Mal concluo o pensamento acho-o obtuso porque se, individualmente, muitos perdem a conta aos dias, se se falham obrigações, refeições, sono ou compromissos; se há menos pessoas e menos brilho; se há um número acrescido de invalidações, se algumas regras perdem o sentido a verdade é que essas situações sempre aconteceram desde que o mundo existe e em cada época tornam às nossas rotinas com novos formatos, outros fulgores, diferentes aplausos e novos corpos em fila à espera de espaço.
Adiantaria alguma coisa ignorar o ano 2020? Apenas um certificado atestando a incompetência ou a passividade. A ciência conseguiu uma vacina para a Covid-19 em tempo recorde. Perdem-se milhões. Ganham-se biliões. Espera-se uma notícia, uma flor, uma moeda, qualquer coisa. E algo vai chegar porque a vida da gente se mede pelas coisas imensas que acontecem sem a nossa contribuição e também pelo esforço ínfimo que seja que conseguimos dar na construção global, inclusive na luta contra a pandemia.
E esse esforço, o esforço que o povo de Cabo Verde está a fazer contra a pandemia não é nem tem sido tão pequeno ou tão pouco assim. Merece louvor. Basta lembrar os números de infetados, os óbitos e os circuitos de transmissão. Basta lembrar a forma como nós comemoramos os acontecimentos ou os não acontecimentos, os abraços, os beijos e ajuntamentos e os sacrifícios que fazemos ao cortar com isso, ou ao limitar a vontade.
Muitas vezes furamos a disciplina? Verdade. Mas temos feito muito neste combate. Basta lembrar a maioria das habitações das nossas gentes. Basta lembrar o preço da água, do sabão, de uma máscara, do álcool ou…ou…ou.
Podia ser muito mais dramática a nossa situação e ainda pode ser mais dramática, mas com cuidado e cumprindo as regras, estamos a vencer mais esta crise. A vacina – a tal luz ao fundo do túnel – vai chegar ao país e todos vamos estar cá para a receber.
Embora ainda estejamos a meio da pandemia – os técnicos da Saúde que me desculpem a intromissão – achei bem ao longo desta crónica fazer esse elogio. É que 2020 está a acabar e pode ser hoje a minha oportunidade. O povo de Cabo Verde tem estado a saber responder aos apelos e orientações do Ministério da Saúde. Gratidão.
Depois da introdução volto ao título da crónica e prometo ser rápida. Na última sexta feira de manhã fui à Achada Santo António pedir a um médico uma declaração para o INPS. Ele quis facilitar-me, porque sou uma pessoa de risco e ele é gentil, prontificou-se a fazê-la na hora, tentou no computador com o apoio de uma funcionária, mas de facto foi impossível e depois de algum tempo soube que não havia sistema. De lá fui à Farmácia, mesmo ao lado, comprar remédios. Distanciamentos cumpridos, mãos desinfetadas, chegou a minha vez. – INPS? – Não temos sistema – lamento. Saio e apanho um táxi.
Chego à Fazenda, na Câmara Municipal, no lugar conhecido por Bombeiros e quando ia descendo do táxi, com um pé no chão e outro dentro do táxi aproxima-se um jovem e diz-me “não saia”. Espantada, em equilíbrio instável, à espera de um assalto – na véspera andei a ver filmes de ação hardcore – ouvi-lhe a perguntar: – O que é que vem cá fazer? “Cá” era a Câmara.
– Tratar de um assunto de aforamento – respondo, respiração retomada, cautelosa.
– Não temos sistema. Pode seguir no seu táxi. – Uma espécie de farda dava-lhe alguma autoridade e eu obedeci.
Digo para o taxista: – Leve-me ao Plateau, Farmácia Africana. Fui tentar os medicamentos. Chego lá e uma fila não exagerada. Fico no último lugar.
– A senhora tem prioridade. É uma pessoa de risco – simpática, uma jovem deixa-me passar. “Pessoa de risco” já não me soava tão ameaçador.
Mostro a receita. – “INPS? Não há sistema”. Agradeço e saio.
Toda a gente com máscara. Lindo! – pensei. Tenho algum tempo. Vou à casa de uma amiga. Bato à porta. É um rés de chão. Enfio a cabeça: Só para te ver e dar um alô. Não posso entrar. Tenho saudades tuas. As vozes perdem o dono. Entro e fico encostada à porta aberta, poucos minutos. Os nossos olhos desviam-se. Saio.
Vou a outra rua. Ando devagar. Uma prima, também adoentada. A mesma cena, a mesma impossibilidade de entrar, abraçar, aconchegar. Falo da porta. Desço as escadas. A máscara embacia os óculos.
Preciso voltar para casa. Oiço o meu filho a dizer-me, apreensivo e áspero: – “Fica em casa, mãe. Olha que quem procura, acha”. Com esse pensamento desinfeto as mãos, pela enésima vez nessa manhã. O dia até que estava bonito. Passo na rua do mercado.
– FAIDEI! FAIDEI! – uma jovem chega perto de mim, procurando respeitar o distanciamento recomendado, mas sem facilitar uma possível fuga. Tem máscara. Eu recuo e torno a recuar e ela segue-me. Bato as costas contra uma árvore. Há muito que aprendi a selecionar dores. Fico encurralada.
– Dez banana(s), cem escudo(s). Faidei! Faidei!
Olho sem perceber. Alguém me explica: Black Friday – Promoção.
A moça apregoa, alegre, insinuando-se: Faidei! Faidei!
Escolhi as bananas que não estavam em faidei, sustendo o riso. Pela primeira vez nessa manhã, um sistema funcionava. Livre e solto.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 993 de 9 de Dezembro de 2020.