a mim – que o Fogo apresenta alguns traços de insularidade sociológica. O que, aliás, não será surpreendente, desde logo pelas características diferenciais do povoamento do que António Correia e Silva chamou o «sub-arquipélago do Sul». Como se mantém actualizada a interpretação dada por João Lopes a algumas diversidades insulares! Claro que teremos de acrescentar-lhe alguns outros dados – mais “imateriais” – para além dos relacionados com o regime de propriedade e com o sistema de exploração do solo. É um facto que a ilha do Fogo se apresentou até tarde como a mais mestiçada das ilhas, mas a que possuía, simultaneamente, das menos mestiças das suas elites. Ou seja, uma ilha em que um considerável número de brancos (categoria pelo menos tão sociológica como fenotípica) autóctones contrariou esse processo pan-miscigénico e onde, por isso, as estruturas de dominação se apresentaram racializadas até muito tarde. Agora, constituiu o Fogo um fenómeno sócio-cultural à parte no contexto do arquipélago? Apesar de tudo indiciar que sim, creio que só poderemos responder a esta questão depois de se efectuarem estudos aprofundados à sócio-história das outras ilhas do arquipélago, na senda do que fiz há uns anos para o Fogo e do que, em certa medida, Deirdre Meintel fez para a Brava. Terão de ser trabalhos com uma forte consistência empírica, que fujam de tentações generalistas, sob pena de tombarmos no vazio dos discursos panfletários que vão intoxicando não apenas a comunicação social como a Academia.
Como analisa a apetência dos nossos historiadores pelo nosso substrato africano? É uma visão redutora?
A questão dos substratos tem muito que se lhe diga. Desde logo temos de definir de que substrato estamos a falar. Cultural? Genético? Substrato africano todos temos, felizmente, porque senão talvez andássemos ainda a quatro, como os nossos tão próximos parentes primatas, e não tivéssemos libertado as mãos e o olhar para produzirmos as coisas maravilhosas (e outras menos maravilhosas) que vimos produzindo. No caso cabo-verdiano, tal como no brasileiro, no caribenho e no de outras sociedades nascidas da expansão europeia de Quinhentos, a cor da pele, o grau de abertura nasal, a espessura do cabelo e o volume dos lábios não constituem, por si só, indicadores de maior ou menor ancestralidade europeia ou africana. O grau de miscigenação é tão elevado que é impossível, a partir desses indicadores, determinar a dimensão de cada um dos “substratos”. Mesmo nas populações que não resultaram desse processo miscigénico intensivo não é fácil estabelecer com precisão a sua cartografia genética, uma vez que o movimento das populações e os contactos ao longo dos últimos milhares de anos foram muito superiores ao que por vezes pensamos. Isto no que diz respeito ao substrato genético. Quanto ao cultural, a matriz é dupla. É claro que tendo havido contacto e inter-relação, registaram-se os dois movimentos – os europeus africanizaram-se e os africanos europeizaram-se; a questão é, pois, essencialmente de grau. Sendo as elites europeias ou de cultura europeia, e sendo europeia a cultura do prestígio e do poder, qual lhe parece que teria sido o sentido predominante do movimento: em direcção a África ou em direcção à Europa? Identifica-se uma grande homogeneidade cultural em todo o espaço arquipelágico ou evidenciam-se diferentes ponderações da África e da Europa consoante as ilhas?, e, dentro da mesma ilha, entre o seu interior e os seus aglomerados urbanos principais?, e, no interior de cada agregado urbano, entre os diferentes estratos sócio-económico-educacionais? Não sei, não conheço suficientemente a realidade cabo-verdiana. O facto de o país ser insular propicia uma certa heterogeneidade? Talvez. As características históricas da implantação demográfica em cada uma das ilhas reforçam essa heterogeneidade? Talvez. Há, contudo, dados novos a ter em consideração, como sejam o peso da globalização mediática e da diáspora, eventualmente atenuadores dessa diversidade. Agora, entender, por exemplo, a produção literária cabo-verdiana, os desempenhos de tantos nacionais do país, alguns dos quais enumerei há pouco, à luz da sua herança cultural africana parece-me, no mínimo, forçado. Mas como o que está geralmente presente nestas disputas identitárias é mais a agenda política do que a análise de propostas que apresentem um mínimo de conformidade com a realidade…
O romance Ilhéu de Contenda chegou ao cinema pela mão do realizar cabo-verdiano Leão Lopes. Podia conceber a realização de um filme ou de uma série televisiva sobre os Medina e Vasconcelos? Há ingredientes suficientes?
Não conheço Leão Lopes, mas vi a sua longa-metragem. Ele intuiu muito bem o potencial fílmico do romance de Teixeira de Sousa. O Fogo proporciona um manancial inesgotável para a produção artística: tem o vulcão – aliás, a ilha é um vulcão –, tem a humanidade improvável da Chã, tem a cidade em anfiteatro sobre o mar, tem um longo historial de relações de poder marcadamente racializadas (desde que se entenda a raça numa perspectiva integrada),tem o que considero um dos principais “monumentos” da cidade, o Cemitério de Baixo. Só aquele cemitério, no extremo da falésia, apenas com o mar e a Brava em frente, é um universo diegético. Já para não falar da campa solitária extra-muros, aguardando apenas a atenção de um cineasta. Imagine um flash-back inicial a partir desta campa… Agora, o cinema é uma arte rica, dispendiosa, pressupõe um grande investimento, e Cabo Verde é um país pobre do ponto de vista material. Imagine que o país conseguia despertar a atenção de uma produtora estrangeira que dispusesse dos meios necessários para montar uma série de episódios baseados na riquíssima história social da ilha do Fogo! Imagine igualmente que essa série tinha uma adequada supervisão histórica – imprescindível, para se evitarem os costumeiros anacronismos e enviesamentos –, actores de qualidade e um argumento de envergadura! Não consigo conceber mais rica matéria-prima para uma série televisiva. Mostrar ao mundo a vida intensa e febrilhante que uma minúscula cidade periférica pôde conter exporia, mais uma vez, a fragilidade das hierarquizações do global e do local.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 952 de 25 de Fevereiro de 2020.