In Memoriam de Margaret L. Wood (Arkansas, 1.10.1928 – Pawtucket, Rhode Island, 13.09.2020), Missionária da Igreja do Nazareno em Cabo Verde (1953-1974)
Clifford Geertz, considerado por três décadas como o antropólogo mais influente dos Estados Unidos, falecido em 2006, propõe, para o estudo da religião, uma abordagem simbolista, na qual os símbolos estabelecem a harmonia na vida e nas relações pessoais e precisam de ser contextualizados. Nesta visão, a religião precisa de ser entendida no seu contexto histórico-cultural; é, pois, necessário compreender-se a história da sociedade para se entender os seus desdobramentos culturais, sociais, políticos e outros.
É assim que, no meu entender, uma visão antropológica da Igreja do Nazareno terá, obrigatoriamente, que ter uma abordagem holística e contextualizada, sendo dificilmente entendida isolada do desenvolvimento social, económico ou, mesmo, político de Cabo Verde, pelo menos, nos últimos cento e vinte anos – da Monarquia à República, do Estado Novo à Independência Nacional, até chegar aos nossos dias.
Igreja, um lugar de memória e de identidade
Émile Durkheim (1858-1917), um dos pais da Sociologia moderna, tem uma definição de religião que difere, em muito, da do seu colega Max Weber (1864-1920). Enquanto este último considera a religião como uma espécie de empresa de salvação das almas, Durkheim sublinha, justamente, o seu elemento de solidariedade. Portanto, pode-se dizer que a religião vincula os indivíduos no interior de uma igreja e, na decorrência, um lugar de memória e de identidade.
Sobre o conceito de identidade, ao congregar as pessoas, a religião fornece-lhes um referente comum, através do qual a identidade do grupo se pode exprimir. Já o conceito de memória refere-se à celebração das lembranças, aproximando os indivíduos antes dispersos, pelas suas memórias comuns. Daí o conceito de memória colectiva.
É, também, ponto assente para inúmeros autores que a identidade não é estática, mas sim um processo de construção permanente, pelo que tende a transformar-se drasticamente com o processo da globalização.
A emergência do Estado moderno, secularizado (ou seja, não vinculado a qualquer igreja), levou vários autores a considerar o estado como associado à “coisa pública” e a religião ao “domínio do privado”. É assim que, na literatura sociológica, a relação religião e política têm sido pensadas como antitéticas – ou seja, que encerram oposição ou contraste – e isso tem sido um tema recorrente no debate sobre as religiões.
No caso de Cabo Verde, as igrejas e as universidades não estimulam a aproximação entre o público e o privado e não despertam nos estudantes a curiosidade para o tema, continuando a existir, como consequência, o pensamento dicotómico de que a ciência e a religião se opõem, não se cruzam, não se coadunam.
A Igreja do Nazareno, como uma igreja protestante, interpreta o mundo de uma determinada maneira, diferente da Católica, maioritária no país. Por isso, veio a fundar uma ética específica, bem como uma conduta ajustada a um conjunto de valores previamente prescritos. A ética protestante – melhor, das igrejas evangélicas – deverá significar, portanto, uma acção interventiva, já que representa valores diferentes dos existentes na sociedade cabo-verdiana, predominantemente católica.
Igreja do Nazareno, uma visão histórica
Tomando como parâmetro a cultura nacional e adoptando uma visão diacrónica (ou seja, através do tempo), considera-se existir, na História da Igreja do Nazareno de Cabo Verde, três períodos marcantes: (1) o dos Pioneiros (1908-1956); (2) o dos Missionários (1936-1991) e (3) o dos Nacionais (1991- até hoje).
Período dos Pioneiros (1908-1956)
A Igreja do Nazareno, fundada por “filhos da terra” sob a liderança do Rev. João José Dias (1873-1964), natural da ilha Brava, enraizou-se progressivamente na realidade das ilhas. Nas actividades desta Igreja, foi valorizada a língua da terra em detrimento da língua oficial, mesmo porque a escolaridade em Português de João José Dias e da maior parte dos crentes era fraca. Foi assim que se deu início à experiência da tradução da Bíblia para o crioulo e se publicou, com o apoio da Sociedade Bíblica da Escócia, Pàdás de Scrituras na Criôlo de Djà Braba (1936), uma tradução do Salmo 23, Eclesiásticos 7, Evangelho Segundo São João 3 e 4 e Apocalipse 1:1-6.
Outra experiência digna de nota foi a adopção de ritmos da terra nos cantos religiosos, quer da autoria de Eugénio Tavares, como “Para o Céu” e “Ergo os Olhos”, em 1920, quer de João José Nunes, “Entrai irmãos” e “O Céu em Luz Fulgindo”. Todos esses hinos são ainda hoje tocados e cantados nas igrejas dos E.U.A. pelos crentes da emigração cabo-verdiana.
Nesse período, a religião católica estava implantada e era reconhecida pelo Estado Português como a Igreja oficial. Por isso, a introdução de uma igreja protestante em Cabo Verde veio desestabilizar o status quo e provocar uma reacção social e política sobre ela. Em resposta, a Igreja de Ponta Achada, ou do Nhô Djon Dias, na Brava, reagiu ousadamente, confrontando e desafiando os seus opositores, defendendo a sua existência. Esta luta resultou em perseguições e agressões físicas e morais, destacando-se os pastores pioneiros António Gomes de Jesus, Ilídio Santa Rita Silva, Francisco Xavier Ferreira, Luciano Gomes de Barros, José Neves Caldeira Marques, José Maria Correia e Álvaro Barbosa Andrade.
Período dos Missionários (1936-1991)
Em 1936, chegou a Cabo Verde o primeiro missionário americano, o Rev. Everet Howard, que rompeu com as experiências e as práticas introduzidas pelo Rev. João José Dias. Isto terá estado na origem, em São Vicente, de uma cisão, que resultou no surgimento da Igreja de Manuel Ramos, de denominação Baptista.
A mesma linha de actuação foi seguida pelos missionários subsequentes – Rev. Samuel Clifford e Charlotte Gay, em 1939; Rev. Earl e Gladys Mosteller, em 1946; Rev. Ernest e Jessie Eades, em 1948; Enfermeira Lydia Wilke, em 1949; Rev. J. Elton e Margaret Wood, em 1953; Rev. Roy Malcolm e Glória Henck, em 1958; Rev. Paul e Nettie Stroud, em 1969; Rev. Duane e Lidia Srader, em 1973; e Rev. Philippe e Paula Troutman, em 1991.
Fica, portanto, patente que houve um corte com o período pioneiro e, por consequência, o papel e a importância da obra do Rev. João José Dias foram votados ao esquecimento.
A cultura geral da Igreja do Nazareno, baseada na Bíblia e sistematizada no seu Manual, trazida pelos missionários americanos e europeus, “impôs” um determinado tipo de culto e de regras fixas, mas desligou-se da realidade social e política, ignorando-a, também como estratégia de sobrevivência, não só enquanto estrangeiros, mas também face à igreja maioritária e ao regime político vigente em Cabo Verde.
Nesse período, a Igreja modernizou-se, estabeleceu-se nos meios urbanos e elitizou-se, seguindo o modelo de proveniência de cada missionário, ou seja, dos E.U.A. e do Reino Unido, o que, para além de tudo o mais, era patente nos trajes de fato e gravata, apesar do clima quente.
Pode, pois, classificar-se este período como de adequação ou acomodação à situação política vigente ou do politicamente correcto.
Considera-se que o final desse período, a partir de 1975, é já uma fase de transição para o período seguinte, em que a Igreja do Nazareno em Cabo Verde passa a usufruir do estatuto de Distrito-Missão, com a nomeação de um Superintendente Distrital cabo-verdiano e de um missionário americano como Director da Missão, até chegar à situação actual de Distrito Regular, de plena autonomia, sem a tutela de missionários. Mas isto é já o período seguinte.
Período dos Nacionais (1991- até hoje)
Ao reinventar as suas tradições e ao enraizar-se de novo na cultura e na sociedade cabo-verdianas, abrindo-se e apropriando-se de outras tradições, a Igreja do Nazareno de Cabo Verde parece estar a “voltar à fonte”, ou seja, à sua fase pioneira.
A Igreja do Nazareno de hoje dá sinais de estar a renascer para a realidade cultural e social do País. Refiro-me, por exemplo, à retoma da experiência de tradução da Bíblia para o crioulo, com Lúkas – Notísia Sabi di Jisuz, em 2004; à dobragem de um filme sobre Jesus, nas variantes de Santiago, em 2010, e de São Vicente, em 2011; aos ritmos musicais adoptados no culto (morna, coladeira, funaná e batuque) como suporte das letras dos coros cantados na Igreja. De referir, ainda, a influência da música gospel americana e da bossa nova brasileira nos cânticos.
Avalia-se este período como um regresso aos primórdios. Existem, contudo, aspectos a salvaguardar na expressão da identidade desta Igreja, que não devem ser negociados, sob o perigo dela perder a sua matriz inicial identitária e a sua razão de ser: os valores bíblicos, a cultura da organização, a inserção na sociedade com a dualidade étnica e cultural, o convívio entre a tradição e a modernidade, apenas para referir alguns.
Igreja do Nazareno de São Vicente
Há uma longa caminhada a efectuar, mas é andando que se faz o caminho.
Os desafios a Igreja do Nazareno hoje
A sociedade cabo-verdiana vive hoje um elevado grau de anomia social – isto é, de desvios face às normas sociais – caracterizada por violação dos direitos humanos básicos, pela busca desenfreada pelo consumismo, pela criminalidade, pelo aumento do uso e do tráfico de drogas, pela prostituição infantil e juvenil, pela presença de crianças de rua, pela concentração das oportunidades na ilha de Santiago (sufocando o desenvolvimento de outras ilhas), pela falta de emprego dos jovens que terminam o ensino superior, pela imigração oriunda da costa africana, trazendo outros valores e culturas – de que o islamismo é um exemplo – entre outros.
Se a Igreja do Nazareno se quer projectar para os desafios actuais e futuros da sociedade cabo-verdiana, sob o risco de ficar por um enunciado de boas intenções, é imperioso
entender o passado: (1) como foi a sua relação com o poder político nos períodos anteriormente referidos – governo colonial, governo do PAIGC/CV, governo do MpD; (2) se a igreja cresceu, evoluiu ou involuiu nas ilhas, tanto quantitativa como qualitativamente; (3) como tem sido a sua relação com as outras igrejas;
conhecer o presente: (1) dados estatísticos sobre, quer o número de fiéis da igreja, quer a percentagem da população cabo-verdiana que declara ser nazarena; (2) estudos sobre a realidade social envolvente e a sua relação com esta igreja; (3) a sondagem da sociedade sobre as suas expectativas em relação à Igreja do Nazareno.
Desafia-se, por isso, os jovens nazarenos estudantes do ensino superior a fazerem investigações científicas, aproveitando as monografias e outros trabalhos de fim de curso, sobre sociologia das religiões, psicologia das religiões, antropologia cultural com o foco na religião e temas afins.
Na Igreja do Nazareno de hoje, a religião é tida como da esfera do privado e de um grupo fechado em si mesmo, com dificuldade de expansão. Para contrariar tais tendências, ela é forçada
– a deixar de recuar face a uma força maior e persistente de perda de valores, que vem minando e desgastando a sociedade cabo-verdiana;
– a sacudir o comodismo e a passar à acção, quanto mais não seja, numa reacção àquela perda;
– a se envolver na esfera pública, exercendo influência na definição das políticas que levem a uma nova ética, a ética bíblica.
Imagino o sorriso da Missionária Margaret Wood: – Obrigado, Manuel! Está aberta a discussão!
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Entre as letras, um porto de abrigo
“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso. O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto” – Conceição Evaristo, escritora e poeta brasileira, in Cadernos Negros, vol. 15
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 982 de 23 de Setembro de 2020.